Rio Grande do Sul

DESIGUALDADE

O Brasil descobriu o futebol feminino. E ele é precário

A doutora e especialista em gênero, esporte e futebol feminino, Silvana Goellner, conversou com o Brasil de Fato

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Essa copa está sendo revolucionária", diz Silvana, que celebra o fato da mídia finalmente perceber que o futebol de mulheres existe no país
"Essa copa está sendo revolucionária", diz Silvana, que celebra o fato da mídia finalmente perceber que o futebol de mulheres existe no país - Foto: Lucas Figueiredo-CBF

A Copa do Mundo de Futebol Feminino está rompendo preconceitos e mostrando sua grande potencialidade comercial. Apesar da derrota pra França e da desclassificação, tudo indica que o futebol feminino no Brasil recebeu o maior impulso de sua história. 

Os recordes de audiência da primeira vez que a seleção brasileira de mulheres teve seus jogos exibidos na TV aberta mostra que o que falta não é interesse do público, mas investimento na modalidade. Apesar disso, o cenário é de completa falta de estrutura, colocando a luta pela igualdade de gênero em pauta no mundo. Para falar sobre isso e outros temas relacionados à mulher no futebol, conversamos com a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Silvana Goellner, doutora e especialista em gênero, esporte e futebol feminino.

Confira a entrevista completa com Silvana Goellner.

Brasil de Fato: Em tempos de Copa do Mundo de Futebol Feminino, comente sobre a realidade profissional das atletas que jogam no que a gente chama de "país do futebol". Dê exemplos de tais dificuldades.

Silvana Goellner: A gente não pode falar no país do futebol como futebol feminino profissional, pois existe ainda uma grande lacuna para que o futebol feminino seja profissionalizado. Há várias dificuldades, a maior delas é o investimento dos clubes, Federações e Confederações. Enquanto os homens têm 10 campeonatos, as mulheres têm três. Como a gente quer que o futebol de mulheres tenha visibilidade e qualidade se elas muitas vezes não têm a chance de jogar? Muitas atletas não têm contrato de trabalho, não têm plano de saúde, não têm estrutura nos clubes. As vezes falta até uniforme, banheiro, vestiário, assessoria médica. Também tem a questão salarial, no Brasil que elas não têm um rendimento mensal. Muitas vezes elas são contratadas por temporada e somente nos períodos de campeonatos. Não há nunca a segurança de que elas possam viver da modalidade. Isso significa que elas quase não têm chance de jogar, o que acarreta prejuízo. Temos que avançar muito na profissionalização do futebol de mulheres. 

Outra questão é exatamente isso: campeonatos nacionais, estaduais, regionais, locais. Com as determinações da FIFA, da Comebol, e mesmo licenciamento de clubes da CBF ampliaram um pouco isso das equipes, dos times de camisa começarem a olhar para a modalidade, olhar para o futebol de mulheres. 

Outra questão que considero importante é o investimento pesado nas categorias de base para formar uma geração de jogadoras. A gente vê agora algo bastante interessante: a Formiga (Miraildes Maciel Mota) com 41 anos e a Marta com 33 jogando com jogadoras bastante novas, ou seja, o Brasil não formou uma geração ainda. Então, quando essas jogadoras saírem (Cristiane, Marta e a própria Formiga) é necessário ir fazendo essa renovação sempre, que eu considero outra questão fundamental para a profissionalização do futebol de mulheres no Brasil. 

A quarta questão está relacionada com visibilidade e patrocínio. Isso está sendo quebrado nessa copa do mundo, de que as pessoas não se interessam em ver o futebol feminino, pois os dados estão mostrando que a audiência da TV aberta durante os jogos aumentou significativamente; os conteúdos mais comentados  das redes sociais são exatamente com relação à copa do mundo do futebol feminino. Então, visibilidade e patrocínio são coisas que são próximas, uma depende da outra. Acho que estamos vivendo um momento aqui e agora, parece-me ser interessante para essa questão da profissionalização. Pela primeira vez na história a gente vê mulheres atletas fazendo propaganda para Guaraná, O Boticário, Itaú, coisa que até então a gente não via.

BdF: Esta é a primeira copa feminina com transmissão pela TV aberta no Brasil. Como essa exposição pode contribuir para melhorar as condições do esporte para as mulheres?

