Rio Grande do Sul

SÉRIE 8 DE MARÇO

“Para mudar o mundo precisamos mudar a forma de nascer”

Com esta clássica frase do médico francês Michel Odent, a doula Zezé Goulart resume seu amor pelo ato de parir

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Nesta entrevista para o Especial do 8 de Março, a doula fala sobre cura, amor e renascimento - Foto: Arquivo Pessoal

Em tempos de coronavírus, recebemos todos os dias centenas de textos, imagens e vídeos com as mais diversas teorias, sejam políticas, econômicas, sociais ou existenciais. Nas redes sociais circulam muitas mensagens de esperança e ressignificação da vida. Há poucos dias, o poema "Curar", de Kathleen O ' Meara, escrito em 1839, apareceu em várias postagens, onde ela fala sobre isolamento, autoconhecimento, meditação e uma nova forma de pensar e agir. Uma cura do ser humano e da Terra. O poema finaliza dizendo: “E quando o perigo acabou; E as pessoas se encontraram; Eles ficaram tristes pelos mortos; E fizeram novas escolhas; E sonharam com novas visões; E criaram novas maneiras de viver; E curaram completamente a Terra; Assim como eles estavam curados”.

Nesta nova entrevista para o Especial do 8 de Março, a doula Zezé Goulart fala sobre isso, cura, amor e renascimento. “O parto é um rito de passagem, a mulher renasce. E todos os desafios que a mulher passa são benéficos para ela sair desse processo mais fortalecida para cuidar do bebê. É sempre um renascimento para todos nós que estamos ali. Parto é amor, é vida, renascimento. Parto é chegada, é divino, parto é presença. É um momento único, muito difícil de traduzir em palavras a emoção”, resume Zezé, uma das doulas pioneiras em Porto Alegre.

Zezé, plagiando Natália Crasoves, diz que "Parir é um ato político. Diante do nosso contexto social, onde o parto está tão desvalorizado, uma mulher conseguir parir diante de tantas adversidades, de tantas controvérsias, descrenças no poder feminino e na nossa capacidade de parir é para ser enaltecida e glorificada. Precisaremos ainda travar muitas lutas para termos nossas escolhas respeitadas e podermos de verdade protagonizar nossos partos”, destaca.

Segundo ela, os desafios são vários, muitas vezes começam na família que não respeita a escolha da mulher. “Numa cidade do tamanho de Porto Alegre, temos pouquíssimos profissionais que atendem parto. A mulher muitas vezes consulta vários profissionais e todos querem já na primeira consulta, agendar a cesárea, muitas vão sendo desencorajadas e outras seguem a busca. A gestante fica quase sem opções e muitas vezes as recebo assim, como última esperança e apoio para assisti-las em seus partos. Quando uma mulher decide que ela quer parir, ela vai parir.”

Confira essa linda e inspiradora entrevista com Zezé Goulart, uma verdadeira ode à força feminina.

Brasil de Fato RS - Nos conte um pouco da tua vida e o que te levou a ser uma doula. Você tem filhos?

Zezé Goulart - Tenho um filho e foi com a chegada dele que tudo na minha vida se transformou. Foi na gestação do meu bebê, que em julho está completando 20 anos, que conheci o trabalho valoroso das doulas. Quatro anos depois de ter sido assistida por uma doula, surgiu o desejo de me tornar uma. Quando me dei conta estava com 40 anos. Num certo dia disse a mim mesma que esse era o ano e que se não engravidasse naturalmente iria adotar um bebê. Lembro que quando eu tinha uns 30 anos, por conta da gestação de uma colega, entrei em contato com a possibilidade do parto de cócoras e pensei, se um dia tiver um filho, quero que seja de cócoras.

Eu tive uma experiência com maternidade bem complexa na minha família. Sou a segunda filha, de quatro irmãs, todas tiveram gestações precoces e sem muito apoio familiar. Minha formação acadêmica é educadora física. Sai de Alegrete com 18 pra 19 anos e fui para Bagé fazer faculdade. Estudei na FUnBA- Faculdades Unidas de Bagé, graças ao Crédito Educativo da Caixa Federal consegui cursar o curso superior numa faculdade particular.

Em razão de minhas irmãs terem engravidado cedo, isto fez com que eu tivesse um choque emocional/corporal, meio que me fechei para a maternidade. Continuei cuidando dos meus estudos e projetos pessoais. Ser mãe nunca foi uma prioridade na minha vida, considerando que já tinha três sobrinhos lindos.

Sofri um atropelamento que me parou por quase três anos. Tive uma fratura de fêmur, que me impedia, inclusive de caminhar. Esse foi um momento bem impactante da minha vida, e me fez rever muitos valores e conceitos. