Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Agrotóxicos, adubos, petroleiros e Anitta numa terra onde o bom senso desapareceu

Em meio ao carnaval, engenheiro agrônomo reflete sobre adiamento do julgamento do STF sobre benefícios a agrotóxicos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Eliminação de benefícios e privilégios ao que nos envenena e destrói é mais do que uma metáfora, é uma convocação" - Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Este texto foi encomendado na forma de avaliação dos antecedentes e possíveis desdobramentos de decisão do STF, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5553/DF) que trata de benefícios fiscais oferecidos aos agrotóxicos. Esta é de fato uma ação muito importante, de enorme repercussão sobre a vida dos brasileiros e a autonomia do país. Ela foi apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com participação ativa de organizações como a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), a Terra de Direitos e a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, entre outros (1).

O interesse da sociedade, e os avanços do esclarecimento público sobre o assunto, permitia otimismo no texto que estava sendo preparado, para este espaço. Esperava-se comentar posicionamento favorável do relator, Ministro Fachin, que muito provavelmente seria acompanhado por seus pares, resultado em marco positivo para resgate da credibilidade do STF, apontando seu compromisso com a maioria e sua independência em relação aos poderes corporativos e à pressão econômica. Infelizmente a sessão foi suspensa na última hora, e não há prazo para que o tema volte à pauta (2). Por que isto teria acontecido? Na explicação do STF, os Ministros foram convidados a participar, como plateia, de atividade mais importante.

Como consequência, segue em vigor o “acordo” que permite situações paradoxais onde, ao mesmo tempo em que os 12,8 milhões de desempregados pagam impostos sobre um pãozinho, uma batata ou um punhado de arroz que consigam comprar, as transnacionais do veneno são dispensadas de recolher, no todo ou em parte (3), em ICMs, IPI, COFINS e outros, cerca de R$ 10 bilhões por ano (4). As isenções de impostos, para os agrotóxicos, são de tal forma importantes no Rio Grande do Sul que, em 2017, quando o ex-governador Sartori anunciou déficit de R$ 1,6 bilhão nas contas públicas, o Estado teria deixado de arrecadar aproximadamente R$ 945 milhões, em impostos relativos aos venenos agrícolas (5).

Como todos os agrotóxicos se beneficiam do “acordo”, e os venenos mais perigosos, inclusive aqueles proibidos em vários países, aqui no Brasil estão mais baratos. Assim a “economia” estimula seu uso. E agrotóxico mata. Inclusive aqueles agrotóxicos recentemente autorizados para mudanças de rótulo, e que agora “deixaram de ser” extremamente tóxicos, merecem a atenção e os cuidados que, esperava-se, a decisão do STF ajudaria a impor.

No mundo, segundo a ONU, os agrotóxicos matam 200.000 pessoas por ano. No Brasil, onde os registros de intoxicação são tão subestimados que o próprio Ministério da Saúde reconhece: anota-se apenas uma em cada 50 ocorrências, os números oficias dão conta de 1.824 óbitos, por contato com agrotóxicos, entre 2007 e 2017. E a morte nem sempre é o pior. Os familiares das pessoas intoxicadas, que se concentram nas regiões pujantes do agronegócio, sabem disso. Estudos (6) da Defensoria Pública de São Paulo associam ao uso de agrotóxicos o fato de que, em municípios das regiões de São José do Rio Preto e Araçatuba, as probabilidades de morte, por câncer no cérebro ou no fígado, seriam três vezes maiores do que a média estadual. Observe-se que estamos falando de mortes lentas, com enorme impacto sobre famílias inteiras, e que elas decorrem de venenos de uso estimulado pelo Governo, contra os quais não temos defesa pois se fazem presentes no ar, nos alimentos e na água potável. No Brasil usamos cerca de um bilhão de litros de agrotóxicos, todos os anos... e isto se acumula, ano a ano, por que aquelas moléculas não desaparecem. Elas “ficam por ai”, se amontoando, no solo, nos lençóis freáticos, na água que forma parte de todos os organismos vivos. Os estudos do Defensor Público Marcelo Novaes associam ao uso de agrotóxicos o fato de que uma mulher grávida, em Ribeirão Corrente, na região de Franca, SP, tenha 50% de chance, a mais, de ter um filho com malformações fetais do que mulheres residentes em Cubatão, tristemente famosa pela poluição do ar.

