Rio Grande do Sul

LUTA PELA TERRA

Artigo | A ocupação da granja Macali: marco na luta camponesa no norte do RS (1)

Leia a primeira parte do artigo do professor, por ocasião dos 40 anos da ocupação da Macali e Brilhante

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Acampados do Master em Sarandi
Acampados do Master em Sarandi - Adelfo Zamarchi

O norte do Rio Grande do Sul, no século XX, revelou ser um espaço de grandes contradições na questão da terra. Amplas áreas apossadas por pecuaristas, tropeiros, madeireiros e colonizadores, entre a metade do século XIX e meados do século XX, produziram a exclusão indígena, de negros que viviam no meio rural e caboclos. Esses, possuíam pequenas posses, atuavam também como extrativistas da erva-mate e da madeira.

Formas variadas de apossamentos e, posteriormente, de apropriação privada da terra, processos de colonização direcionados a colonos de origem europeia, aldeamentos indígenas, dentre uma série de outros processos, foram produzindo conflitos, exclusões, esbulhos, marginalização e intrusão, processos sociais e econômicos que resultaram em intensos embates em torno da questão agrária.

No início da década de 1960 houve um grande movimento social denominado de Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra do Rio Grande do Sul), o qual, na parte norte do estado, teve uma grande expressão, com desapropriações de terra, acampamentos, enfrentamentos com o latifúndio, disputas jurídicas, etc. Fato esse que colocou em evidência o denominado “problema agrário” brasileiro e o tema da reforma agrária.

A “crise da terra” no estado, iniciada já nos anos 1940 e acentuada nos anos 1950 e 1960, provocada pelo esgotamento da fronteira agrícola em terras devolutas, o latifúndio pastoril e de produção de cereais, bem como o de reserva de valor e a penetração da modernização tecnológica no campo, originou o Master, que se definiu mais como uma estratégia de governo do que propriamente como movimento social. Entretanto, esse movimento serviu, ainda que de forma indireta, para despertar a opinião pública para a realidade agrária daquele momento, alertando para o esgotamento da fronteira agrícola e, ao mesmo tempo, denunciando, ainda que de forma tímida, a histórica concentração fundiária existente no Brasil, em geral, e no estado sulino, em particular.

Trabalhador rural do Master, em 1962 | Foto - Memorial da Democracia 

No norte rio-grandense, o Master teve atuação destacada nos emblemáticos movimentos de Capão da Cascavel, na antiga Fazenda Sarandi, e do Passo Feio, na reserva florestal de Nonoai, contígua a reserva indígena. A principal liderança neste cenário foi Jair de Moura Calixto, prefeito de Nonoai, primo-irmão do governador Leonel de Moura Brizola e seu fiel escudeiro. Calixto foi protagonista dos mais interessantes lances deste movimento na região. Os desdobramentos, as ações, as repressões, a contraposição da Igreja Católica, o papel da classe política, o trabalho da imprensa local e estadual, mostraram de forma inequívoca o envolvimento dele na causa da luta pela terra na região.

Por toda a década de 1970, indígenas se organizam no sul do Brasil para desintrusar suas terras, invadidas por camponeses, madeireiros, pecuaristas, granjeiros, os quais, incentivados por políticas, de integração nacional, de modernização produtiva na agricultura, etc., permitiram a entrada de não-indígenas em aldeamentos, provocando, com o passar dos anos, intensos conflitos e expulsões. No final da década de 1970, vários movimentos sociais, nos três estados do sul, objetivavam a expulsão de colonos intrusados nas terras indígenas. O de Nonoai no norte do Rio Grande do Sul foi de grande expressão, com milhares de famílias de colonos expulsas em poucos dias, resultando num intenso problema social a ser resolvido, pois esses sujeitos não tinham para onde ir.