Silvana: É fundamental. Eu sempre digo assim: como o nosso país vai reconhecer a presença das mulheres no futebol, ou a importância das mulheres no futebol, se nem conhecem quem são as jogadoras, não conhecem quais são as equipes que têm times de mulheres, não conhecem quais são as conquistas que a seleção brasileira já teve ao longo da história? Essa visibilidade é estratégica e fundamental para que a modalidade comece a se expandir. A audiência está sendo ótima, além do esperado, isso significa, sim, que há interesse. Acho que esse passo essa copa do mundo está demarcando. A gente vê empresas investindo na publicidade com atletas como Cristiane, Marta, Andressa Alves, e isso é fundamental, algo que não existia até então. Essa copa está sendo revolucionária nesse sentido: finalmente a mídia, de uma forma geral, percebeu que existe futebol de mulheres nesse país. Quando se fala em país do futebol, ele não é só de futebol dos homens, ele também é das mulheres. Isso é uma questão bastante importante nesse processo. 

A gente sempre pautava  porque que se trabalha com a lógica do mercado, como um gasto, mas acho que tem que ser um investimento. Na relação público/consumo, o futebol de mulheres hoje precisa de investimento para que as pessoas possam ver. O retorno financeiro do canal aberto, dos patrocinadores, não vem de imediato porque ainda não temos a cultura da modalidade estabelecida no país. 

Silvana: "Trabalho com a questão do esporte de mulheres há mais de 20 anos, tenho o futebol de mulheres como pauta política da minha vida".

BdF: Na comemoração do gol marcado contra a Austrália, Marta apontou para a chuteira e trouxe a questão da igualdade no futebol, tema que ela retomou em outros momentos. Ela citou em uma entrevista que o protesto só foi possível porque ela está sem contrato de patrocínio, já que o valor oferecido foi inferior ao que ela recebia e muito abaixo do pago no futebol masculino. Tendo isso em vista, comente sobre a desigualdade e o abismo financeiro entre as modalidades. 

Silvana: Eu sempre digo que o futebol masculino no Brasil, sobretudo este espetacularizado das grandes equipes da primeira divisão, não pode ser comparativo para nada porque ele é fora da curva de qualquer esporte no país, mesmo voleibol e basquetebol não tem a projeção e o investimento que tem nesse futebol masculino, e isso já é algo a ser pensado, do futebol como base de qualquer outra modalidade esportiva no Brasil. Então, a gente não pode sempre tentar comparar o futebol de mulheres, que está engatinhando, com esse futebol, porque claro que existe uma diferença enorme. Se a gente pensa só nesse futebol, a gente acha que nunca vai conseguir. Mas o futebol dos homens não é só esse futebol do Neymar etc., em termos salariais. 

O que eu quero dizer com isso também é que a diferença de salário e de estrutura é real. Há uma desigualdade de gênero no Brasil em termos esportivos em várias modalidades. Algumas começam com premiações iguais, mas, aquilo que falo, o número de campeonatos é diferente, os salários são diferentes, é uma estrutura toda diferente. 

Lutar pela igualdade de gênero no esporte é fundamental. Perceber que existe uma desigualdade, que não é por habilidade técnica, mas é por gênero, é o primeiro passo. E não se dá só no esporte, essa desigualdade está em grande parte das profissões - as mulheres recebem menos no Brasil porque são mulheres. A desigualdade de gênero está colocada, ela é estruturante da nossa sociedade. Talvez a gente necessite de um futebol mais feminista do que de um futebol mais feminino. Feminista no sentido de mostrar que as mulheres jogam tão bem, que a modalidade precisa ser estruturada minimamente e avançar nesse processo. O futebol de mulheres foi proibido por 40 anos, como outras modalidades esportivas, então essa proibição fez com que a gente tivesse um delay muito maior, então a gente tem um longo processo pela frente. Por isso pautar a disputa por igualdade de gênero é fundamental e estruturante. Por isso que as pautas do movimento de mulheres, que estão em vários espaços, que querem igualdade, também estão pautando o futebol. É uma desigualdade estrutural da nossa sociedade - como a gente tem desigualdades sobre questões raciais, também temos desigualdade das questões de gênero. Ela é outra pauta que tem que estar muito presente. A gente tem que tentar minimizar essa desigualdade pela questão de serem homens ou mulheres na estrutura esportiva. 

