Mídia

“A mídia sempre se manteve crítica à participação popular”, aponta cientista político

Francisco Fonseca relança este mês nova edição de livro que analisa atuação de veículos de comunicação entre 1985 e 1992

São Paulo |
“Não havia greve geral legitimada, ou possibilidade de uma Constituinte cidadã”, afirma Fonseca. 
“Não havia greve geral legitimada, ou possibilidade de uma Constituinte cidadã”, afirma Fonseca.  - Youtube/Divulgação

Os grandes veículos de mídia ocupam papel central nos processos políticos do país, geralmente aliados ao capital financeiro e aos setores mais conservadores da sociedade. Entre 1985 e 1992, período em que o país deixava o período ditatorial para iniciar um novo período democrático, por exemplo, “não havia greve geral legitimada, ou possibilidade de uma Constituinte cidadã”, afirma o professor de Ciência Política da FGV e da PUC-SP Francisco Fonseca. 

É deste período que trata o livro "Consenso Forjado: A Grande Imprensa e a Formação da Agenda Ultraliberal no Brasil”, lançado originalmente em 2005, mas que ganhou neste mês de maio uma nova edição. O livro analisa os quatro maiores jornais impressos do país no período de redemocratização - Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, O Globo e Jornal do Brasil - e a posição que eles tomaram durante a transição, que segundo Fonseca, era “uma clara tentativa de criminalizar os movimentos sociais”.

O professor aponta que tanto naquele período, como hoje, “a mídia sempre se manteve crítica à participação popular”. Atualmente, segundo Fonseca, a interpretação é de que “qualquer elemento mais institucionalizado seria ou populismo, ou bolivarianismo ou formas de cooptação da sociedade pelo o Estado”.

Confira alguns trechos da entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.

Brasil de Fato: Estamos em um período complicado para a nossa democracia e a mídia teve um papel importante em todo este processo. Comparando o período em que seu livro analisa a mídia, entre 1985 e 1992, e os dias de hoje, é possível encontrar muitas semelhanças, não? 

Francisco Fonseca: Estamos todos preocupados com o golpe de Estado que estamos vivendo no Brasil, com o futuro da democracia brasileira - que é o futuro da democracia tanto política quanto social, como está muito claro com o ilegítimo, ilegal e imoral governo que assumiu. A perspectiva do livro, que foi do período de 1985 a 1992, fundamentalmente observa o período de transição para a democracia no Brasil e nesse período o processo Constituinte de 87/88. O que que eu observei no livro é que em relação aos direitos sociais, nenhuma greve, neste período, foi considerada legítima, para você ter uma ideia da concepção de democracia que tem a grande mídia, que por sua vez expressa as classes média superiores e as grandes elites. 

E todas as tentativas de criminalizar os movimentos sociais aparecem fortemente num período que antecedeu a Constituinte, ou seja, em pleno processo de democratização. A mídia tinha uma posição, tanto em relação a democracia política, como no que diz respeito à participação popular. Quanto aos direitos sociais e trabalhistas, era muito claro: a mídia é claramente contrária aquilo que foi chamada de uma Constituinte cidadã. Essa concepção de uma democracia restrita do ponto de vista político e de um modelo econômico neoliberal estão muito presentes naquele momento e retornaram agora. 

É por isso que eu resolvi reeditar o livro. Qual é o projeto do governo golpista? Diminuir aposentadorias, desvincular o salário mínimo da aposentadoria, diminuir os direitos sociais. Você vê que está congelado o Minha Casa Minha Vida, fala-se em privatização do SUS. Há um modelo que perdeu as eleições e que já era omodelo expresso pelas elites e pela mídia, naquele momento que retornou com total vigor. A diferença, por exemplo, como no caso da Argentina, é que lá foi eleito. No Brasil, como não tem voto, está sendo feito pela via do golpe.

Analisando a mídia nesse período, você notou alguma diferença entre a mídia na ditadura e a mídia já no transição democrática?

