Rio Grande do Sul

Deputados e moradores denunciam ‘atrocidades’ sobre repressão na Lanceiros Negros

“A brutalidade deles foi algo inexplicável. Nós tínhamos uma casa e agora estamos sem teto”, relatou uma das ocupantes

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Audiência para ouvir os relatos das vítimas da repressão foi realizada no prédio da Assembleia Legislativa do RS
Audiência para ouvir os relatos das vítimas da repressão foi realizada no prédio da Assembleia Legislativa do RS - Guerreiro/Agência ALRS

Sete dias depois da desocupação da Lanceiros Negros, momento definido como “criminoso e proposital”, dezenas de pessoas se reuniram no Memorial do Legislativo, prédio da Assembleia, na manhã desta quarta-feira (21), em uma audiência realizada para ouvir as vítimas dos abusos policiais ocorridos naquela noite. O objetivo, além disso, foi de encaminhar ações para investigar e denunciar a ação da Brigada Militar.

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O deputado Jeferson Fernandes (PT), que chegou a ser algemado e detido pela BM, conduziu a mesa – e descreveu a ação policial como cheia de “atrocidades” –, diz que há imagens gravadas, pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, desde o momento em que o grupo estava em audiência na Assembleia, a duas quadras da Lanceiros, e rumou para o local.

“Nós mal tínhamos chegado no prédio e eles nos atropelaram. Acreditei que os tiros desferidos não eram de bala de borracha. É um absurdo já chegar atirando. O primeiro passo seria o oficial de Justiça ler o mandado de reintegração de posse e sensibilizar as pessoas para uma saída pacífica, isso acompanhado de bombeiros e de serviços de saúde. Quando eu estava falando, qual foi a saída? Gás na cara”, disse o deputado.

Ele relata que foi acusado de estar “incitando a desordem” e que mesmo frente a consistentes e numerosas denúncias de abusos, inclusive por parte de diversos meios de comunicação, o governo lançou uma nota dizendo que a operação foi tranquila. “Gostaria que todos que se escandalizaram com a minha prisão se escandalizassem também com as crianças que sofreram na desocupação. Vamos, agora, apelar em nível nacional e internacional. Tanto a Lanceiros Negros quanto o Alto da Colina sofreram repressão da Brigada Militar”, afirmou.

Lisandra Santos, uma das ocupantes do prédio, relatou o que a população sofreu naquela noite – em especial filhas e filhos de moradores: “a brutalidade deles foi algo inexplicável. Normalmente, eles seguram as armas no peito, mas, dessa vez, estavam com os canos para baixo, na altura dos olhos das crianças – que sofreram muito com o gás. Tentamos protegê-las em um quarto que fica mais longe das janelas, no terceiro andar, fechado. A cabeça fria foi o que nos manteve vivos”. Ela relata que o Conselho Tutelar chegou apenas às 23h, e a desocupação começou bem mais cedo, às 19h. “Sempre primamos pela organização e pela educação. Os pobres têm que acordar. Somos maioria no país. A gente ainda viu pela tevê os móveis e eletrodomésticos, tudo destruído, desorganizado. Nós tínhamos uma casa e agora estamos sem teto”, protestou.

Lourival Caetano, trabalhador desempregado, diz que os policiais os retiraram dali “como se fossemos bandidos”, e que muitos deles “não têm também onde morar”. “Quando desci para o terceiro andar vi que as crianças estavam sem ar, vomitando muito. Quando tiraram a gente do prédio, inclusive com crianças separadas das mães, avisaram que poderíamos ficar no abrigo somente por 48h”, disse.

Priscila Voigt, integrante do MLB (Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas), também foi presa naquela noite. Ela relatou que rodou, dentro de um camburão, durante quase duas horas, algemada, por ter supostamente cometido os crimes de desobediência e resistência. Priscila atentou para a presença de policiais, integrantes da inteligência da Brigada, à paisana – popularmente conhecidos como P2 – na audiência, e que faz “questão de dizer o nome inteiro”. “Uma juíza que ganha quase R$ 5 mil por mês, só de auxílio moradia, assinou isso. Quando a gente chegou da audiência o choque já estava atirando, com certeza a mando do governador. Isso mostra que o Estado Democrático de Direito não existe”, disse ela, alertando para o fato de que mulheres na liderança dos movimentos despertam mais exaltação nas forças repressivas.

