Minas Gerais

Luta

Artigo | Somos todas Guarani-Kaiowá

Nascida em 2013, a ocupação se consolidou e hoje faz parte do mapa de Contagem, na Região Metropolitana de BH

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Encontro Guaranis-Kaiowá e moradoras da Ocupação Guarani-Kaiowá
Encontro Guaranis-Kaiowá e moradoras da Ocupação Guarani-Kaiowá - Foto: Crianças GK

Um grito ecoou pelo Brasil e pelo mundo afora. Os ruídos dos povos Guarani Kaiowá viraram vozes, e no ano de 2012, essas vozes juntas gritaram contra o genocídio das nações indígenas. Não sei se todos recordam, mas nesse período uma intensa campanha ganhou as redes e as ruas. Era o Brasil afirmando que “somos todos Guarani-Kaiowá”, tal como afirmado por Viveiros de Castro – “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é.”

Fruto da campanha - que defende o reconhecimento e demarcação das Terras Kaiowá Guarani no atual Mato Grosso do Sul - surgiu em 2013 a Ocupação Emanuel Guarani Kaiowá, em Contagem, na Região Metropolitana de BH. Homenageando a luta dos povos Guarani Kaiowá, a ocupação urbana, que conta com aproximadamente 150 famílias, foi batizada levando em seu nome a luta dos povos Guarani Kaiowá.

Nas palavras da própria ocupação assim se justifica a homenagem: “O genocídio e o etnocídio das populações brasileiras originárias, camponesas, quilombolas, é o triste retrato de um passado que buscamos resgatar na memória para transformar. Falar e entender Guarani Kaiowá significa, portanto, recuperar a nossa identidade apagada, reconstruir espaços de comunidade vinculados à terra a partir dos povos que foram brutalmente desterritorializados: as populações urbanas de periferia”.

Os anos se passaram e, no final de março de 2014, por intermédio de professores e estudantes da disciplina Laboratório de Artes e Ofícios dos Saberes Tradicionais da UFMG, a ocupação foi ponto de encontro entre os Guarani Kaiowá (MS), com os moradores da ocupação Guarani Kaiowá. No encontro, os companheiros do Mato Grosso do Sul, o rezador Sr. Valdomiro, o Cacique Genito Gomes e o Vice-Cacique Walmir Gomes, fizeram uma reza junto aos moradores e afirmaram: “A terra é de quem planta e cuida, daqui ninguém tira vocês!”. O vídeo do Encontro pode ser acessado aqui.

A profecia se fez como previsto, a ocupação se consolidou, e hoje faz parte do mapa da cidade das abóboras. Em outubro de 2018, quatro anos depois do primeiro encontro, ocorreu o segundo, um encontro mágico entre as mulheres Guarani-Kaiowá, vindas do Mato Grosso do Sul, com as mulheres da Ocupação Guarani-Kaiowá.

Novo encontro: mulheres trocam experiências

Dona Tereza Amarília Flores, Jhonn Nara Gomes e Luiza Flores viajaram mais de 1.300 km para serem professoras, repassando e trocando seus conhecimentos com estudantes e professores, dentro do Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG.

Dona Tereza Amarília Flores, como afirmado no seu currículo, é “rezadora, agricultora, cantora, conhecedora e manipuladora de remédios com a utilização de plantas [...] Mestra e Doutora nos saberes e fazeres do povo Kaiowa, formou-se junto com seu companheiro, o xamã Ñanderu Valdomiro Flores (falecido em 2016), trabalhando juntos nos roçados do Guaiviry, território originário onde viveram seus pais, irmãos, tios e tias, avôs e avós bem como toda uma extensa parentela.”

Johnn Nara Gomes, por sua vez, é uma jovem liderança política do Tekoha Guaiviry, o território ancestral retomado e autodemarcado pela nação Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. “Neta da rezadora Odúlia Mendes e do líder político Nísio Gomes, esse último assassinado em 2011 na violenta luta pela terra contra fazendeiros invasores. Formou-se em cinema pelo Programa de Extensão Imagem Canto Palavra no Território Guarani e Kaiowa (2014 e 2016).”[1] E é co-diretora de Ava Marangatu (2016, 15″) e Ava Yvy Vera (2016, 52″), filmes premiados em diversos festivais.

No dia 6 de outubro, após muitas aulas na Graduação e Pós-Graduação na UFMG, foi o dia do Jajotopa Guarani-Kaiowa Ocupação, o grande encontro das Mestras Guarani Kaiowá com as mulheres da Ocupação.

Na ocasião, pude perguntar o que as indígenas pensavam de uma ocupação urbana, de Belo Horizonte, ter o nome de Guarani Kaiowá, mesmo não sendo uma retomada de terra indígena. De pronto Dona Amarília Flores me respondeu em língua guarani, com tradução de Johnn Nara: “Não foi à toa que vocês [moradores da ocupação] escolheram esse nome Guarani Kaiowá, o espaço de vocês é abençoado, vocês não são Avá, mas têm o coração bom. Isso mostra que os Guarani Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, não estão sozinhos na luta”. E, finalizando, ela sentencia: “Ficamos felizes com essa homenagem, vocês acertaram na mosca esse nome, estamos juntos na luta.” 

Johnn Nara deixou um ensinamento eterno para todos nós, sobretudo os Cari (brancos). Jovem de temperança singular, ela pegou o microfone e afirmou firmemente “nós não somos índias! Nós somos Avá, pertencemos à nação Guarani Kaiowá”. Índio, esse termo pejorativo, usado pelo colonizador europeu, que na ausência de sensibilidade e conhecimento para reconhecer a vasta diversidade entre os povos que aqui habitavam, rebaixa e iguala as variadas comunidades nativas de todo o mundo.

As mulheres da Ocupação GK, Deusa, Naiara e Shirley, por sua vez, falaram em nome da comunidade, agradecendo a presença e perseverança das companheiras Guarani Kaiowá, o fato de elas terem viajado tamanha distância, e apesar do cansaço visitarem a ocupação, “que é simples, mas é nosso lar”.

A verdade é que esse encontro rendeu muitos ensinamentos, não somente para mim e para os demais estudantes presentes, mas para todos envolvidos, inclusive as lideranças de ambas as partes, pois os dois movimentos (a ocupação e a retomada) lutam pelo direito à terra, e resistem às ganâncias de especuladores e latifundiários. Seja em Contagem ou no Mato Grosso do Sul, a terra pertence a quem planta, cuida, trabalha e faz dela vida.

*Frederico Lopes é sociólogo e jardineiro.

 

Edição: Joana Tavares