Rio Grande do Sul

SÉRIE 8 DE MARÇO

Não olhe: É sobre sexo!

Monique Prada fala sobre uma das profissões mais estigmatizadas da história da humanidade

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Para a entrevistada, é importante pensar a prostituição a partir do feminismo e o feminismo a partir do que pensam e como agem as trabalhadoras sexuais - Foto: Arquivo Pessoal

“Basicamente, a prostituição é um lugar onde o senso comum diz que nenhuma mulher deve querer estar, e ainda assim, milhões de mulheres a tem exercido através dos séculos. Talvez este esteja longe de ser o pior lugar do mundo para uma mulher, mas há toda uma sociedade se esforçando para torná-lo péssimo”, afirmou Monique Prada, em uma entrevista ao site Glamurama, em 2017.

Trabalhadora sexual, feminista, ativista pelos direitos das prostitutas. Coeditora do projeto MundoInvisivel.ORG, foi uma das fundadoras da CUTS - Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais, e sua presidenta por alguns anos. Atualmente, faz parte da Articulação Nacional de Profissionais do Sexo, uma das três redes de defesa de direitos das pessoas que trabalham com sexo atuantes no país. Monique também é colunista do site Mídia Ninja, e autora do livro Puta Feminista, lançado em agosto de 2018 pela editora Veneta como parte da coleção Baderna.

Em prostíbulos, nas ruas, nas calçadas, em saunas, clubes, boates e sites de internet mulheres de todas as idades tiram seu rendimento de um trabalho feito quase sempre às escondidas. Estigmatizadas, sua atividade descreve também o pior dos xingamentos para as mulheres. A profissão, que segue sem regulamentação, em 2002 foi incluída na Classificação Brasileira de Ocupações, onde consta sob o número 5198/05. Cabe lembrar que tramita hoje no Congresso brasileiro um projeto de lei visando criminalizar a contratação de serviços sexuais no país, seguindo os moldes do modelo sueco de regulamentação da prostituição. Este projeto foi apresentado pelo deputado pastor João Campos, e a ele se juntou - meses depois do golpe jurídico-parlamentar que tirou Dilma Rousseff da presidência - uma nota parlamentar de autoria do deputado Flavinho (PSB-SP) pedindo a urgência na retirada da atividade de profissional do sexo da CBO.

No especial do 8 de Março - Dia Internacional da Mulher, o Brasil de Fato RS conversou com Monique Prada sobre como é ser feminista dentro desse contexto. “Quando a gente analisa os movimentos de prostitutas vê que, embora muitas feministas os hostilizem, elas fazem um movimento feminista desde sempre, que em muitos sentidos é até pioneiro, como na questão do se vestir como quiser e da maternidade compartilhada, essa última uma questão que não se trata muito quando se fala em prostitutas”, aponta.

Brasil de Fato RS - Gostaríamos de começar por conhecer um pouco da tua vida, até chegar a se tornar Monique Prada.

Monique Prada - Pouco antes dos 19 anos sai de casa, e fui procurar emprego. Trabalhei em escritório, em lojas, em várias outras atividades que não chegavam a prover meu sustento com dignidade. Em dado momento, encontrei em um jornal um anúncio de uma agência de acompanhantes, agendei entrevista e passei a complementar minha renda com programas. Há alguns anos, passei a entender a necessidade de lutar contra o estigma social que nos violenta e mata, e assim estamos aqui.

BdFRS: Como é ser uma feminista sendo uma profissional do sexo, como se entrelaçam?

