Rio Grande do Sul

LUTA PELA MORADIA

Assentamento 20 de Novembro, uma conquista que corre risco sob Bolsonaro

Guinada nas políticas e programas de habitação e risco de privatização da Caixa ameaça o sonho da casa própria

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Prédio abandonado em Porto Alegre foi conquistado em 2016 para uso como habitação de interesse social - Foto: Leonardo Savaris

Em meio a uma crescente onda de violações do direito à moradia, com o déficit habitacional batendo recorde no Brasil, o Assentamento 20 de Novembro mostra que a revitalização de prédios públicos abandonados nos centros urbanos para habitação social é um caminho possível quando se tem políticas públicas.

Decidindo o destino

Abandonado há mais de 50 anos, o edifício da União construído para ser um hospital fica numa região central de Porto Alegre conhecida como 4º Distrito, território com diversos imóveis ociosos que está em gentrificação – um processo de transformação urbana que expulsa a população de baixa renda de determinada área. Foi conquistado em 2016 para uso como habitação de interesse social, resultado de uma luta de 14 anos do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), em parceria com Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores).


Fachada atual do prédio do Assentamento 20 de Novembro / Foto: CAU/RS

“Queremos debater que destino dar para essa região, para as nossas cidades”, destaca a presidente da Cooperativa de Trabalho e Habitação 20 de Novembro, Ceniriani Vargas da Silva. Ao invés do governo colocar as famílias em bairros afastados e depois ter que gastar criando escolas, postos de saúde e creche, avalia, pode-se recuperar e dar um fim social a tais prédios, aproveitando toda a infraestrutura da região central e dando dignidade aos trabalhadores.

O projeto passou por várias etapas, as demandas e soluções surgiram da necessidade das famílias. Ceniriani ressalta que o projeto só foi possível graças ao Minha Casa Minha Vida Entidades (MCMV), que “garante que cooperativas, movimentos sociais e outras entidades possam coordenar o projeto, ao invés de deixar tudo com uma construtora”. A ideia é que a experiência seja replicada e que seja um espaço de fortalecimento das organizações sociais.

Parcerias


Projeto arquitetônico do prédio do escritório AH! Arquitetura Humana

Após a aprovação da recuperação da estrutura pelo MCMV, para implementar as demandas como espaços de geração de renda, culturais, creche e utilização de tecnologias sustentáveis, a cooperativa buscou parcerias. Encontrou o projeto Morar Sustentável, iniciativa do Sindicato dos Arquitetos do Estado do RS (SAERGS), com apoio do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do RS (CAU/RS) e projeto arquitetônico do escritório AH! Arquitetura Humana.

Para Evandro Medeiros, presidente do SAERGS, usar prédios desocupados em áreas centrais para moradia contribui para o desenvolvimento e o bem-estar não somente dos beneficiados, mas de toda a sociedade. “Permite melhores condições de vida em locais com infraestrutura pronta e muitas vezes subutilizada e revitaliza os centros, trazendo circulação de pessoas além dos horários comerciais, proporcionando mais vida e segurança”, aponta, ressaltando a importância do debate previsto no Estatuto da Cidade: o combate à especulação imobiliária e a promoção da regularização fundiária e do uso social da propriedade.

Da vitória à incerteza do futuro

Com todo o projeto pronto e aprovado, os moradores aguardam, há cerca de um ano a assinatura do contrato do MCMV para o início das obras. Com o programa rumo ao desmonte pelo governo federal e o atraso nos repasses, a Prefeitura de Porto Alegre ameaça cancelar o acordo de aluguel social que as famílias que ocupam o prédio conquistaram para usar no período das obras.

Conforme a Arquiteta Urbanista Karla Moroso, isso demonstra a orientação política do governo Marchezan (PSDB), que faz pressão para não cumprir o acordo. Ela ressalta que a estrutura do prédio necessita das intervenções e que isso é uma responsabilidade pública. “Quando acontecem questões como aquele desabamento de uma ocupação em São Paulo, o que o governo faz é criminalizar, responsabilizando os moradores por não garantir sua segurança, uma inversão de lógica. Esse argumento sempre é usado para justificar remoções”, avalia.

Para ela, falta um debate sobre as prioridades dos recursos públicos. “Tem estudos que mostram quantas famílias poderiam ser beneficiadas com aluguel social e quanto se poderia produzir de moradia social com o recurso destinado ao auxílio moradia dos juízes. Falando localmente, com o recurso que Marchezan gastou com sua campanha publicitária no final de 2019, fizemos as contas por cima e daria para fazer sete projetos como o 20 de Novembro”, critica.

Desmonte atinge quem mais precisa

A Caixa Econômica Federal, ao longo dos últimos 10 anos, vinha se consolidando como o principal agente financeiro da habitação no Brasil. Constituiu equipes multidisciplinares focadas, organizando gerências e superintendências. Além do MCMV, também foi criado o Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR).

De 2009 a 2018, os subsídios ao MCMV atingiram R$ 113 bilhões, viabilizando a entrega de 4,1 milhões de unidades habitacionais. Já nos próximos anos, na avaliação de Cristiano Schumacher, dirigente estadual do MNLM, a política de habitação de interesse social está comprometida. “O orçamento previsto para 2020 é de R$ 2,6 bilhões, quase 50% menor do que o previsto em 2019. Não garante nem as obras que já estão em execução ou contratadas.”

O congelamento dos programas soma-se à ameaça do plano de privatizações de Bolsonaro e seu ministro da Economia, Paulo Guedes. “A Caixa é um banco público estratégico presente em todos os lugares do país, mesmo em locais onde os resultados são menores e que não interessam aos bancos privados”, aponta Cristiano. A venda da estatal acabaria com a possibilidade de execução de um programa nacional de habitação de interesse social, já que o banco desempenha um papel de agente financeiro, realizando a gestão entre governo, entidades e cidadãos.

 

Edição: Ayrton Centeno e Katia Marko