Preso político

Arbitrariedades e casuísmos marcam 500 dias da prisão do ex-presidente Lula

De Moro ao STF, processo envolvendo ex-presidente é repleto de decisões mais políticas do que jurídicas

Brasil de Fato | Brasília (DF) |

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Petista fez último ato público antes da prisão na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP)
Petista fez último ato público antes da prisão na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP) - Foto: Ricardo Stuckert

Completa-se nesta terça-feira (20) 500 dias da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ocorrida em 7 de abril de 2018 como resultado de um processo mais político do que técnico que é fortemente questionado na comunidade jurídica brasileira e internacional. Os vícios e as arbitrariedades da perseguição a Lula, segundo juristas ouvidos pelo Brasil de Fato, não se limitam aos fatos que permitiram sua prisão, mas continuaram ocorrendo depois dela.

Os abusos legais que levariam à detenção do ex-presidente começam pelo menos dois anos antes do momento em que ele é sai da sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (SP) e se apresenta na sede da Polícia Federal em Curitiba (PR).

Em setembro de 2016, o Ministério Público Federal no Paraná denunciava Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro: o petista teria recebido um imóvel no litoral paulista como propina em troca de vantagens concedidas em contratos públicos da Petrobras com a empreiteira OAS.

Marcelo Uchoa, advogado e professor universitário, afirma que há vícios de origem neste procedimento, detectáveis antes mesmo das revelações do site The Intercept Brasil, que, em sua opinião, apontam para uma “nulidade radical” por violação do “devido processo legal” e instauração de “um regime judicial de exceção”.

“Esse julgamento é totalmente nulo. Houve uma usurpação de diversas esferas. O MP, que tem papel de fiscal da Lei, agrediu o Direito ao denunciar uma pessoa sem prova. O juiz, por sua vez, que deveria ser isento, ajudou na investigação e na acusação”, diz.

Juíza aposentada, Raquel Braga destaca a relevância das mensagens divulgadas pelo Intercept e outros veículos de comunicação nos últimos dois meses, mas concorda com Uchoa no sentido de que os abusos já eram de conhecimento de todos:

“O primeiro crime é o abuso de autoridade. Testemunhas são conduzidas coercitivamente, como no caso do Lula, sem convite, sem intimação, sem se negar a se depor”, diz.

Ela ainda entende que Moro, diante das mensagens, poderia ser investigado por improbidade administrativa, prevaricação e formação de quadrilha.

Incompetente

Um dos vícios de origem citados por Uchoa é o próprio fato de ter sido Sérgio Moro, juiz federal no Paraná, a julgar Lula; já que o apartamento se localiza no Guarujá, o réu morava em São Bernardo, a sede da OAS fica na Bahia.

Na verdade, o primeiro a denunciar Lula pelo suposto caso foi o Ministério Público do estado São Paulo. A questão seria repassada ao MPF em Curitiba por decisão de instâncias superiores da Justiça, sob o argumento de que o fato teria relação com a corrupção na Petrobras. A competência judicial de Moro em diversos casos da Lava Jato, entretanto, sempre foi alvo de críticas de juristas. Afinal, a sede da estatal é o Rio de Janeiro.

A alçada de Moro – e da Lava Jato, em Curitiba – foi definida de forma heterodoxa: a operação se iniciou em Brasília, na investigação de lavagem de dinheiro em um posto de gasolina. Um dos envolvidos, o doleiro Alberto Yousseff, já havia sido réu em um processo julgado por Moro no caso Banestado. O juiz decidiu então que, por conta desse caso passado, a corrupção na Petrobras era sua competência. Sua interpretação foi validada tanto pelo Superior Tribunal de Justiça como pelo Supremo Tribunal Federal.

Ainda que a interpretação da Lava Jato pudesse ser correta, a sentença de Moro posteriormente apontaria que nunca o magistrado “afirmou que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-presidente”.

Antes da sentença de Moro, ainda em 2016, o próprio STF começava a pavimentar o caminho para a prisão de Lula mesmo que ele ainda tivesse direito a recorrer: na época, a maioria da Corte, contrariando a redação literal da Constituição, decidiu ser possível o cumprimento de pena após condenação em segunda instância.