Monique - Há uns sete, oito anos comecei a ler artigos feministas e pensar essa questão sobre feminismo e prostituição. Ocorre que boa parte dos textos que me chegavam às mãos me tratavam como vítima, e como uma pessoa incapaz de responder por mim mesma. Ao mesmo tempo em que o feminismo me empoderava, me trazia uma perspectiva não tão nova, mas mais evidente sobre meus direitos em relação ao meu corpo e minha vida, algumas autoras me consideravam uma não mulher, uma não pessoa. Vi a necessidade de pesquisar mais a fundo e entender não só o meio em que eu atuava, mas toda a sociedade, e meu lugar nessa sociedade enquanto prostituta. Conheci outras leituras, outras autoras, mesmo a Gabriela Leite - que raramente é colocada em nossas leituras como autora e ativista feminista, embora o tenha sido. Logo conheci no ativismo Amara Moira e Indianare Siqueira, que me trouxeram um pouco essa perspectiva do transfeminismo, e Georgina Orellano, que me traz a ideia do putafeminismo (que num primeiro momento, é termo que ativistas espanholas me trazem). Assim que se dá a importância de pensar a prostituição a partir de um viés feminista, e o feminismo pensado a partir do que pensam e como agem as trabalhadoras sexuais. Conhecer ativistas de todo o país, em especial as nordestinas como Diana Soares, Jesus de Almeida, Fátima Medeiros, dentre outras tantas mulheres incríveis e de luta, me trouxe a certeza de que nosso lugar é entre feministas, pois feministas somos.


Com Amara Moira, companheira de lutas / Foto: Arquivo pessoal

Lembro que logo que comecei na atividade, Porto Alegre sediou, na época do Fórum Social Mundial, um Encontro Nacional de Prostitutas. Não compareci porque ainda tinha muito medo de ser descoberta e fiquei pensando o que eu faria lá. Mas aquilo já era um encontro feminista. Quando a gente analisa os movimentos de prostitutas, embora muitas feministas hostilizem as prostitutas, elas fazem um movimento feminista desde sempre, em certo sentido e até em muitos sentidos pioneiros, na questão do vestir como quiser, a questão da maternidade compartilhada, que é uma questão que a gente não trata muito quando se fala em prostitutas, a maneira como as trabalhadoras sexuais costumam criar os filhos nunca foi muito debatida. Se vê em muitos grupos de trabalhadoras sexuais o auxílio mútuo no cuidado com suas crianças, eu pude presenciar muito isso durante a vida. E isso é um pouco do compartilhar maternidade, o que para nós é importante para a sobrevivência. Um senso de maternidade um pouco diferente do senso de mulheres como as da classe média, talvez, o compartilhar também pela ausência paterna. Isso se dá também entre outros grupos de mulheres de menor renda, periféricas.

Pensar o modo como as trabalhadoras sexuais levam maternidade, como uma responsabilidade muito exclusiva das mães, nem sempre por imposição: eventualmente algumas colegas não reconhecem o pai como uma figura relevante ou que faça falta na criação de suas crianças. E quando é, é como na vida das outras mães, aquela dificuldade de cobrar pensão, aquela presença que só existe para te cobrar. É muito comum que eles venham correndo atrás da guarda das crianças e coisas assim depois que eles descobrem a condição de trabalhadora sexual das mulheres, como aconteceu com Gabriela Leite, grande fundadora do movimento. Ela teve duas filhas de pais diferentes, um deles jamais prestou atenção na criança até que ela começou aparecer no ativismo, em jornal e TV, e ele descobriu, ou se deu conta de que ela era uma trabalhadora sexual. Entrou na justiça querendo a guarda e conseguiu a guarda dessa criança que nunca ou muito pouco tinha visto.


Monique com a socióloga feminista negra estadunidense Patrícia Hill Collins / Foto: arquivo pessoal

BdFRS - Entra aí a questão da sororidade?

Monique - Quando estamos em ambiente de trabalho, existe a competição por trabalho que é similar a competição feminina que existe e é estimulada e reforçada aqui fora, não é uma coisa que se reforce lá dentro, mas se está correndo atrás de dinheiro, quem for mais rápida ganha. Exceto no momento de trabalho, se acontece algum problema ou necessidade, mesmo que seja uma colega de quem tu não gostas, tu vais te levantar para defender.

BdFRS - Não sei o teu grau de educação formal, mas há muita intelectualidade em como tu te expressa. Boa parte da prostituição, as profissionais não têm uma boa formação, e tu vens trazer essa vocalização muito importante para quem não tem esse recurso. Queria que tu falasses sobre isso e também como as trabalhadoras que atuam mais na rua te veem?

Monique - Eu parei os estudos com 17 anos, no ensino médio, que concluí aos 39, através de uma prova do Enem. Essa é minha formação. Depois disso, cursei dois semestres de história por EAD, mas desisti.

Sobre o tanto que falo ou como me expresso, o que acontece é que se ouve pouco determinados grupos, e a partir daí se cria essa impressão da falta de cultura e escolarização. Em nosso grupo, fato, o nível de escolarização é quase sempre baixo, e isso é parte do que nos leva a procurar essa atividade, porque dos trabalhos que nossa escolaridade nos permite acessar este é o que melhor paga. Isso não significa que nos falte cultura, mas que temos/tivemos dificuldade de acesso ao ensino formal, o que acontece com inúmeros outros grupos de mulheres. Essa dificuldade chegou a ser rompida nos governos do PT, e então vamos perceber que mulheres mais jovens têm mais acesso a escolarização, mesmo as trabalhadoras sexuais, e dentre essas mesmo muitas mulheres que trabalham nas ruas. Eu rompi um certo preconceito que eu tinha sobre isso - baixa escolaridade de mulheres que atuam nas ruas - conhecendo algumas mulheres que trabalham nas ruas, como a Priscila, que tem doutorado ou a Maria Zanela, que se impõe como trabalhadora sexual ativista e acadêmica, escrevendo sobre o tema com muita frequência. É um espaço que devemos ocupar, e cada vez mais de modo menos velado. Vejo que a expressão "prostituta universitária" foi usada por inúmeras companheiras feministas para desqualificar as minhas falas, mesmo quando eu não tinha sequer concluído o ensino médio, e isso me fala sobre os lugares que são reservados a nós e os lugares onde essa sociedade não nos quer. Se "prostituta universitária" é uma ofensa usada para nos calar enquanto ativistas, este é um lugar que devemos ocupar cada vez mais - ainda que a estratégia do governo atual seja destruir o ensino público.

Mas se nos governos anteriores, chegamos a poder nos orgulhar porque as filhas das empregadas domésticas chegaram nas universidades, desse mesmo modo as prostitutas - e suas filhas e filhos - também.

BdFRS - Como fica a questão do machismo dentro da prostituição, uma vez que muitas vezes, nós mulheres reproduzimos também. A visão que se tem, até mesmo dentro do movimento feminista dizendo que o trabalho da trabalhadora sexual, que o corpo é a mercadoria, essas relações imbricadas e como vocês enxergam isso?

Monique - A gente costuma dizer que não vende corpo, algumas partes do meu eu comprei (risos). A questão do machismo é um pouco complexa, a gente vive em uma sociedade machista, patriarcal. Então se eu for condenar as trabalhadoras sexuais porque fazem parte disso, eu preciso condenar todas as outras mulheres, porque os homens que frequentam os lugares que frequentamos são os maridos das outras mulheres, e não tem ninguém fazendo protesto em frente aos cartórios para que as pessoas não se casem. Quer dizer, o mesmo homem com quem divido uma hora do meu tempo divide a cama e a vida com mulheres que me condenam por dividir uma hora do meu tempo.


Monique na Parada Livre / Foto: Arquivo pessoal

BdFRS - Alexandra Kollontai (1872-1952- líder revolucionária russa e teórica do marxismo) no livro A Nova Mulher e a Moral Sexual, fala justamente disso, que o que mantém os casamentos é a prostituição.

Monique - A prostituição não apenas mantém os casamentos, são instituições complementares, o casamento e a prostituição dentro dessa sociedade. Uma que precisa existir às escuras e outra para estar ali para a sociedade. E não estou dizendo que isso é bom, por mim se pode implodir todas as instituições vigentes nesta sociedade. Mas considero importante perceber que Alexandra Kollontai quando fala das esposas e das prostitutas como semelhantes, e as condena por não produzirem nada para essa sociedade, me parece que ela desconsidera o imenso e pesado papel que as esposas cumprem nessa sociedade. Porque são as esposas, as mães, as donas de casa que sustentam essa sociedade - e não que isso seja bom, porque tudo isso é trabalho tomado de graça das mulheres. Eu fico pensando que se por dois ou três dias as mulheres - todas as mulheres - se recusarem a fazer aquilo que se convencionou ser seu trabalho, o capitalismo e o patriarcado vêm abaixo. E não são apenas as prostitutas, mas as que de fato têm levado esse mundo nas costas são as mulheres ditas decentes, as de quem se cobra decência, de quem se cobra o trabalho por amor. Aquela questão que a Silvia Federici fala muito, que não é amor, é trabalho não pago.