BdF: A atacante Cristiane comentou nas redes sociais que tem uma namorada, a quem dedicou umas palavras apaixonadas. A questão é a seguinte: parece, não sei se você concorda, que essa é uma das poucas situações em que, no mundo do futebol, as mulheres desfrutaram de uma posição um pouco melhor que os homens. Não se pode imaginar um jogador homem, ainda mais de uma seleção, declarando publicamente amor por outro. Gostaria que comentasse essa questão.

Silvana: Bom, acho que tem várias questões aí para a gente pensar. O futebol é associado aos homens e muitas vezes ao longo de toda história da modalidade sempre um dos discursos que esteve muito presente, impeditivo de que as mulheres jogassem futebol, é que elas se masculinizariam, deixariam de ser femininas, se tornariam lésbicas participando do futebol. 

No futebol de homens e no futebol de mulheres tem heterossexuais e homossexuais, essa é uma questão importante. No entanto, eu acho que o fato das mulheres, algumas mulheres, falarem abertamente sobre isso não é só por causa do futebol. Estamos em um momento no Brasil de maior liberdade sexual das pessoas falarem sobre esse tema. Para os homens pesa muito porque na nossa sociedade o homem é mais valorizado que a mulher. Uma mulher se dizer lésbica, e aí culturalmente ser associado como algo que seria dos homens é menos difícil do que um homem se dizer homossexual, que é relacionado com a questão da feminilidade, se faz uma associação direta. Então se o feminino é menos valorizado que o masculino, dizer-se lésbica, em uma associação rasa, não quer dizer que uma mulher seja masculina. Existem várias formas de feminilidade e masculinidade, mas para o homem é muito mais pesado porque nós vivemos em uma cultura machista que reforça a importância do macho heterossexual. Virilidade é associado com masculinidade, então, o homem dizer-se gay é muito mais relacionado com uma questão de inferiorização.

Acho que por isso, nesse contexto, isso também aparece - sem falar que o futebol valoriza uma dada masculinidade, do homem viril, corajoso, heterossexual, o cara que “peita” qualquer coisa. Então, as masculinidades, no futebol, não podem ser expressadas. A gente viu o caso do Richarlyson no Brasil, o que isso gerou, que até hoje quando o cara vai jogar é insultado. É só a gente pensar, por exemplo, nos cânticos. Muitos dos cânticos que tem nos estádios estão voltados para isso. É xingamento para um homem dizer-lo associado ao feminino. Isso não acontece quase com relação às mulheres, porque o feminino é desvalorizado, não o masculino, então tem essas relações que a gente pode pensar. O que também não é algo fácil para as mulheres que se declaram. Eu não cheguei a ver o caso da Cristiane. Significa, eu acho, que é um pouco do que estava falando daquela ideia de um futebol mais feminista, que mostra que as mulheres são o que são, elas tem que ser valorizadas pelo que elas são, independente de raça, etnia, orientação sexual, classe social, idade. Acho que é um certo empoderamento da força das mulheres que a gente se coloca aí. 

Cristiane no treino da Seleção Feminina no Stade Jules Ladoumègue, em Le Havre / Foto: Assessoria / CBF

BdF: Uma outra questão é a maternidade. Na nossa pesquisa, das 23 atletas da seleção, apenas uma, a lateral esquerda Tamires, é mãe. Essa seria uma complicação na curta carreira das mulheres no futebol? Como a sua pesquisa lidou com essa situação e o que você pensa a respeito?

Silvana: É interessante pensar o seguinte: temos uma cultura no Brasil do lazer de uma forma geral. O que a gente observa e tem várias pesquisas que mostram que as mulheres têm muito menos tempo de lazer do que os homens exatamente pelo tempo de responsabilidade que as mulheres têm para com o privado (família, maternagem, cuidado com os filhos e cuidados com a família), isso não está dado para os homens na nossa cultura. Isso acaba fazendo com que as mulheres tenham menos tempo para o lazer. Consequentemente, as mulheres têm menos tempo para o esporte profissional. A Tamires é uma exceção, pois o marido dela de uma certa forma reordenou sua carreira para acompanhar a Tamires. Em grande medida, o que acontece no Brasil é que são as mulheres que reordenam a sua carreira, suas vidas, para acompanhar seus maridos. Então, acho que tem essa relação mais ampla nesse sentido, porque não é apenas a maternidade, é toda uma estruturação familiar que se reordena a partir da mulher, que é algo que não é comum na nossa sociedade. 

