Rio Grande do Sul

RECONHECIMENTO

Empoderamento Coletivo: Dandaras se formam na UFRGS

Cerca de 70 mulheres negras ocuparam o salão de atos da UFRGS para diplomação do curso de formação politica

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Formatura iniciou com saudação das ialorixás
Formatura iniciou com saudação das ialorixás - Fotos: Fabiana Reinholz

Misto de expectativa e ansiedade, os olhos brilhantes, ora tensas, ora relaxadas, um grupo de mulheres negras, das mais diversas origens, idades e credos, se encontrou nesse final de semana. O motivo, a conclusão e a formatura do curso Dandaras — Construindo o Pensamento Crítico e Promovendo Formação Política com Mulheres Negras no RS, em cerimônia realizada no Salão de Atos da Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS), neste sábado (5). Coordenado e idealizado pelo Instituto Akanni, o curso realizado durante o ano de 2019 foi feito presencial e à distância e formou 120 alunas. A troca de experiências e vivências esteve presente durante o processo, mas sobretudo a memória da ancestralidade. Como o próprio significado da palavra de origem iorubá Akanni diz, “nosso encontro traz poder”, a importância do empoderamento coletivo foi uma constante nas falas e aprendizados dessas mulheres.

Mulheres negras, lideranças nos seus territórios, nas suas comunidades; quilombolas, LGBTs, acadêmicas, doutoras diplomadas por instituições e pela vida, mulheres múltiplas. Esse é o perfil das dandaras que se formaram nesse final de semana, que prestam homenagem à guerreira negra Dandara, que após ser presa, cometeu suicidou jogando-se de uma pedreira ao abismo para não retornar à condição de escrava, em 1694, durante o Brasil colonial.

Mais de três séculos depois, a luta da mulher negra persiste, ainda mais no atual período de ataques e retrocessos, como os advindos da reforma trabalhista, a eminência da reforma da Previdência e tantos outros ataques que impactam a vida de todos, em especial à vida das mulheres negras. É o que aponta a coordenadora do Instituto Akanni e idealizadora do projeto, Reginete Bispo, que destaca que a população negra responde por 60% da sociedade brasileira, sendo as mulheres o maior grupo populacional.

Reginete: "Mulheres negras precisam ser protagonistas dos processos históricos" 

“As mulheres negras historicamente no nosso Brasil estiveram na base da pirâmide. São aquelas que, apesar de ter uma história de lutas e resistência, têm maiores dificuldades para se inserir no mercado de trabalho, para ser reconhecidas nas suas qualidades. A situação é muito precária. Por exemplo, agora, que a gente vive uma crise desemprego, as mulheres negras são as que estão no grupo populacional que tem o maior índice de desempregadas. Em Porto Alegre, chega a mais de 25%, de trabalhadoras negras que estão desempregadas. A violência que incide sobre a população e sobre as mulheres, sobretudo, incide com uma força muito mais agressiva sobre as mulheres negras, basta pegar o relatório de feminicídio, de homicídios de mulheres. Enquanto das mulheres não negras diminui nos últimos anos, das negras aumenta de forma assustadora”, ressalta.

Com o intuito de alterar essa realidade e dar suporte e formação política a essas mulheres foi que se fez o curso, com muito carinho e com muitas mãos, conforme aponta Reginete. “Entendemos que para alterar essa realidade de exclusão, de miserabilidade, de violência sistemática, de racismo institucionalizado, do machismo, as mulheres negras precisam ser protagonistas dos processos históricos. Nós estamos alijadas dos espaços de poder e decisão, e esse curso vem no sentido de se agregar com várias outras iniciativas de luta das mulheres negras, de nos preparar, de nos articular para que esses espaços sejam ativamente ocupados por nós”, afirma.

O curso teve duas turmas presenciais e mais uma de Ensino à Distância (EAD). As aulas se realizaram aos sábados, de 15 em 15 dias, com carga horária de 60 horas. Foi produzido em parceira com a Escola de Enfermagem da UFRGS, da qual é um curso de extensão sob co-coordenação da professora Fernanda Bairros. Estiveram envolvidos nove professores com as aulas das duas turmas, sendo sete mulheres e dois homens, trabalhando conteúdos em seis eixos: Cultura, Corpo e Identidades; Gênero e Feminismo Negro; História da África e Brasil Colônia; Marcos Legais das Políticas e Enfrentamento ao Racismo; Economia, Saúde e Educação; e Conjuntura, Boas Práticas e Apresentação do Produto.

Reginete disse que se tentará continuar com o curso de formação política para mulheres negras. “A conjuntura coloca isso, exige isso, aprofundar o conhecimento dessas que estão se formando hoje e fortalecer uma rede de articulação de mulheres negras aqui no estado e quiçá no país”.

A importância da troca de saberes 

Para Lilian, partilhar empoderamento é fortalecer-se mutuamente 

Natural de Recife (PE) e morando há seis meses no Sul, onde fez mestrado e doutorado, a reverenda episcopal da Igreja Anglicana do Brasil e ativista feminista negra, Lilian Conceição da Silva, foi professora do curso Dandara, sobre marco legal. Para ela a troca foi reciproca entre alunas e todos os envolvidos com o curso. “Foi um presente divino, um encontro de ancestralidade, de gerações, foi uma alegria poder ouvir histórias de vidas, muitas delas marcadas por pelo racismo estrutural que faz parte dessa história aqui no Brasil, e poder perceber como essas histórias se intercruzam. A medida que se partilha desse sofrimento, também se partilha sobre a maneira como cada qual foi forjando meios de enfrentar e superar esses racismos”, conta.