Todos estes dramas convergem para cuidados e sacrifícios impostos às famílias e à coletividade, que acabam recaindo sobre o sistema único de saúde. De fato, estudo da Fiocruz (Soares e Porto, 2012) mostrou que, para cada 1 dólar gasto na compra de agrotóxicos, no Paraná, haveria um desdobramento de custos da ordem de 1,28 dólares, para o tratamento das intoxicações (7) possivelmente resultantes.

Portanto, havia lógica naquela expectativa otimista, de que um texto comemorativo ao fim da isenção de impostos sobre agrotóxicos seria consequência lógica de um posicionamento sensato e responsável, por parte dos colegas do Ministro Fachin, após a leitura de seu parecer sobre a ADI 5553/DF.

A expectativa se justificava até porque o principal argumento das empresas e dos formadores de opinião que defendem seus interesses, apoiado na ideia de que “o custo dos alimentos vai subir”, não se sustenta.

Isto não apenas porque 80% dos agrotóxicos são utilizados em lavouras de soja, algodão, cana e outras commodities que se destinam basicamente à exportação e não chegam na mesa dos brasileiros, mas também porque a outra parcela se dilui e se perde nos mecanismos de apoio à agricultura. E o veneno aplicado efetivamente sobre gêneros alimentícios, poderia ser trabalhado na forma de isenção sobre os produtos em si, dispensando de impostos, no momento de comercialização, aquela batata, aquele punhado de arroz, aquele pãozinho e assim por diante. Isso sem falar no fato de que é possível produzir sem venenos, como demonstram várias experiências relatadas nos sites da Associação Brasileira de Agroecologia (8), da Articulação Nacional de Agroecologia (9) e da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida (10).

Mas, e isso deve ser ressaltado: em todos os casos, os insumos agrícolas entram como fatores de custo de produção que podem ser abatidos na declaração de imposto de renda dos agricultores, anulando sua necessidade de repasse aos consumidores.

Ainda assim, e aceitando que a ideia de eventual repasse de custos ao consumidor, encarecendo os alimentos, merece a preocupação honesta de todos, resta questionar: não haveria outros caminhos para obter os mesmos, ou melhores resultados? Porque os interessados no comércio de agrotóxicos e os formadores de opinião a eles associados não se preocupam com fatores realmente cruciais à formação dos preços dos alimentos?

Que tal o caso dos adubos? Seria possível reduzir o custo de produção da lavoura nacional agindo de forma adequada sobre o setor? A Petrobras afirma que sim, e a greve dos petroleiros demonstra consciência daqueles trabalhadores em relação a isso. Infelizmente, a greve acabou – quem sabe por nossa falta - sem alcançar o objetivo de proteger a indústria nacional de fertilizantes (11).

Mas antes de examinarmos este ponto, vale uma consideração geral, sobre a importância dos adubos na produção de alimentos para os brasileiros.

De um lado, sabe-se que a agricultura familiar, que ocupa 25% do território e perto de 80% da Mão de Obra Rural, é a verdadeira responsável pela produção de alimentos (12,13). Sabe-se também que a Agricultura Familiar usa insumos, seleciona sementes, realiza adubação e é tão ou mais produtiva que os grandes latifundiários do agronegócio, em termos de valor gerado por unidade de área. Só não o faz melhor, e em maior escala, porque o governo sempre foi tímido, e agora se mostra carrasco com relação às políticas de apoio aos agricultores de pequeno porte. Esperamos que em algum momento o STF examine as implicações da atual destruição de políticas públicas voltadas a este segmento (14,15). De toda forma, sabidamente a imagem de sucesso que ilumina a agricultura nacional relaciona-se ao esforço de todos os trabalhadores, grandes e pequenos, mas também decorre do domínio exercido pelos vários setores do agronegócio, sobre o executivo, o legislativo e a grande mídia, que dá realce a mitologias que este sistema produz. O tema dos agrotóxicos, neste particular, se aproxima do caso dos fertilizantes. Vejamos.

O Brasil responde a apenas 2% da produção mundial de adubos, mas é um dos maiores consumidores globais. Além disso, mais de 70% da matéria prima para a produção nacional de fertilizantes é importada, porque assim desejam os controladores do setor já que boa parte dela poderia ser produzida internamente, com apoio da Petrobras. É o caso dos adubos nitrogenados, onde 75% dos fertilizantes são importados (16) e um grupo cada vez menor de grandes empresas controla a produção, a comercialização e a importação de fertilizantes, em contexto de total isenção de tributação (17).

A importância deste assunto é tamanha que, em 2004, a Petrobras comemorava seus investimentos em fábricas de fertilizantes (18). Este mercado teria crescido 30% entre 2003 e 2012, e a Petrobras, com suas Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados (FAFEN) em Sergipe e na Bahia, onde alcançava, respectivamente, a produção de 657 mil toneladas/ano de ureia e 456 mil toneladas/ano de amônia (Fafen-SE), e de 474 mil toneladas/ano de ureia e 474 mil toneladas/ano de amônia (Fafen-BA), anunciava investimentos em novas unidades em Três Lagoas (MS – que a partir de 2014 teria capacidade para produzir 1,2 milhão de toneladas/ano de ureia), Laranjeiras (SE - com capacidade para produzir 303 mil toneladas/ano de sulfato de amônio) e no Paraná. Alcançava-se, assim, autonomia sobre 30% de nossa demanda de adubos nitrogenados, com perspectivas de avanço utilizando processamento interno do gás natural obtido na crescente oferta nacional de petróleo. Em 2018, após o golpe, tudo que apontava para um futuro promissor se alterou. A Petrobras, sob nova direção, rapidamente revelou decisão de desativar a produção de suas fábricas de nitrogenados em Camaçari (BA), Laranjeiras (SE) e Araucária (PR), então responsáveis pela produção de 1,8 milhões de toneladas de ureia e 1,27 milhões de toneladas de amônia, por ano. Anunciava-se, ali que o Brasil passaria a importar quase todo o fertilizante nitrogenado indispensável para o desenvolvimento do “nosso agronegócio” e da oferta sustentada de alimentos gerados pela agricultura familiar. Em outras palavras, decidia-se pela submissão completa (sementes, adubos e agrotóxicos) do país, aos controladores de insumos estratégicos para a soberania nacional.

Considere-se, neste ponto, que os investimentos em adubos, para um país agrícola, não podem ser considerados um mau negócio, mesmo diante da referida isenção de impostos, que privilegia os países exportadores. Observe-se aqui o fato de que a desativação das fábricas da Petrobras significa aniquilação de cadeias produtivas que se estendem desde as indústrias misturadoras à logística de transportes e comércio, responsáveis por geração de emprego para milhares de profissionais de diversas categorias. As figuras e a tabela ao final desta matéria ilustram a dimensão do tema e a radical mudança de rumos, imposta pelo golpe, à autonomia brasileira no mercado de fertilizantes. De momento, vale dizer que estudo da EMBRAPA (19) já em 2008 apontava que a dificuldade da indústria nacional em acompanhar o ritmo de crescimento da demanda interna de adubos, ao favorecer importações de fertilizantes, concentrava o setor sob liderança de “três grupos multinacionais (20) que, dentro de uma estrutura oligopolizada, possuem a capacidade de influir nos preços de mercado desse produto”. Concluindo que “a manutenção desse cenário impactará consideravelmente os custos de produção e a competitividade das principais commodities produzidas pelo Brasil, fato que realça a necessidade de se implementarem políticas públicas que minimizem tais efeitos sobre o agronegócio nacional”, o estudo não apenas apoiava os investimentos da Petrobras, nas Fábricas de Fertilizantes Nitrogenados (FAFEN), como cobrem de racionalidade e importância a atual greve dos petroleiros, em proteção daquelas unidades em particular, bem como em defesa da Petrobras como um todo.

Com esta perspectiva, e diante do desmantelamento da indústria nacional, em fins de 2019 os petroleiros anunciaram greve geral solicitando, entre outros pontos cruciais à soberania nacional, suspensão das demissões, do arrendamento e da venda das fábricas de adubos nitrogenados da Petrobras (21). No caso do arrendamento por dez anos, da FAFEN-BA (capacidade de produção total, atual, de 1.300 t de ureia /dia) e da FAFEN-SE (capacidade de produção total de 1.800 t de ureia /dia), foram entregues também os terminais marítimos de amônia e ureia no Porto de Aratu, na Bahia (22). Infelizmente, a escassa cobertura da mídia, ao ocultar a greve e minimizar sua importância para o Brasil, reduziu seu potencial de adesão levando ao esgotamento, com negociação desfavorável aos interesses nacionais (23).

A participação do STF, neste caso dos adubos nitrogenados, coloca espectro de dúvidas sobre seu paralelo em termo dos agrotóxicos. Também ali, se os juízes abrirem mão do que o povo entende por bom senso, os desejos do capital podem vir a ser privilegiados em relação aos direitos humanos, à soberania nacional e mesmo a questões como a saúde humana e ambiental, que no Brasil dos poderosos de hoje parecem ser quase irrelevantes (24).