Sobre as prostitutas, uma vez em debate com Federici citei nosso trabalho como um trabalho que não produz nada. Orgulhosamente, um trabalho que não produz nada para essa sociedade. Mas ela carinhosamente me corrigiu: produzimos, sim. Produzimos bem estar, acolhimento e prazer, que são bens valiosos nessa sociedade. Vamos lembrar que Federici trata dos trabalhos não pagos tomados das mulheres, e este foi um belo puxão de orelha.

Então, a partir disso eu tenho pensado a função dos prostíbulos, talvez essencialmente os mais baratos, como uma grande esponja entre os cristais nessa sociedade. Do mesmo modo que depois que a visita íntima foi liberada nos presídios, isso serviu para amenizar e até acabar com as rebeliões aqui no Sul, os corpos das mulheres são usados para segurar essas rebeliões. Fernanda Bassano nos fala sobre isso em seu excelente Visita Íntima, publicado há alguns anos. Então, e nunca dizendo que isso é positivo, mas o que evita que esses homens que vêm do Nordeste trabalhar aqui, não recebem seus salários, acabam não conseguindo voltar para sua terra natal. Onde é que eles encontram um trabalho de cuidados, trabalho afetivo, coisas que evitam que eles se revoltem, uma acolhida?

BdFRS - Além do machismo, há também a violência, outro elemento que perpassa a vida das mulheres. Como vocês, como trabalhadoras sexuais, lidam com essa questão?

Monique - É estranho isso porque estamos lidando com os mesmos homens que violentam e matam suas esposas em casa, mas a relação tem uma natureza diferente. Então quando a grande ativista carioca Indianara Siqueira diz que hoje em dia é mais seguro ser prostituta do que ser esposa nessa sociedade por causa do imenso número de assassinatos cometidos por pessoas da confiança das mulheres (e isso não livra as prostitutas dessa mesma violência perpetrada por parceiros), isso nos mostra que é muito raro que clientes agridam e matem trabalhadoras sexuais - quem está fazendo isso diariamente, algumas vezes ao dia, são os maridos.

É preciso pensar o que nessa sociedade legitima esse tipo de coisa porque estamos falando dos mesmos homens, apenas a natureza da relação que é diferente. Historicamente o matrimônio é uma relação que traz as mulheres - e a prole gerada - como propriedade de fato. Legalmente, até pouco tempo atrás, inclusive. Eu sou da primeira geração de mulheres que pode ter uma conta bancária sem o aval do marido, do pai. Então hoje, ainda que não sejamos mais legalmente propriedade dos homens dentro do casamento, essa é uma visão que se perpetuou e precisa ser combatida

BdFRS - Como está o movimento, a luta das trabalhadoras sexuais no país?

Monique - O trabalho sexual não é totalmente legalizado no Brasil. Ele é legal se você o exercer completamente sozinha, se você parar em uma esquina completamente sozinha, desamparada, se não tiver nenhum contato com nenhuma colega, aí eu posso dizer que estou trabalhando de uma forma totalmente legal. Qualquer outro modo de trabalho como as casas de prostituição, ou mesmo trabalhar em um apartamento em conjunto com uma colega, me põe na ilegalidade.

Hoje no Brasil há três redes de defesa de direitos das prostitutas: a Rede Brasileira de Prostitutas, que está com quase 40 anos, mais recentemente fundamos a CUTS (Central Única dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sexuais), e ainda mais recentemente a Articulação Nacional de Profissionais do Sexo. Hoje eu faço parte da Articulação, não mais da CUTS. Dentro delas e junto â sociedade procuramos debater, com toda a dificuldade que é pensar uma atividade que precisa ser exercida às escondidas e o ativismo que, portanto, também precisa ser exercido muitas vezes às escondidas, a dificuldade de convencer as trabalhadoras sexuais a se envolverem nesse ativismo. Mas os debates seguem acontecendo.