E, depois, tem uma outra questão: claro que a maternidade implica um período que a mulher tem que parar de fazer atividade física; tem a gravidez, tem o pós-parto, tem o reinício. Quer dizer, em um esporte competitivo passar um anos fora de treinamento, e fora da lógica da competição, é algo que também faz com que as mulheres muitas vezes vão ter seus filhos depois de largar a carreira, ou seja, faz a trajetória esportiva e depois abandonam para se tornarem mães. Então, acho que vemos isso na nossa seleção também, o fato da Tamires ser a única mãe está dentro desse contexto. 

Muito provavelmente essas meninas que estão entrando agora com pouca idade, talvez elas façam essa maternidade quando elas estiverem saindo do campo. É exatamente por conta de toda essa estrutura que significa uma conjugação familiar que tem que se ordenar a partir da mulher, não a partir do homem.    

Como a gente vive uma estrutura de sociedade machista, geralmente as mulheres abrem mão dos seus espaços para acompanhar os seus maridos. Dificilmente a gente vivencia uma situação como a da Tamires, em que o marido se reordena para acompanhá-la, inclusive para jogar no exterior. Isso tudo precisa ser pensado em um contexto mais amplo, não é só o fato de gerar o filho.   

BdF: No governo Lula, foi criado o Bolsa Atleta, que ajuda as jogadoras com pagamentos mensais. Das 23 convocadas da seleção feminina, 17 recebem o auxílio do governo. Qual a importância do investimento para o crescimento do esporte e o que mais precisa ser feito a nível de políticas públicas?

Silvana: Como a gente não tem uma estrutura esportiva consolidada no país, não temos muito investimento de clubes de equipes. O bolsa-atleta foi fundamental para a manutenção de vários atletas, de várias modalidades esportivas. Lamento profundamente a redução das verbas investidas no esporte e, sobretudo no futebol. Aquilo que a gente falava antes: como a gente não tem uma cultura da modalidade, o bolsa-atleta foi fundamental para manter em condições mínimas algumas mulheres atuando. Fomentos como esse têm que ser necessários enquanto a modalidade não se estrutura, enquanto não se profissionaliza. 

Sempre tenho dito que o futebol para as mulheres no Brasil é uma ocupação, e não uma profissão. Muitas delas que jogam futebol nessas equipes que hoje estão disputando os campeonatos nacionais, e mesmo nos campeonatos estaduais, têm outra profissão porque elas não conseguem viver financeiramente só do futebol. Ou elas têm que largar o futebol para ganhar dinheiro, ou elas vivem ainda em condições muito aquém daquilo que elegeriam-as como atletas de uma modalidade. 

Então, voltando, políticas públicas de fomento para o futebol no Brasil são essenciais para a estruturação da modalidade, para que elas consigam, enfim, se profissionalizar. 

BdF: As jogadoras da seleção dos Estados Unidos abriram uma ação judicial contra a sua Federação por conta da discriminação salarial, exigindo salários iguais aos dos homens. A África do Sul, em 2019, também garantiu essa igualdade. No Brasil estamos muito longe disso?

Silvana: Sim, muito longe disso. 

Não é só a questão salarial. Eu acho que a Confederação Brasileira tem muito a fazer pelo futebol de mulheres no país. Eu participei do comitê de reformas da CBF em 2015, e foi feita uma série de indicações, apontamentos, que a entidade ainda não cumpriu. 

Depois teve todo aquele movimento com a demissão da Emily Lima, das jogadoras que saíram da seleção; houve uma reunião, houve uma carta aberta, escrita por 10 jogadoras e ex-jogadoras fazendo reivindicações de igualdade de gênero à CBF, que ainda não foram cumpridas. 

A primeira delas, e que eu considero a mais importante de todas, é a criação de um departamento de futebol feminino. Enquanto isso não acontecer serão sempre pequenas ações e não uma política estrutural de desenvolvimento da modalidade. Isso foi aprovado no comitê de reforma da CBF em 2015, e até hoje não se fez nada. 

Um departamento feminino tem que ter o objetivo de projetar a modalidade a curto, médio e longo prazo. Não podemos pensar o futebol de mulheres só em função dos jogos olímpicos, só em função da copa do mundo. Tem que ter um planejamento estratégico, que vai desde as categoria de base, formação de árbitras, formação de treinadoras, fomento das federações para que tenham campeonatos locais e regionais. A própria estruturação da CBF tem que ter uma série de coisas. 

