Tributação

“Reforma tributária pode ser uma força para nos mobilizar”, avalia especialista

Integrante do Projeto Brasil Popular Paulo Gil defende que debate sobre impostos no Brasil precisa alcançar população

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Discussões sobre a reforma são tratadas como urgentes, mas Congresso ainda não criou grupo que prometia agilizar debate
Discussões sobre a reforma são tratadas como urgentes, mas Congresso ainda não criou grupo que prometia agilizar debate - Roque de Sá/Agência Senado

A necessidade de que o debate sobre a reforma tributária não se restrinja aos grandes empresários e à classe política é o principal ponto do discurso do especialista em tributação Paulo Gil. Ele integra o Projeto Brasil Popular, que reúne bases sociais, pensadores e organizações políticas para construir soluções de combate à crise econômica e social que atinge o país. "Se tivermos consciência de que esse instrumento é importante e que a história já mostra que isso deu certo, a questão tributária pode ser uma ideia-força para nos mobilizar", afirmou em entrevista ao Brasil de Fato.

Assunto prioritário para a gestão de Jair Bolsonaro em 2020, a reforma tributária pretendida pela equipe econômica do governo não deve representar mais justiça no sistema de pagamento de impostos do Brasil. Também não estão no horizonte do que foi divulgado até agora soluções para que os tributos sobre produtos e serviços não sejam tão nocivos aos pobres e à classe média e para que os mais ricos paguem mais.

Além disso, o debate sobre as ideias do governo está atrasado. Senadores e deputados prometeram uma comissão parlamentar que trataria do tema ainda durante o recesso, mas até agora nenhum direcionamento nesse sentido foi criado no Congresso Nacional.

Paulo Gil coordena o grupo que discute a reforma tributária no Projeto Brasil Popular, participou da construção da chamada reforma tributária solidária e faz parte do Instituto Justiça Fiscal. Nesta entrevista, falou sobre como o sistema tributário de um país pode ajudar a reduzir ou aumentar as desigualdades, o que pretende o projeto do governo Bolsonaro e como existem outras propostas de reforma sendo elaboradas. Leia a entrevista:

Brasil de Fato: Muitos estudiosos, pesquisadores e observadores de diversas áreas citam o sistema tributário como uma espécie de espelho da realidade de um país, inclusive no que diz respeito às desigualdades. Como essas duas coisas se alinham?

Paulo Gil: O sistema tributário está estreitamente relacionado ao tipo de Estado que se pretende e que atua em um país. Ao longo da história, antes das duas guerras mundiais, você tinha o capitalismo do “deixe fazer”, “viva e deixe viver” e do livre mercado. Isso conduziu a duas guerras mundiais, conduziu a revoluções, conduziu à depressão econômica dos anos 30. Quando Estados Unidos, Europa e Japão saíram da Segunda Guerra, eles passaram a perceber que o capitalismo não pode ficar sem freios.

Você vai ter um Estado que promove mais bens públicos, em que você tem saúde universal, educação, previdência pública. Você tem políticas públicas universais e um Estado que intervém para diminuir as desigualdades que o capitalismo gera. Ao final dos anos 1970, o pêndulo da História muda por conta de dificuldades econômicas, da inflação e de uma certa revanche das classes dominantes e empresariais -- a revolta do capital. O Estado vai de novo para o liberalismo e o livre mercado. Isso sempre com a tributação se modificando.

No Estado de bem-estar social, você tinha a tributação progressiva, que é tributação sobre a renda. No Reino Unido e nos Estados Unidos, no pós-guerra, chegaram a 98% e a 94% as maiores alíquotas para os muitos ricos.

Ou seja, quem era mais rico pagava mais.

Pagava bem mais. Qual é a mensagem que se passa com esse tipo de tributação, nesse tipo de Estado? A mensagem é: a desigualdade é intolerável. Havia um consenso na sociedade em relação a essa ideia.

Vem o neoliberalismo e diz o contrário: a desigualdade é um valor positivo. E mais: chama os sindicatos de poder nefasto que exerce pressões parasitárias sobre o Estado e que diminuía as margens de lucro.

A crise de 2008/2009 joga o neoliberalismo novamente quase ao fundo do poço e, novamente, se pensa num Estado que atue mais na economia. Então a tributação sempre está relacionada a esses movimentos e está relacionada também à história de cada país.

Como essa lógica se aplica no Brasil?

Aqui no Brasil, nós tivemos uma nação construída sobre o latifúndio e a escravidão. A legislação trabalhista de Getúlio Vargas não entrou porteira adentro das fazendas, não atingiu os trabalhadores do campo. Há uma herança escravocrata que se reflete também na tributação, um certo patrimonialismo.

