Rio Grande do Sul

FEMINISMO

Nísia Floresta, precursora do feminismo no país, tem obra lançada pelo Senado Federal

Opúsculo Humanitário, terceiro volume da coleção Escritoras do Brasil, foi lançado na Feira do Livro de Porto Alegre

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Livro de Nísia escrito em 1853 subverteu os padrões existentes na época
Livro de Nísia escrito em 1853 subverteu os padrões existentes na época - Foto: Divulgação

"Quanto mais ignorante é um povo tanto mais fácil é a um governo absoluto exercer sobre ele o seu poder. É partindo desses princípios, tão contrário à marcha progressista da civilização, que a maior parte dos homens se opõe a que se facilite à mulher os meios de cultivar o seu espírito", escreveu Nísia Floresta, em "Opúsculo Humanitário", de 1853, que reúne 62 artigos da educadora, escritora e poetisa.

Precursora do feminismo no Brasil, Nísia Floresta, batizada com o nome Dionísia Pinto Lisboa, era filha de Dionísio Pinto Lisboa e Antônia Clara Filha e nasceu no dia 12 de outubro de 1809, em Papari, município que hoje tem seu nome, no Rio Grande do Norte. Vinda de uma família tida como abastada para os padrões da época, Nísia subverteu os padrões existentes. Aos 14 anos, casou contra sua vontade com Manuel Alexandre Seabra de Melo, abandonando-o em 1824, voltando a viver com seus pais.

Em estada por Olinda, conheceu o seu segundo marido, o bacharel em Direito Manuel Augusto de Faria Rocha, com quem teve duas filhas e de quem ficou viúva aos 23 anos de idade, quando morava em Porto Alegre. Nísia era uma ferrenha defensora da educação para a mulher, uma educação para além do ensino doméstico, que incluísse história, geografia, português, francês, latim. Apesar dela ter criado uma escola, suas ideias não foram absorvidas na época e ela se muda para França, onde acaba falecendo.

Ilana Trombka falou ao Brasil de Fato sobre Nísia Floresta e a importância da coleção / Foto Fabiana Reinholz

Com o objetivo de resgatar a história de Nísia, e de tantas outras escritoras, nasceu esse projeto. O Brasil de Fato RS conversou com Ilana Trombka, servidora pública e mestre em comunicação social, atualmente Diretora-Geral do Senado, que falou sobre Nísia Floresta e a importância da coleção. “A ideia é retomar não só a produção intelectual dessas mulheres, mas também refletir sobre como aquela produção intelectual dialoga com os dias de hoje. E aí é enriquecedor e ao mesmo tempo triste poder ler essas obras e perceber que muitas das temáticas trabalhadas em 1830, 1840, 1880 parecem, de uma forma vexatória, atuais. Quando a gente não valoriza os direitos já conquistados, a chance de perdermos é muito maior.”

Até o momento, foram lançados os seguintes livros: “Mulher Moderna”, de Josefina Álvares de Azevedo e "Ânsia Eterna", de Júlia Lopes de Almeida

O lançamento de Opúsculo Humanitário aconteceu nessa segunda-feira (11), durante a 65ª Feira do Livro de Porto Alegre.

Lançamento na Feira do Livro de Porto Alegre / Foto Fabiana Reinholz

Abaixo, a entrevista completa:

Brasil de Fato RS: Ilana, vocês estão lançando essa obra da Nísia Floresta, que faz parte de uma coleção chamada Escritoras do Brasil. Então queria que tu nos contasse porque vocês resolveram relançar essas autoras, fazer essa coleção?

Ilana Trombka: Essa foi uma ideia do grupo de colegas da Biblioteca do Senado que foi até a direção da casa e propôs uma coleção de mais de 30 volumes para que a gente pudesse dar visibilidade a produção de mulheres do século 19 e começo do século 20, que foram invisibilizadas ou não tiveram o seu trabalho com a devida repercussão, tendo em vista as questões de gênero. Esse é o terceiro número que a gente lança, os três primeiros foram esse ano, e a gente tem já aprovado mais 27 números dessa coleção.

A ideia é retomar não só a produção intelectual dessas mulheres, mas também refletir sobre como aquela produção intelectual dialoga com os dias de hoje. E aí é enriquecedor e ao mesmo tempo triste poder ler essas obras e perceber que muitas das temáticas trabalhadas em 1830, 1840, 1880 parecem, de uma forma vexatória, atuais. Então, ao mesmo tempo que a gente resgata essas obras que tiveram pouca difusão e que são extremamente ricas, a gente traz à luz essas reflexões.

BdFRS: E já tem as autoras que vão ser trabalhadas nesse próximo ciclo?

Ilana: Ainda não. Como nós temos agora os próximos lançamentos para o ano que vem, estamos agora preparando o material. Isso porque, primeiro a obra tem que estar em domínio público. Depois tem a questão da linguagem que é muito importante, a gente faz uma revisão do livro, atualizando as grafias das palavras, mas não a linguagem. A grafia é revista para atualização para o português atual, mas não os termos que eram utilizados na época, isso é mantido.