BdFRS - Falando em visibilidade, tu és conhecida nacional e internacionalmente, lançou livro, participou de debates. Isso fortalece vocês enquanto movimento?

Monique - Isso tem nos fortalecido não só enquanto movimento, mas também sinto que ajuda e fortalece outras mulheres, que não têm nada a ver com prostituição e me procuram para contar o quanto isso é tão importante, o quanto a visão sobre a prostituição e sobre a própria sexualidade mudou. Porque embora a gente trate a prostituição como uma coisa secreta ela come nas nossas mesas, é importante que seja debatida.

Outro dia, estava fazendo uma corrida (também atuo como motorista de aplicativos) e passamos por um prostíbulo, eu e um casal. A menina olha para dentro e pergunta para ele: "sabe que é isso aí? É uma pouca vergonha que isso seja tão escancarado". Eu tive que me controlar para não fazer comentário. E o parceiro concordava, eu me controlando pra fingir que não ouvia.

A menina indignada, mas por quê? Estávamos em uma área onde acontecem várias festas, acontece sexo, e só aquela que não pode, aquele tipo de festa - e aquele tipo de sexo - precisa ser secreta. E como a curiosidade sobre é imensa por parte das mulheres, ainda que a sociedade siga nos obrigando a manter um muro entre as mulheres ditas decentes e as outras.


Capa do livro Putafeminista / Foto: Arquivo pessoal

BdFRS - O sexo é o grande tabu da sociedade. Vivemos em um tempo em que se fez a “revolução sexual” de alguma forma. As mulheres são mais livres, mas ao mesmo tempo se observa uma banalização do sexo, uma mercantilização, até uma perversão, em contraponto a uma sexualidade mais saudável. Vocês que trabalham no dia a dia com essa questão da sexualidade, como é que tu vês isso?

Monique - A Georgina Orellano, puta ativista argentina, diz que enquanto tivermos vagina como um órgão sagrado, as mulheres não vão se libertar. Eu acho que a gente tropeça muito hoje nessa coisa do sagrado feminino, da buceta sagrada, do útero abençoado, talvez a gente não use esses termos, mas é um novo tipo de religião e um novo modo de aprisionar as mulheres nos seus corpos.

Os homens podem desde sempre viver sua sexualidade de um modo tão liberto, e nós vivemos procurando uma maneira de nos prender, seja pelo argumento higienista de uma sexualidade dita saudável, seja pela questão de não nos expormos para não parecermos putas.

BdFRS – Mas há também o uso, por exemplo, pela televisão, do corpo da mulher para uma exposição de que agora o sexo está liberado, pode tudo, inclusive, com uma expressão bagaceira, quando na verdade não é isso...

Monique - Nunca pode tudo, isso sempre foi uma falácia. Mas o fato de o capitalismo e a publicidade tomarem conta dos nossos corpos não deve nos afastar deles, pelo contrário, a gente tem que brigar para se apossar cada vez mais dos nossos corpos e sexualidade.

Particularmente, não tenho problema com isso que você chama de essa expressão bagaceira da sexualidade, nas ruas, no carnaval, que talvez possamos associar ao funk. Isso me traz muito uma questão de classe, essa perseguição atual ao funk. Muitas outras expressões artísticas populares já foram perseguidas e mesmo criminalizadas, como é o caso do samba e outros ritmos de origem negra ao redor do mundo. Hoje se quer criminalizar o funk. Também porque se precisa de modos para oprimir não apenas as mulheres, mas oprimir aos pobres, em especial às pessoas negras.