Para encerrar de forma positiva, quero confessar que, assistindo a cobertura do carnaval, senti uma lufada de otimismo desde a abertura, no protesto da Anitta contra liberação de agrotóxicos que matam abelhas (25). De fato, as grandes escolas e o carnaval de rua foram além do que eu poderia esperar, em sua eloquência e clareza. Multidões reclamando compromissos com a solidariedade, enfatizando consciência de que a destruição dos serviços públicos, das políticas sociais e dos bens comuns se alimentam na mesma raiz, entreguista, que nos desgoverna. A Globo tentou não mostrar, mas todos vimos a festa do povo gritando que os privilégios oferecidos aos vampiros, piratas e gafanhotos que sangram o Brasil, devem ser cancelados. Vi o país transbordando dos corações para as ruas, soberano, alegre, com suas potencialidades a serviço dos brasileiros, e por isso, confio: os Juízes do Supremo agirão em conformidade com a relevância de suas funções, ajudando a frear a loucura e a rapinagem dos que querem destruir as bases desta nação rica e generosa.

Como mostraram milhões de Anittas e Marcelos Adnés, em suas danças, a alegria é a chave para a coragem que trará as mudanças e estamos todos chamados a participar. Percebo, agora, que a eliminação de benefícios e privilégios ao que nos envenena e destrói é mais do que uma metáfora, é uma convocação.

FIGURA 1: Evolução do consumo aparente Adubos Nitrogenados, no Brasil - 1950 a 2017
Fonte: http://brasil.ipni.net/article/BRS-3132

FIGURA 2: Evolução na produção nacional e importação dos principais fertilizantes, Brasil - 1950 a 2017
Fonte : http://brasil.ipni.net/article/BRS-3132

TABELA 1: Consumo aparente de fertilizantes nitrogenados suas matérias-primas em 2017 (em toneladas métricas)
Fonte : http://brasil.ipni.net/article/BRS-3132

 

* Leonardo Melgarejo é engenheiro agrônomo, Mestre em Economia Rural, Dr em Engenharia de Produção, membro da Associação Brasileira de Agroecologia e do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida


19 SAAB e ALMEIDA - O mercado de fertilizantes no Brasil Diagnósticos e propostas de políticas – revista de política agrícola Ano XVII – Nº 2 – Abr./Maio/Jun. 2008

20 Destaque para os grupos Yara (da Noruega), com vendas globais de 7,3 US$ bilhões ; Mosaic (dos EUA), com venda globais de 5,5 bilhões de dólares e Potash (do Canadá), com vendas de 3,8 bilhões de dólares.

25  https://www.sul21.com.br/ta-na-rede/2020/02/anitta-abre-carnaval-com-protesto-contra-liberacao-de-agrotoxico-que-mata-abelhas/#.XlEtJhUPV58.whatsapp

Referências citadas no texto

EPE - Empresa de Pesquisas Energéticas - Competitividade do Gás Natural:

Estudo de Caso na Indústria de Fertilizantes Nitrogenados No EPE-DEA-IT-001/2019 ; 16 de agosto de 2019 (Estudo de Caso na Indústria de Fertilizantes Nitrogenados - Epe http://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/Documents/EP ; http://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/Documents/EPE-DEA-IT-01-19%20-%20GN_Fertilizantes.pdf

OLIVEIRA, Maiara Prates, MALAGOLLI Guilherme Augusto, CELL, Daltro. MERCADO DE FERTILIZANTES: dependência de importações do Brasil

Faculdade de Tecnologia de Taquaritinga (Fatec) – SP –Brasil https://esalqlog.esalq.usp.br/upload/kceditor/files/2017/Iniciação%20Científica/TN_JoaoVictor_Mariane_final.pdf

SAAB, Ali Aldersi & PAULA, Ricardo de Almeida. O mercado de fertilizantes no Brasil Diagnósticos e propostas de políticas. Embrapa, revista de economia agrícola, Ano XVII – Nº 2 – Abr./Maio/Jun. 2008 https://seer.sede.embrapa.br/index.php/RPA/article/viewFile/404/355

SOARES, Wagner Lopes Soares e PORTO, Marcelo Firpo de Souza - Uso de agrotóxicos e impactos econômicos sobre a saúde. Rev Saúde Pública. RJ, 2012 .http://www.scielo.br/pdf/rsp/2012nahead/3519.pdf

Edição: Marcelo Ferreira