O movimento indígena que resultou na expulsão de milhares de camponeses pobres que viviam na condição de posseiros no interior das reservas de Nonoai, constituiu-se num evento de dupla face: de um lado, do lado indígena, o evento se constituiu no coroamento de uma caminhada vitoriosa, que começou com um longo processo de preparação, amadurecimento e organização coletiva e que resultou na reconquista da terra; de outro, do lado dos colonos posseiros, o movimento serviu para mostrar o alto grau de desmobilização para a luta, desorganização e falta de espírito coletivo dos camponeses. Como consequência, milhares de sem terra ficaram a vagar pelas estradas na região de Nonoai, Ronda Alta e Sarandi.

Das mais de mil famílias expulsas da Reserva de Nonoai, a partir de negociações, propostas e promessas, num cenário de total ausência de perspectivas, em torno de 750 famílias foram transferidas, provisoriamente, para o Parque de Exposições de Esteio para, com promessa de estarem em melhores condições (auxílio, infraestrutura, etc.), permitir a discussão e a proposição de alternativas. Outro grupo permaneceu acampado próximo à reserva, outros ainda se espalharam pela região sendo apoiados e acolhidos por parentes e/ou em propriedades de conhecidos na circunvizinhança.

Porém, desde movimento surgem lideranças forjadas no campo popular, preocupadas na articulação de um movimento de abrangência mais ampla, capaz de fazer convergir para um mesmo foco propostas dispersas em torno da luta pela terra. Nesse horizonte de organização estava presente a Comissão Pastoral da Terra, lideranças religiosas e políticas de expressão popular, sindicalistas combativos, os quais, aos poucos, vão cooptando adeptos e ganhando espaço no terreno político. Já no final de 1978, criam-se as condições para a articulação de um movimento de resistência e pressão, a partir de um plano estratégico que começa a se esboçar com o surgimento de lideranças. Mas, naquele primeiro momento, a incipiente organização e a falta de uma participação mais consistente de parte das lideranças e intelectuais, o medo de represálias, o medo de ser mal visto perante a opinião pública, impediram a organização de um movimento imediato de ocupação. Permanece assim grande número de pessoas no abandono em toda a região norte do estado.

Mesmo no Parque de Exposições, o alojamento era precário, promessas não foram cumpridas e nem levadas em frente. O grupo no interior do parque esteve sempre sob forte aparato policial-militar, dificultando-lhe a saída e as visitas de entidades e populares solidários. Porém, essa tentativa de isolamento não foi tão eficiente, pois o fato de estarem próximos a capital, os colonos, de uma forma deliberada ou não, acabavam dando visibilidade maior à realidade e promovendo ampla discussão e denúncia sobre a questão da terra no estado e no país. A pressão para a adesão aos projetos de colonização na Chapada dos Guimarães e em Canarana foi intensa.

Após muitas negociações, promessas, outras não cumpridas, repercussões, mediações, solidariedades, pressões, etc., três meses depois, em torno de 550 famílias das que estavam no Parque de Exposições foram transferidas para projetos de colonização no Mato Grosso, numa região denominada de Terra Nova, em projetos de agrovilas, orientados por igrejas. Outras 130 famílias foram para assentamento em Bagé, sob orientação da Cooperativa Aceguá. Outro grupo que permaneceu acampado próximo da reserva e os que se espalharam pela região bateram pé na promessa do Governador Guazelli de conseguir terras no estado. Desse modo, parte, pelo menos, da realidade conflituosa e problemática dos colonos expulsos havia sido resolvida.

Porém, havia o problema dos que ficaram próximos ainda à reserva de Nonoai. Sem nenhuma proposta efetiva de reassentamento, na metade de 78, um grupo de 37 famílias ocupou a reserva florestal da Fazenda Sarandi. Em 05 de julho de 1978, dois dias após a primeira ocupação, já se encontravam mais de 100 famílias no interior da referida área. Portanto, a partir dos acontecimentos de Nonoai, a primeira consequência prática da revolta dos índios foi a invasão da reserva florestal da Fazenda Sarandi e uma outra área particular.

* Professor do Programa de Pós-Graduação em História na Universidade de Passo Fundo (PPGH/UPF)

Edição: Marcelo Ferreira