Eu só acredito que isso possa se desenvolver de uma forma mais efetiva e séria quando a CBF assumir a necessidade de um setor específico do futebol feminino, e de preferência comandado por uma mulher que tenha experiência no futebol feminino. Não adianta colocar homens que não têm experiência na modalidade, que não têm experiência com o futebol de mulheres. A CBF tem ainda uma lacuna com relação a isso. 

Desenvolver a modalidade significa, repito, um planejamento a curto, médio e longo prazo, isso é pensar no futuro. É o que aconteceu na França e o que está acontecendo com a Inglaterra - há um planejamento colocado, não é só pensar efetivamente e ir resolvendo pequenos problemas, isso é que um departamento feminino deveria ter como primeiro objetivo. 

BdF: Como a valorização do futebol feminino pode contribuir com a igualdade de gênero nesse momento do país, em que as pautas femininas encontram resistência na parcela da sociedade que fala que "meninos vestem azul e meninas vestem rosa"?   

Silvana: Na medida em que nosso país se identifica como sendo o país do futebol, sendo ele o esporte mais popular, que mobiliza todo o imaginário esportivo do país, igualdade de gênero significa sobretudo a representatividade das mulheres, que espaço também pode ser delas. Não podemos depender da Marta para isso. Ela é uma figura fundamental, mas como ela tem muitas outras jogadoras que ajudam e constituem esse futebol brasileiro. É claro que ela é incomparável em termos de todas as conquistas que tem, mas eu gostaria que fossem valorizadas as mulheres que vieram antes, as que jogam hoje e as que ainda jogarão. É interessante pensar que a Marta se produziu fora do país, na Suécia, nos Estados Unidos. Não se constituiu aqui essa grande atleta que ela é, mas em países onde tinham campeonatos, salários, condições para se tornar uma atleta. Quantas outras Martas podem estar escondidas no nosso país sem a possibilidade de se desenvolver por falta de estrutura da modalidade, e não pela falta de talento?

Duas questões. Não podemos associar o futebol de mulheres do Brasil com a seleção, ele é apenas uma dimensão do futebol. Se pensarmos na profissionalização, tem várias dessas coisas que acabamos falando, como a visibilidade e a estrutura, isso é uma questão. E a outra é justamente que a seleção não é a Marta. A Marta é uma jogadora fundamental para a história do futebol mundial, mas quando ela deixar de jogar o que será da seleção, ou o que será do futebol das mulheres? Ela tem uma representatividade importante, ela mostrou que é possível. Uma mulher pode ser, sim, aquela artilheira de copas do mundo. Uma mulher pode ganhar seis vezes o título de melhor jogadora. Isso é fundamental. E brigar pela questão de gênero é dizer “puxa, ela conseguiu, por que outras não podem chegar até lá?”. Então, não podem muitas vezes por falta de oportunidade, não por falta de talento. Essas questões temos que começar a pensar, e de forma nenhuma em demérito à Marta. É o contrário: é dizer que outras Martas são possíveis.

BdF: Temos um presidente que, ao comentar a existência de uma filha mulher, disse que foi resultado de uma "fraquejada". Ou seja, desde que nasce, sob tal ponto de vista, a mulher é vista como "inferior". Em que o protagonismo das mulheres pode amenizar tal quadro no país e fazer com que muitos homens mudem sua opinião?

Silvana: A presença das mulheres no futebol, o protagonismo das mulheres em qualquer espaço nos quais elas são bem sucedidas, desconstrói esse discurso falacioso, machista, misógino e absurdo desse senhor. Não tem nem o que comentar porque é tão absurda essa frase, de uma pessoa que não consegue observar o protagonismo de um grupo de pessoas. E é mais absurdo que um homem público que dirige um país composto por quase metade de mulheres, pessoas das quais ele é responsável. 

Como ele quer o desenvolvimento de um país se ele considera que 50% da sua população isso aí que ele está dizendo? Isso revela a misoginia de uma pessoa que não tem o mínimo conhecimento do que as mulheres fazem e do que fizeram para o Brasil ser o que é. A história desse país não é construída só por homens, é construída por homens e mulheres. Só que as mulheres são invisibilizadas e são tratadas como ser menor, inferior. Por isso que os movimentos feministas são fundamentais, inclusive no futebol.  

 

Edição: Katia Marko