As classe proprietárias é que faziam as leis até a Revolução de 1930. Elas não faziam leis para tributar o próprio patrimônio. Mesmo no período em que o Estado é mais forte, não há o mesmo componente de progressividade que existia na Europa, porque há uma correlação de forças desfavorável que existe em relação às classes populares no Brasil.

A tributação reflete muito isso. Os dois países que têm uma isenção absoluta e total sobre os lucros e dividendos distribuídos -- Brasil e Estônia -- o fazem por conta dessa correlação de forças desfavorável que atravessa o tempo. É uma classe dominante que espolia o seu povo e espolia as riquezas do país e que consegue esses benefícios. Mexer na tributação é uma questão política.

Qual seria a forma mais justa de corrigir essas distorções históricas?

Do ponto de vista técnico, uma tributação progressiva faz diminuir demais as desigualdades sociais. Quem ganha mais paga proporcionalmente mais, quem ganha pouco não deve pagar nada, quem ganha um pouco mais paga um pouco mais e quem ganha muito devia pagar muito.

Aplica-se também o conceito de progressividade e regressividade em relação ao sistema como um todo. Se você considerar a incidência de todos os tributos: sobre a renda, sobre as propriedades, sobre o consumo, no final o sistema é progressivo ou regressivo? No caso do Brasil, é regressivo.

A tributação sobre o consumo é repassada aos preços. No Brasil, ela representa cerca de 50% a 60% da arrecadação nacional. A média na OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] é de pouco mais de 30%. Nos Estados Unidos, a tributação sobre o consumo é também de pouco mais de 30% e a renda é tributada em patamares semelhantes a esse. No Brasil, a renda é tributada em 18%.

É uma defasagem muito grande. Uma reforma tributária de verdade precisa aplicar a progressividade dos tributos sobre a renda e a propriedade.

Por exemplo, grandes heranças: até os liberais consideram que é muito injusto alguém crescer na vida por conta de receber uma herança. Nos Estados Unidos e na Inglaterra, não se admite que alguém receba uma herança e não pague tributos. As alíquotas sobre herança já foram de 70% nesses países. No Brasil, a tributação sobre herança é de 4% ou no máximo de 8%, dependendo do estado.

Precisamos gerar um arrecadação maior na tributação dos rendimentos muito elevados e do grande patrimônio e desonerar a tributação do consumo, diminuir a tributação de energia elétrica, de medicamentos e dos bens de primeira necessidade em geral. Os mais pobres consomem mais do que ganham e se endividam. Eles pagam muito mais tributo proporcionalmente do que os mais ricos.

O projeto de reforma tributária que o governo atual sinaliza que vai enviar ao Congresso conseguiria corrigir as discrepâncias históricas do Brasil?

Pelo que foi anunciado na imprensa -- porque o governo ficar num vai e vem e não envia o texto --, seria uma reforma tributária que tornaria o sistema mais regressivo.

Veja o caso do fim da possibilidade de isenção do trabalho doméstico no imposto de renda, por exemplo. Vai pesar no bolso da classe média e contribuir para a informalidade. Eles tiram essa possibilidade, mas não se preocupam e não priorizam o fim da isenção total e completa sobre lucros e dividendos distribuídos.

O trabalhador e a classe média assalariada declaram seus rendimentos na ficha de rendimentos tributáveis, enquanto os empresários declaram na ficha de não tributáveis.

Recentemente, a assessora especial do Ministério da Economia, Vanessa Canado, afirmou que há a intenção de tributar os mais ricos, mas sem correr o risco de que a renda dessa parte da população seja levada para o exterior. Esse risco existe?

É um argumento muito cínico. Fruto do cinismo. Quem é o homem mais rico do Brasil? Pela revista Forbes, é o empresário Jorge Paulo Lemann. Ele mora na Suíça.

Quem imagina que um multinacional vai deixar o país se você tributar adequadamente os seus lucros? Hoje a distribuição dos lucros já é remetida para fora do país e sem nenhum tributo!

Outro problema: a "pejotização". O principal motivo desse movimento de transformar trabalhadores em pessoas jurídicas ter ganhado amplitude é a diferença gritante entre a tributação da pessoa jurídica e da pessoa física. O trabalhador presta um serviço e o pagamento que ele usa para sobreviver é taxado como lucro.

Aplica-se a lógica do capital para os trabalhadores. A reforma tributária do governo tende a piorar isso. No ano passado, o Banco Itaú lucrou 25 bilhões de reais. Desse lucro, foram distribuídos 22 bilhões de reais desonerados de tributação para as famílias e acionistas proprietários do banco. Sem nenhum imposto, completamente desonerado.