Por exemplo, o primeiro livro que a gente lançou era da Josefina Álvares, meio irmã do Álvares de Azevedo, que no seu último artigo falava, por exemplo, “que tu teiras” e “que tu teires”, que a gente quase não usa mais esse termo, mas ele está lá, só que nessa edição com a grafia correta.

Então tem essa seleção, depois ela tem que estar em domínio público, depois a gente faz essa revisão do livro, para enfim depois fazer a formatação lançamento do livro.

BdFRS: E esse é um trabalho que a biblioteca do Senado está fazendo, de ir atrás desse material, como está sendo essa busca?

Ilama: Há um grupo na biblioteca formado por colegas da ativa e alguns colegas que já se aposentaram, mas colaboram com esse grupo que faz essa linguagem. Por exemplo hoje, a doutora Ilda Flores, que vai participar do debate, trouxe um livro (Ramalhete) que foi primeiramente editado em 1845, e que é de uma escritora gaúcha, Ana Eurídice Eufrosina de Barandas, que dialogava com a Nísia Floresta. Tem uma parte do livro que são os diálogos entre elas que trata exatamente sobre essas ideias de participação da mulher.

Na verdade, a medida que essa coleção começa a repercutir, a ficar conhecida, a gente vai recebendo muitos materiais. E vai também conseguindo duas coisas: junto ao seu público, uma reflexão, e junto à intelectualidade é mostrado um espaço, que as vezes não existe para que essas coisas venham à tona, e aí com esse projeto elas aparecem. É muito trabalho de pesquisa bacana.

BdFRS: Nós temos um mercado editorial muito masculino, e nessa época era muito mais. Então tu trazer à tona essas mulheres que tinham uma produção, a história dessas mulheres...

Ilana: A história da Nísia Floresta é impressionante, primeiro porque o livro dela, Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, foi o primeiro livro feminista do Brasil. É um livro que ela faz uma tradução adaptada de um outro livro. É uma publicação de 1832 que a Nísia Floresta, então com 22 anos, que se tem notícia, trata de temas feministas. E o que é Nísia Floresta, o que ela trabalha é impressionante, impressionante que parece absurdo: que as mulheres tinham capacidade de aprender. Veja bem, havia uma dúvida de que se as mulheres tinham essa capacidade.

Ilustração de Nísia Floresta / Wikimedia Commons

O que ela defende, primeiramente, é que a mulher tem capacidade de aprender, sim, fica parecendo uma coisa impressionante. E ai ela dizia que as mulheres tinham capacidade de aprender e por isso tinham que existir escolas para mulheres, que não ensinasse só os dotes domésticos, mas que ensinasse história, geografia, português, francês, latim, e muita gente dizer que isso não tinha nenhum cabimento.

BdFRS: E de que forma esse trabalho dela desencadeou algo na sociedade?

Ilama: A história da Nísia Floresta é a seguinte: ela vem de uma família de pai português com certas condições financeiras suficientes, ou até abastada. Só que, aos 13 anos, é feito um casamento arranjado e ela casa. Aos 14 ela foge do casamento e volta para casa. Só que aí ela, aos 14 anos, já não é mais virgem, porque já tinha sido casada e é separada. Por isso ela começa a ter uma rejeição da sociedade da cidade onde ela vivia, que hoje se chama Nísia Floresta, mas que na época se chamava Papari, e é obrigada a sair de lá, porque passa a ser conhecida na cidade como prostituta. Ela vai para Olinda, e ainda muito jovem, conhece o segundo marido. Não foi um casamento, porque ela era casada, mas foi uma relação por amor, e lá ela faz a sua primeira escola, que era frequentada majoritariamente por estrangeiros e não por brasileiros.

Chega um determinado momento que ela não consegue que as suas ideias sejam absorvidas na sociedade pernambucana e se muda para Porto Alegre, e aqui ela tem o terceiro filho. Ela já tinha tido uma filha, e o segundo filho faleceu. E em Porto Alegre falece o marido. Ela resolve ir embora para o Rio, e aí acontece a mesma coisa, as ideias dela não conseguem permeabilidade, e ela vai embora para França, e morre lá, aos 75 anos, onde é enterrada. Em 1954, quando o Café Filho era o presidente do Brasil, a Academia de Letras do Rio Grande do Norte pede a repatriação dos restos mortais dela, ele é repatriado e a cidade Papari, onde ela tinha nascido, passa a se chamar Nísia Floresta.

E aí ela, claro, com o surgimento das ideias já nessa época do mundo do feminismo, ela passa a ter um significado. Observa-se que ela era, ao mesmo tempo, uma mulher muito católica, muito religiosa. E é engraçado como ela consegue em sua narrativa juntar as questões cristãs com as questões de desenvolvimento da mulher. Nísia faz essa junção toda, tanto que ela fala, por exemplo, que nas sociedades antes de Cristo, as mulheres não eram valorizadas porque ainda não existia o valor cristão e nem a figura de Maria, e a importância da figura de Maria na religião cristã, mostrando a importância da figura da mulher. Ela consegue fazer toda uma consertação nesse sentido.