Quando penso nessas expressões da sexualidade consideradas vulgares, um outro ponto que me vem à mente é o modo como a cantora Anitta, por exemplo, deixa os homens muito desconfortáveis. Independente de se gostar da música dela ou não, confesso que conheço muito pouco. Mas uma amiga mineira, a Maria Neiva Gomes, falava sobre isso, sobre a Anitta, com toda essa sensualidade expressa em roupas e na sua música, sendo declaradamente uma funkeira (se o que ela toca é funk ou não, é outra questão), é diferente, por exemplo, da Valesca Popozuda, que teve uma ascensão financeira brutal, mas a maneira como ela ascende sempre põe o homem em uma situação de provedor. Anitta se coloca em uma posição diferente, em que ela é sua própria provedora. Se percebe que isso gera um tremendo desconforto. E óbvio que a gente está falando de capitalismo, de uma mulher que enriqueceu brutalmente, que embranqueceu. Mas o que isso significa para o patriarcado, para os homens comuns que estão lá a atacando, dizendo que feminismo é "se sustentar, não é botar a bunda de fora" - mas são, eles mesmos, homens que mal se sustentam, e estão lá falando da Anitta que está se sustentando bem pra caramba.

BdFRS - Dentro disso há um movimento pelo prazer sexual feminino, com brinquedos eróticos, filme pornô feito sob a perspectiva das mulheres. Como tu vês isso?

Monique - Já passou da hora de nos apropriarmos do pornô. Existe um grande movimento contra a pornografia, não só no feminismo, mas no Ministério da Família, de Damares. Este ministério tem várias pastas, uma delas trata especificamente do combate à pornografia e ao mau uso das novas tecnologias. É importante perceber que isso traz um acirramento da vigilância na internet, em consonância com as leis norte americanas de repressão à liberdade de expressão na internet chamadas FOSTA e SESTA, recentemente implantadas pelo governo Trump e fortemente criticadas por ativistas justamente por usarem o espantalho do tráfico de pessoas como suposta motivação, quando a real motivação é controlar o que as pessoas fazem on line.

A gente fala da possibilidade de um pornô feminista, e Damares fala de abstinência. Há uma tendência mundial de avanço do conservadorismo, e é bom para o poder instituído que nos mantenhamos afastadas dessas coisas. Ao mesmo tempo, há um determinado feminismo que compactua diretamente com tudo isso, e que compactua abertamente. Feministas históricas como Catherine MacKinnon e Andrea Dworkin, principais teóricas do que costumamos chamar no Brasil de feminismo radical, fizeram vários acordos com políticos fundamentalistas norte-americanos para poder emplacar seus projetos de lei antipornografia, que foram barrados por terem sido considerados inconstitucionais (elas elaboraram o Decreto Antipornografia dos Direitos Civis, em 1983).

Temos que questionar muito isso; se falamos que a liberdade sexual "perdeu o rumo", queremos cortar determinadas liberdades? Um movimento que avança muito fortemente e que é apoiado pela extrema-direita, é o movimento NOFAP, um movimento contra a masturbação. São mesmo tempos estranhos. Eu acredito que se possa pensar os problemas e opressões da indústria de pornô sem nos aliarmos direta ou indiretamente com a extrema direita.

BdFRS - Quando tu falas em fazer mais pornografia, queria entender um pouco melhor. Muito dessa pornografia que circula nas redes envolve crianças e pedofilia.

Monique - Eu penso que quando a gente fala em pedofilia, exploração sexual infantil, não estamos falando em pornografia, não estamos falando sobre sexo, não estamos falando sobre sexo consensual entre pessoas adultas. Deste modo, não se pode misturar as coisas. Enquanto trabalhadoras sexuais, também lutamos contra a exploração sexual infantil, contra o tráfico de pessoas e exploração como um todo. Do mesmo modo que a existência de casamento infantil deve ser combatida sem que se lance uma campanha contra o casamento entre adultos, querer combater o trabalho sexual de pessoas adultas por que existe exploração sexual infantil é desonesto e ineficaz contra o que se diz querer combater - por que se está combatendo a coisa errada.

Temos que combater o abuso e violência contra crianças, mas isso não quer dizer que eu mulher adulta não possa assistir ou performar pornografia. Podemos também entrar nos abusos da indústria pornográfica, pensar que temos que combater os abusos e não a própria indústria, porque enquanto eu estou combatendo a indústria eu estou combatendo trabalhadores. Eu devo combater os abusos dos bancos, mas nunca os bancários, e isso é bastante claro para mim.