“Será que a gente vai ter que financiar campanha de políticos para que sejamos ouvidos?”, ironizou Nana Sanches, coordenadora estadual do MLB, Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas.

Valmor Almeida Guedes, trabalha do Grupo Hospitalar Conceição, conta que já havia visitado a ocupação e que percebeu “a forma organizada, como organizaram aquele prédio que servia antes como abrigo para ratos”. Ele diz que estava relativamente distante das portas do prédio da Lanceiros, mas que, mesmo assim, sofreu fraturas por conta da carga policial.

“O centro foi sitiado, transformaram-no em palco de guerra contra o povo, que, no meu conceito de democracia, é quem deveria delegar o poder. Os soldados do Choque ficaram zombando, tirando fotos da nossa cara para intimidar. Isolaram o local com uma fita que nunca ultrapassamos”. Ele diz que, mesmo assim, a Brigada jogou as primeiras bombas. No dia seguinte, machucado, foi ao médico e descobriu que tem um dos pés fraturado.

Além de Jeferson Fernandes, parlamentares da Assembleia e vereadores que também estiveram em frente à ocupação naquela noite também relataram os excessos da polícia. O deputado estadual Pedro Ruas, do Psol, disse que o caso da Lanceiros não foi um episódio isolado. “Pelo contrário. Esse é o procedimento habitual da Brigada Militar e do Judiciário. Uma maneira hipócrita de agir penalizando os pobres. Ninguém vê a BM pedalando gente no Moinhos de Vento e no Bela Vista. O crime cometido pelo Estado no Alto da Colina não teve essa mesma visibilidade”, exemplificou, a respeito da repercussão de abusos policiais no centro da cidade.

Manuela D’Ávila (PCdoB), por sua vez, alertou para o fato de que as desocupações violentas “têm sido a prática do governo”, que vive em dilema permanente com o déficit habitacional. Ela afirmou que um dos fatos de maior gravidade foi a ausência de conselheiros tutelares até certa altura, para a proteção das crianças da ocupação: “não sei se foram ou não chamados, e, de todas as violações, é a mais grave. O Tribunal de Justiça Militar, além disso, sempre perdoa os militares se excedem”, afirmou a parlamentar.

Para Miriam Marroni (PT), uma das integrantes da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, a violência policial simboliza a forma pela qual o Estado trata as questões sociais, e não somente com os pobres. “No último período esta comissão tem recebido também denúncias vindas da classe média. O desrespeito à cidadania tem deflagrado essa violência – e há por trás disso também a omissão a respeito da falta de moradia, interpretou a parlamentar, que afirmou que está montando estratégias para denunciar o caso.

A vereadora Sofia Cavedon, também do PT, esteve em frente à Lanceiros naquela noite. Houve, para ela, muitos exemplos de violações, “a começar pelos conselheiros tutelares, que chegaram depois de tudo ocorrer”, reafirmou. Sofia conta que os Procuradores da República e do Estado foram “impedidos de subir, de acompanhar, de garantir respeito na desocupação”. “Nós vimos dois cidadãos entrando no prédio com mochilas, e isso deve ser investigado”, disse ela, em referência à possibilidade de que armas brancas tenham sido enxertadas na ocupação.

O MLB diz que pretende pedir ressarcimento do Estado por conta de danos materiais aos pertences de moradores, de danos físicos às pessoas, e de problemas psicológicos causados pelo clima de pânico da desocupação. Foi encaminhada também uma exigência de resposta por parte do governo Sartori, assim como uma audiência para tratar do tema com o secretário de Segurança Pública, Cezar Schirmer.

Edição: Sul 21