Ou seja, o problema a ser atacado está na nossa frente.

O governo vende essa reforma como a salvação da economia, assim como vendeu a reforma da Previdência e assim como o governo anterior tratou a reforma trabalhista. Tem alguma verdade nesse discurso?

Não havia verdade nesse discurso nem na reforma da Previdência, nem na reforma trabalhista -- que prometia criar mais empregos --, nem na tributária.

Há duas propostas que já tramitam no Congresso, uma de iniciativa parlamentar e outra de uma entidade chamada Centro de Cidadania Fiscal, que reúne as maiores empresas do país. É uma organização do grande empresariado. São grandes empresas que querem fazer uma reforma que mexa apenas com a tributação do consumo.

São propostas que dificultam o crescimento econômico. Os mais pobres pagam a mesma quantidade de impostos que os mais ricos quando compram algum produto. Dessa forma são obrigados a gastar tudo o que ganham. Ao desonerar a tributação sobre os mais pobres, aí sim há um estímulo à economia. Ao mesmo tempo em que tirar recursos dos mais ricos gera um fortalecimento do Estado para que ele seja um indutor do desenvolvimento econômico, coordene melhor os investimentos e melhore a infraestrutura social.

Isso gera um efeito de um ciclo virtuoso na economia. Não existe na história do mundo algum país que tenha se desenvolvido com a lógica da austeridade fiscal, que diz que o Estado não pode gastar. Outra ideologia defendida é de simplificar o sistema tributário. O que isso significa? Unificar vários tributos, inclusive os que financiam a seguridade, num imposto sobre valor agregado. Ou seja, ataca de frente a base das políticas públicas e das políticas sociais.

Há discussão sobre algum tipo de alternativa? Que reforma tributária um país como o Brasil precisa?

No âmbito do projeto Brasil Popular, nós desenvolvemos as premissas principais do que seria uma reforma tributária progressiva, para deixar nosso sistema tributário funcionando a favor do desenvolvimento econômico, da redução das desigualdades, do respeito ao meio ambiente e do diálogo com a diversidade.

No Congresso, há uma emenda aglutinativa a uma das Propostas de Emenda à Constituição que tramitam, que propõe a reforma tributária solidária. A Anfip [Associação dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil] e a Fenafisco [Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital] reuniram quarenta especialistas e, dali, saiu um projeto com contornos muito bem definidos.

Nesse estudo, está demonstrado que é possível deslocar recursos equivalentes a 5% do PIB [Produto Interno Bruto] dessa base de tributação do consumo para a base de tributação da renda e patrimônio de forma progressiva, sem alterar a carga tributária.

Além disso, não há porque a gente dizer que a carga tributária não possa aumentar. Todos os países que se desenvolveram aumentaram carga tributária, mas não sobre o andar de baixo da sociedade, e, sim, sobre quem tem capacidade contributiva. O país precisa se desenvolver e a reforma tributária tem que ser uma indutora desse desenvolvimento.

De proposta concreta, o que a gente tem é uma reestruturação da tabela progressiva de imposto. Primeiro, todos os rendimentos devem ir para a tabela. Por que o salário vai e o lucro não vai? Reestrutura a tabela de alíquota, vai até 40% e quem vai pagar os 40%? Quem ganha acima de 80 salários mínimos por mês.

Para quem ganha acima de um milhão por ano, nós propomos que pague uma contribuição social que ajude no orçamento da seguridade social. Dessa forma, a gente vai diminuir PIS [Programa de Integração Social] e Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social], tributos que também financiam a seguridade, mas impactam os preços das mercadorias e dos serviços.

Há propostas também de tributação para grandes heranças, de aperfeiçoamento na fiscalização de operações de comércio exterior, combate aos paraísos fiscais. É uma proposta completa, que inclusive foi abraçada pelos partidos de oposição. Se organizações populares e sindicatos perceberem a importância de discutir a tributação, o debate sobre essa proposta ganha mais força.

Tudo bem, o desânimo é grande com tudo o que vem acontecendo no Brasil, mas é preciso que a gente se mantenha no debate. Se tivermos consciência de que esse instrumento é importante e que a história já mostra que isso deu certo, a questão tributária pode ser uma ideia-força para nos mobilizar.

Essa conversa não pode ficar só entre empresários e políticos. Ela precisa chegar ao povo. É uma ideia-força, porque é muito evidente o contraste entre alguém que recebe R$ 22 bilhões de lucros isentos de imposto sobre esse valor e o trabalhador precarizado, massacrado, sem direito algum.

Edição: Aline Scátola