BdFRS - Tem esse debate que a maioria dos homens tem sua sexualidade formada pela pornografia porque não tem educação sexual, não se pode falar isso em casa, então toma contato através dela, e que isso muitas vezes cria uma sexualidade distorcida...

Monique - Uma amiga me mandou uma pesquisa que falava sobre como os homens hoje aprendem sexo com a pornografia, e como isso está destruindo a vida sexual deles. E eu respondi que não sei se eles estão se formando pela pornografia, mas se isso é verdade, palmas para a pornografia, porque há 25 anos atrás os homens eram muito ruins de cama e hoje, melhoraram. Os mais jovens são mais soltos, se preocupam bem mais com o prazer das parceiras, não tem pânico ou nojinho de sexo oral. E ok, isso não é necessariamente um mérito (só) da pornografia, nós exigimos mais hoje dos homens. Mas o debate que ela me trouxe era sobre pornografia.


Em Amsterdã, protesto com as trabalhadoras sexuais da Tailândia contra o uso da camisinha como prova de prostituição (o trabalho sexual é ilegal lá) / Foto: Arquivo pessoal

BdFRS - Como é esse estereótipo de como uma prostituta se relaciona com o prazer sexual, parece que é um tabu...

Monique - É um tabu completo, e isso muda também através dos séculos. Não tenho para mim que o trabalho sexual exercido hoje em dia liberação feminina. Sou uma das mulheres nascidas depois dos movimentos de liberação feminina. Mas se pensarmos nas trabalhadoras sexuais do começo do século passado, elas eram as únicas mulheres que tinham acesso não só ao sexo sem compromisso matrimonial, mas também à noite, à dança, à bebida. Quer dizer, não dá para ignorar o quanto a prostituição foi, em determinado momento, parte de um movimento de liberação feminina sim.

Mas essa questão é engraçada, claro que não vejo que o prazer sexual das mulheres seja a principal busca na prostituição, até porque se está ali pelo dinheiro, e tem muitas mulheres extremamente profissionais que jamais vão pensar em prazer. Mas tem coisas bem interessantes, estudando o José Miguel Nieto Olivar, antropólogo, que escreveu o livro Devir Puta, que fala das coisas sobre prazer, como as prostitutas gaúchas lidavam com o prazer. Tem uma frase que é muito emblemática e chocante, que é "sou prostituta e não puta", ou seja, parece que a prostituta também tem que fugir daquela coisa de que ela é uma mulher livre, que pode ter prazer. "A puta" é sempre as outras, elas que são as vadias, eu sou prostituta, uma profissional.

Miguel fala sobre seus maridos também, e a crença de que uma prostituta somente se engravidaria se gozasse. Não temos o aborto legalizado aqui, tampouco se usava preservativo com regularidade antes da primeira epidemia de AIDS, então quando alguma delas engravidava, entrava em pânico porque seu companheiro pensaria que ela teve prazer com outro. Como se percebe, o prazer sexual feminino é fortemente reprimido dentro do meio prostitucional.

BdFRS – “Filho da Puta” segue sendo um dos maiores xingamentos, não é ladra ou outro qualquer. O primeiro xingamento que sai é esse. Essas questões que permeiam o nosso cotidiano, nossa verbalização, nosso inconsciente. Poderia falar um pouco sobre o xingamento?

Monique - A puta é a mulher sem dono no patriarcado, no modo como se estabelecem as relações no patriarcado, a esposa como a mulher com dono, a família toda pertencente ao homem. Por muito tempo a mulher, esposa, a prole foram propriedade do homem. Do mesmo modo que nosso problema começa quando os homens descobrem seu papel na reprodução. Penso que vem daí essa questão de puta e filho da puta. Filho da puta também não tem dono, não há certeza sobre sua paternidade/propriedade. A exigência da fidelidade das mulheres é sempre uma questão sobre reprodução.

BdFRS - Essa questão da fidelidade. Até muitas mulheres reproduzem isso: Porque nós mulheres somos mais fiéis. Como tu enxergas isso?