Basicamente as ideias dela eram o direito da mulher estudar, a educação da mulher. E como nessa época se discutiam também outras pautas como a república, abolição da escravatura, os direitos indígenas, ela acaba se envolvendo de uma forma muito progressista em todas essas causas, mas a causa principal dela é a questão da educação para as mulheres.

Ilana: "basicamente as ideias dela eram o direito da mulher estudar" / Foto Fabiana Reinholz

BdFRS: Como tu enxerga a importância dentro de todo esse contexto que a gente está vivendo hoje, de estar resgatando autoras como a Nísia e tantas outras?

Ilana: O primeiro, como te falei, foi a Josefina Alvares, o segundo da Júlia Lopes de Almeida e esse, agora, da Nísia Floresta. Acho que a gente precisa trazer à luz algumas reflexões. Cada um pode ter seu o seu posicionamento pessoal, mas é necessário, no mínimo, você ter contato com essas publicações para poder ter condições de refletir. Refletir sobre o que não se sabe é uma reflexão vazia, e eu acho que as mídias sociais acabaram trazendo diálogos em que se chama atenção os extremismos, o que dá muito pouco espaço para uma reflexão equilibrada. Então a gente tem que atuar trabalhando reflexões mais lógicas e valorizando também a questão histórica, porque não é possível se abster de refletir sobre o que aconteceu nesse último século meio, nesses últimos dois séculos, e não entender o que se chegou, como se chegou.

Eu hoje estava conversando com uma colega e ela dizia que nos anos 70 as imagens que você pega, por exemplo, da Arábia Saudita, as mulheres estão de minissaia, de calça, de camiseta na rua, e hoje estão todas de burca. Quando a gente não valoriza os direitos já conquistados, a chance de perdermos é muito maior.

Ilana: Quando a gente não valoriza os direitos já conquistados, a chance de perdermos é muito maior  / Foto Fabiana Reinholz

BdFRS: O Senado aprovou um Plano de Equidade de Gênero e Raça, queria que tu falasse um pouco sobre esse plano.

Ilana: Esse plano é o resultado de um trabalho de cinco anos atrás, hoje organizado, encapsulado em um plano de 24 meses, discutido em 17 áreas do Senado. Diz como o Senado quer evoluir nas questões de Equidade de Gênero e Raça, tanto no que diz respeito à comunicação, como às questões culturais, de infraestrutura, educação. E o bacana disso é que o tema de Equidade de Gênero e Raça já está tão internalizado no Senado que hoje já não é mais necessário determinar que área faça isso ou faça aquilo. As áreas se reúnem e conseguem avaliar suas capacidades e, sozinhas, conseguem produzir um material que é muito importante na medida em que nos direciona para os próximos 24 meses. Ele diz o que vamos fazer nos próximos 24 meses, em quais prazos e com quais responsáveis. Isso nos dá o traçado que queremos seguir nos próximos dois anos.

Na prática, por exemplo, colocar fraldários nos banheiros femininos, masculinos e unissex, esse está para seis meses. Uma que nós já conseguimos, inclusive, que era para seis meses, que é estender a Mãe Nutriz, para as mulheres do Senado que têm filhos terem sua jornada reduzida, de seis horas, sem redução de carga horária nos primeiros 24 meses da vida do bebê. Era 15 meses e a gente tinha um prazo de, em seis meses, aumentar para 24. Essa por exemplo já foi até publicada. Outro objetivo do plano de Equidade em relação a essa questão da licença é fazer um estudo para estender a aqueles pais que são responsáveis pela criação dos filhos, ou porque são viúvos, ou porque adotaram solteiros, ou porque fazem parte de um casamento homoafetivo, as mesmas condições da mulher. Ainda está em estudo, mas está no plano.

Também internalizar que não é possível haver no Senado debates em que a mesa seja composta única e exclusivamente por um gênero só, nem só homens, nem só mulheres, para que tenham um diálogo entre os gêneros. Isso tudo está no plano de Equidade.

BdFRS: Vocês também estabeleceram um programa de cotas para vítimas de violência nos contratos de serviço terceirizado no Senado. Comente.

Ilana: Isso existe desde 2016, toda a terceirização de mão de obra do Senado tem 2% das vagas reservadas à mulheres vítimas de violência que já passaram pelos abrigos de mulheres do Distrito Federal (DF). Isso já funciona, a gente tem agora 32 mulheres já empregadas e até o final de 2021 chegaremos a 60, esse já está em andamento. E o que está acontecendo agora é que ele está sendo levado para muitas instituições. Vários estados já levaram essa iniciativa, inclusive já virou projeto de lei, que já foi aprovado no Senado e está em tramitação na Câmara dos Deputados. Ganhou um prêmio ano passado da revista Marie Claire e do Instituo Avon, prêmio de empreendedorismo social.

Assista à cobertura do lançamento do livro: 

 

Edição: Marcelo Ferreira