Eu vejo que tanto naquela época quanto nos governos que sucederam, a mídia sempre se manteve crítica à participação popular, inclusive entendendo, de maneira mais recente,  que qualquer elemento mais institucionalizado seria populismo, ou bolivarianismo, ou formas de cooptação da sociedade pelo o Estado. Então não vejo diferença entre a visão de democracia que a grande mídia tinha naquele momento e a que perdurou todo esse período de democratização, passando pelo governo Lula e Dilma. Assim como os direitos sociais sempre foram vistos com desconfiança; "eles prejudicam a economia", "eles causam défict", "fazem com que as pessoas não queiram trabalhar", "bolsa família é compra de votos". O velho ditado popular, que se tornou senso comum, de que se deve ensinar a pescar e não dar o peixe, esse tipo de visão do senso comum que está muito claro na mídia nesse tempo todo. 

Claro que há uma exceção ou outra, há momentos que isso é mais agudo, mas como projeto, vamos chamar assim, como projeto político, a mídia muito claramente, daquele período até os dias de hoje, é crítica à democracia popular, à participação popular, e é critica à expansão de direitos sociais, na perspectiva de um Estado de Bem-estar Social. Tanto que nós observamos que as classes médias que saíram às ruas contra o PT, contra a Dilma e pelo impeachment, na medida que elas saíram às ruas - e não saiam há muito tempo, desde 64 - destampou a bueiro mal cheiroso dos preconceitos. E a mídia é a expressão das classes médias e das elites.

Havia um consenso em saudar as elites do país?

Realmente, em alguns momentos o caráter partidário strictu senso aparece de maneira mais rigorosa, como é agora a relação da mídia com o PSDB. Você vê inclusive que não há um clamor midiático para se investigar o Aécio Neves. Há uma blindagem da Folha de São Paulo e do Estado de São Paulo com relação ao governo Alckimin em que nada é investigado. O Ministério Público não investiga, o Tribunal de Contas não investiga, é uma barbarie o que acontece no estado de São Paulo, é um dos mais atrasados da União e a mídia não tem o menor esboço de cobrança.

A mídia sempre foi partidária num outro sentido, não com relação a um partido, mas partidária de teses, que são as teses liberais e conservadoras. Me parece que no jogo político, ao longo desse período, ela foi se alinhando a um governo, um partido, ora a outro, até que, a partir do momento em que o PT assume o governo, ela de fato bandeou como linha de transmissão do PSDB. Mas nem sempre foi assim, no começo, a mídia apoiou o governo Collor, mas depois, com a sua derrocada, ela se distancia, mas tem muito claramente o sentido de defender teses que são de interesses das classes médias e das elites.

Evidentemente eles mudam também, assim como as classes médias, então hoje me parece que o que está em jogo é muito mais o capital financeiro do que o capital produtivo. A própria Fisep é muito mais uma expressão de capitais internacionais do que de capitais nacionais. E essa expressão está na mídia também. Tem que olhar as novas composições da sociedade brasileira a partir de Collor, com as privatizações, com a abertura de economia, que mudou o perfil das elites, e a mídia está expressando isso. Então a mídia hoje defende muito fortemente o capital financeiro, o rentismo. Isso é um ponto que mudou daquele período pra cá. Do período que analisei, a própria Fiesp se transforma, as elites nacionais foram desnacionalizadas. Hoje os segmentos estritamente nacionais do capital, do capitalismo brasileiro, são segmentos extremamente reduzidos. Área de construção civil, de construção naval, vai contar uma meia duzia de setores, o restante está totalmente submetido ou em forma de joint ventures, ou em forma de domínio expressivo do capital financeiro internacional.

E qual o papel do profissional de jornalismo nesse processo?