Monique - Somos mais vigiadas que os homens, e tudo por causa dessa questão da reprodução. Nosso corpo é uma fábrica de pessoas, as pessoas que precisam saber de onde é que essas pessoas vieram, assim somos condicionadas à fidelidade sexual.

BdFRS - Como surgiu a ideia do teu livro, PutaFeminista?

Monique - A editora me pediu um livro sobre a história do movimento de prostitutas, e daí foi surgindo o PutaFeminista, que está indo para a terceira edição. Aqui em Porto Alegre, tu podes encontrá-lo, além da Cultura e Saraiva, somente na Baleia e na Cirkula. Essa é uma questão curiosa: por que ele não está nas livrarias de Porto Alegre? Eu gosto de fazer essa provocação, eu sou uma escritora porto-alegrense, o PutaFeminista é um livro importante - e raro, não há outro livro com essa abordagem no Brasil -, e ele não está nas boas livrarias alternativas da cidade. Olá, livreiros, existimos rs. (De qualquer modo, se pode adquirir o livro no site da editora ou diretamente comigo).


Silvia Federici recebendo o PutaFeminista das mãos de Monique / Foto: Arquivo pessoal

BdFRS - Como tu estás sentindo esse momento de retrocesso mundial, esse governo que venceu mais por temas morais do que por plataformas de políticas públicas, que apresentam programas como esse da abstinência sexual na adolescência.

Monique - É um desastre para todas nós, em especial porque não estamos falando só do presidente, são as pessoas que estão à nossa volta, ele não está lá sozinho, há todo um contexto que permitiu que ele estivesse lá. A história anda em círculos, não dá para ter uma ideia da história como evolução constante, como se hoje temos essa liberdade e amanhã teremos mais liberdade. O que é assustador nesse momento é que temos forças mais potentes, como a internet, como tudo que foi feito, a manipulação nas redes como o whatsapp, e que continua sendo feito, o que pode nos colocar em um buraco sem saída.

Boa parte dessa repressão ao sexo não é exatamente repressão ao sexo, o sexo muitas vezes é usado como espantalho para alimentar um conjunto de estratégias que tem como função nos vigiar. Por isso falo sempre desse Ministério da Damares, e desse departamento de combate à pornografia e ao (que eles chamam de) mau uso das tecnologias digitais - este é o nome da pasta. Serve para vigiar o que as pessoas fazem na internet, tem diretamente a ver com as leis de repressão norte-americanas da internet que são baseadas em reprimir o “tráfico de mulheres”, e na verdade reprimem os anúncios de profissionais sexuais na internet, mas a grande função disso é vigiar a população em geral. A gente usa desse espantalho do tráfico de pessoas, da pornografia, das trabalhadoras sexuais para poder acordar a vigilância.

É engraçado como normalmente as putas é que são perseguidas nessa função. Mas é tudo uma estratégia sobre vigiar os nossos passos, de todas as pessoas, não tem a ver só com prostitutas. Do mesmo modo que muitas das grandes campanhas contra o tráfico de mulheres acabam sendo em verdade, campanhas de combate à imigração. E a perseguição à imigração aumentou no mundo todo.

O mais assustador nesse período é que talvez não haja muita coisa que possamos fazer para deter o avanço da extrema direita, a pensar a partir do modo como as mídias sociais manipulam o pensamento. O que ainda podemos fazer é não nos aliarmos a isso. Pensando enquanto feminista, enquanto pessoa de esquerda vou pensar sempre se minhas atitudes estão de algum modo se alinhando com as atitudes que o governo toma, e evitar isso. Então, se esse governo lança uma campanha pela abstinência sexual, e dentro desse governo eu tenho um departamento de combate a pornografia, eu estou fora dele, eu quero mais é ser pornográfica

BdFRS – Para finalizar, gostaríamos que nos dissesse o que significa o 8 de Março pra ti.

Monique - O 8 de Março é uma data que deve ser reivindicada também pelas trabalhadoras sexuais. Muitas vezes, somos hostilizadas em manifestações referentes à data, mas seguimos lá bem firmes. Não há feminismo sem as putas.


Retrato após entrevista: Katia, Monique, Stela e Fabiana / Foto: Rogério Soares

Edição: Katia Marko