Em sua avaliação viver a partilha de empoderamento com mulheres negras é sem dúvida alguma criar um espaço de fortalecimento mútuo, de reconhecimento de que de fato os nossos passos vêm de longe.

Para a caçula do curso, Tais Silva, 17 anos, que está concluindo o ensino médio, a experiência foi incrível e que agregará para formação que pretende seguir no curso de ciências sociais. “Levo para minha vida muito conhecimento e experiência através dos relatos de outras mulheres, a percepção da qual nossas histórias se cruzam, mas ao mesmo tempo a gente percebe o quanto a gente é diferente. Foi muito importante pois contribuiu com a autoestima, autoconfiança, de nós nos colocarmos na sociedade e ter essa capacidade de enfrentar o racismo e todas as formas de opressão”, comenta.

O resgate da autoestima também foi lembrado pela aluna Solana Corrêa, de Bento Gonçalves. Formada em pedagogia e coordenadora do movimento negro raízes de Bento Gonçalves, fez o curso através da modalidade EAD. “O curso foi muito importante para o nosso próprio reconhecimento como mulher, de ocupar o nosso espaço que nos é de direito. Eu levo a força de saber que não estou sozinha, que o empoderamento da mulher é de extrema importância, do resgate da autoestima, e também levar o pensamento firme e forte de que temos sim que estar em todos os espaços, que eles nos pertencem”, finaliza.

Conselheira da assistente social do eixo Baltazar, e coordenadora do serviço de informação à mulher, Tânia Mara da Silva Garcia, destaca que entre todos os aprendizados, guardará e aplicará a troca de saberes que teve com as outras colegas e lideranças comunitárias presentes no curso, assim como o conhecimento dos direitos das mulheres negras. “Esse curso ensinou que nós, mulheres negras temos que nos empoderar, nos valer dos nossos direitos. Muitas mulheres negras acham que por ser negra, ao se chegar em determinados espaços, não são vistas, as pessoas não as enxergam. E quando ficam sabendo do cargo que tem, ela passa a ser vista”, comenta. Reafirma que tudo que aprendeu será posto em prática com um grupo de haitianos com quem trabalha.

Encontro de gerações 

Mãe e filha se formaram juntas 

Mãe e filha subiram ao palco e sentaram-se lado a lado. Vera Beatriz Fiusa Silveira, 57 anos, ensino médio completo, no momento desempregada, como muitos brasileiros, fez o curso junto de sua filha, Vanessa Fiusa, 25 anos, estudante do curso de licenciatura em dança da UFRGS. “A experiência foi excelente. Elas já vinham trazendo esse empoderamento da mulher negra. Elas me fizeram o convite, foi bem no período que eu tinha perdido a minha mãe. Simplesmente me encantei, abriu meus horizontes. Foi um momento que eu encontrei também como uma mulher, como uma das aulas foi que o nosso corpo é político, a gente faz política em qualquer canto que a gente esteja, não somente política partidária”, aponta Vera.

Para a filha, Vanessa, “foi um momento importante não só para mim, mas estar junto com a minha mãe, da gente se reconhecer enquanto mulher negra na sociedade em Porto Alegre e perceber, a partir da nossa história, que alguns estereótipos acabam limitando a nossa vida. Esse curso foi importante a gente ter aulas de história, de feminismo negro, sobre segurança pública para gente entender como que o povo negro tá relacionado nessa cidade”, explica.

A solidão da mulher negra 

Para Nara de Oxalá, formatura foi um marco na sua vida 

Dois dias após a formatura, a aluna Nara Regina, de 56 anos, a mãe ialorixá Nara de Oxalá, ainda se sente em estado de êxtase e grata pelo significou a formatura e todo o processo do curso. Ela conta que o que a motivou foi a solidão da mulher negra, “onde tu se sente sozinha, desamparada, discriminada pelo racismo e por todas as coisas negativas, portas fechadas, sem saber para onde ir, com quem falar, com quem conversar. O que me estimulou foi isso, entrando em uma depressão, mesmo rodeada de pessoas, mas me sentindo sozinha. A mulher negra que tem a responsabilidade que tenho, de uma casa Afro, batuque, se sente sozinha, em trazer aquilo que lhe foi mostrado, que foi ensinado desde criança, o que minha vó ensinou”, desabafa.

“Quando tu vê que é possível realizar esse sonho que foi dado, um presente na verdade conhecer a Akanni, ter o privilégio de fazer parte de um grupo onde posso falar sobre a minha história, sobre a história da mulher negra, numa sala enorme cheia de mulheres com histórias diferentes, mas ao mesmo tempo iguais, porque no final todas tem a história de dor. Dali tu começa a se sentir empoderada, tu começa a se sentir visível, porque nós somos invisíveis, um país racista como nosso, ele te machuca, as pessoas te machucam muito”, conta Nara.

“Essa formatura foi um marco na minha vida, levar para aquele palco, daquela universidade, que tem uma potência enorme aqui e no mundo também. Até estou impactada me perguntando se realmente isso aconteceu, e eu sei que aconteceu. Estou muito gratificada, hoje a palavra é gratidão”, conclui.

A cerimônia 

Tambores, acompanharam todo o processo de formatura. Ao subir no palco, as alunas tiveram uma saudação de ialorixás, da mãe Nara de Oxalá, também aluna. Antes da entrega dos diplomas, uma homenagem a mulheres negras que “ousaram enfrentar as estruturas do Estado” . No encerramento, teve apresentações das alunas e de imigrantes haitianas.

Conheça, em matéria do Sul 21, as outras Dandaras.

 

Edição: Marcelo Ferreira