Então, essa é uma pergunta complexa, porque, uma coisa é o jornalista, outra é o dono do jornal, dono do rádio. Os jornalistas evidentemente têm o papel fundamental de contar as diversas versões, eu não vou falar contar a verdade porque não existe uma verdade, têm várias verdades. Tem que contar as várias verdades. Se tem uma greve, tem que contar a verdade dos trabalhadores, dos patrão, do cidadão, no mínimo, vários lados. Ele deve fazer isso, que é o dever profissional do jornalista e o que vai ser publicado - qual é a pauta, qual é a embocadura - não está na mão dos jornalistas. O Sidnei Rezende e a Mariana Godoy, dois jornalistas do sistema Globo, ao saírem falaram exatamente isso, que a maneira como se organiza a pauta é "fale mal do governo Dilma". A denúncia deles foi muito importante, porque mostra que há um enorme poder do patrão, ainda mais num mundo em que não há mais o diploma do jornalista para exercer a profissão. Então acho que há um dilema ético e profissional: o jornalista tentando fazer um trabalho de fato de ouvir os vários lados, as várias verdades, e os donos, os patrões, que são capitalistas sem nenhum apego à democracia.

Eu até lembro que no meu livro eu entrevistei o Otavio Frias Filho [proprietário da Folha], e nessa entrevista eu perguntei pra ele se a Folha de São Paulo era um jornal democrático, ele disse "não, não é. Aqui tem quem manda e quem obedece, e quem não obedece a gente manda embora”. E disse mais, "nós somos um jornal de classe média para a classe média", em um momento de total sinceridade. Então é isso, os patrões têm total poder sobre os jornalistas em um momento que há cada vez mais precarização no trabalho do jornalista.

Quais as alternativas para evitar a partidarização e unilateralidade da grande mídia? 

São várias possibilidades, que não foram sequer tentadas pelo governo Lula, quando tinha alta popularidade e agora está pagando o preço por isso. Tem que regular os artigos 220, 221, 222 e 223 da Constituição, que proíbem o monopólio, a propriedade cruzada. É só regulamentar, ninguém está pedindo revolução. Regulamentar a Constituição já é uma revolução. Evidentemente que em outro momento político e não nesse que estamos vivendo, que é de golpe, de reação.

Em segundo lugar, o BNDES tem um papel muito importante, que é financiar a pequena empresa. A mídia independente tem que ter dinheiro do BNDES, dinheiro público, aberto, auditado. Porque pode dar para a Globo e não pode para a mídia independente? A imprensa alternativa tem um papel muito mais importante do que tem a grande imprensa. Então o BNDES tem um papel importante de financiamento, a pulverização da publicidade oficial, que começou no governo no Lula. 

Outro fator é rever, de maneira rigorosa, a Lei de Concessão e a renovação de concessão, que no Brasil não existe, é simplesmente um lobby das grandes empresas no Congresso, que permitem que as concessões sejam renovadas automaticamente, sem qualquer critério, lembrando que os meios de comunicação que são concessionários de rádio e televisão, não cumprem minimamente a Constituição, basta ler os quatro artigos aos quais me referi.

A era dos smartphones pode ajudar a democratizar a mídia? 

Quem tem acesso a meios digitais no Brasil são cerca de 52% dos brasileiros. Mesmo no celular, os pacotes são muito caros. Então, para uma pessoa pobre ter um celular com um pacote de internet é muito caro. Significa que estamos falando ainda de meios restritos. Por mais ampliado que esteja ocorrendo esse processo, ele é muito caro e descontínuo. Dizer que as pessoas pobres se informam fundamentalmente pelo acesso que têm ao celular não é verdade.

Várias pesquisas demonstram que a maior parte do tempo das pessoas na internet - seja no computador  ou no celular - é gasto com entretenimento. Eu tenho bastante dúvidas e receios de nós pensarmos uma possível democratização da mídia por aí. Ainda assim, têm avanços, e evidentemente que os portais têm um enorme papel, tem uma guerra, uma disputa política dos portais no Facebook e isso é muito importante.

Isso também coloca em questão o jornalismo, porque pelo menos para os setores que acessam o mundo digital, o que sai no jornal você pode contrariar com visões alternativas. Mas aí também temos problemas. Os portais mais visitados continuam sendo os mais capitalizados: G1, UOL, Estadão, Folha

 

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