Enquanto isso, Moro e Dallagnol continuaram trabalhando para incrimar Lula a qualquer custo. Em 20 de abril de 2017, Leo Pinheiro, da OAS, afirmaria pela primeira vez, em depoimento a Moro, que o apartamento do Guarujá seria entregue ao ex-presidente. O empreiteiro modificou sua versão dos fatos após uma prisão preventiva. Em julho daquele ano, Moro condenaria o petista. Depois, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) confirmaria em tempo recorde a condenação de Lula em janeiro de 2018.

Supremo

Depois disso, mais uma vez entra em cena o STF. Um habeas corpus preventivo que impediria a pisão de Lula chegou ao Supremo com o argumento de que prisões antes de esgotados todos os recursos contrariavam a Constituição. Havia outras ações, de caráter coletivo, questionando a posição tomada dois anos antes pela Corte.

A então presidenta do Supremo, ministra Cármen Lúcia, determinou que o pedido de Lula fosse julgado antes das ações gerais, em abril de 2018. A decisão seria chamada de “estratégia” por seu colega Marco Aurélio Mello. Funcionou: com os votos decisivos da própria Cármen Lúcia e da ministra Rosa Weber, venceu por 6 votos a 5 a tese de que Lula poderia ser preso. Rosa Weber chegou a afirmar que era contra a interpretação em segunda instância, mas que acompanharia o voto da maioria – num momento em que o resultado final ainda estava em aberto.

Lula quase livre, quase candidato, quase entrevistado

As arbitrariedades e casuísmos continuaram após a prisão. Em julho, o desembargador do TRF-4 Rogério Favretto, que cumpria plantão num domingo, concedeu liminar a favor da liberdade do ex-presidente a partir de novo habeas corpus impetrado por seus advogados.

O cumprimento da decisão deveria ser imediato, segundo a Lei, mas a Polícia Federal, acionada pelo próprio Moro, que estava de férias em Portugal, retardou a soltura até que o presidente do TR-4, Thompson Flores, derrubasse a liminar.

Mais tarde, entraria em campo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – que impediu Lula de se candidatar nas eleições presidenciais, ignorando diversos precedentes de casos similares, nos quais não houve indeferimento, e ignorando uma determinação do Comitê de Direitos Humanos da ONU no sentido de que, do ponto de vista legal e dos tratados internacionais, a candidatura deveria ser permitida.

Na sequência, nova arbitrariedade: atendendo a pedidos dos jornalistas Florestan Fernandes Júnior e Monica Bérgamo, o ministro do STF Ricardo Lewandowski permitiu que ambos entrevistassem Lula, mas a permissão foi derrubada por Luiz Fux e por Dias Toffoli.

Em dezembro, nova esperança, quando o ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar em favor de todos presos após segunda instância que aguardavam recursos. Porém, de forma inédita, o novo presidente da Corte, Dias Toffoli, cassou a decisão do colega.

Com o líder nas pesquisas preso e proibido de disputar as eleições, Jair Bolsonaro seria eleito presidente da República e convidaria Moro para ministro da Justiça. O juiz aceitou, evidenciando ainda mais sua atuação política no caso Lula.

Próximos episódios

O advogado Marco Aurélio Carvalho afirma que, em relação a Lula, “não estão aplicando o direito”, mas lembra que, a partir de setembro, uma “questão matemática” se coloca.

“O Ministério Público deu um parecer entendendo que pelo número de dias nos quais ele já ficou no regime fechado ele teria, frente à pena e aos outros critérios, condições de progredir da pena a partir de setembro. Isso mesmo sem fazer a remissão e a detração”, explica.

Além disso, há ainda um habeas corpus que pede a anulação do caso por conta da parcialidade de Moro, e também ações gerais que contestam a prisão após segunda instância, adiadas diversas vezes por Dias Toffoli.

De outro lado, um possível obstáculo: a iminência de uma nova condenação em segunda instância, por conta do chamado caso do sítio de Atibaia. Em um caso considerado “eminentemente político”, a lógica, a matemática e o próprio direito muitas vezes são vencidos.

Edição: João Paulo Soares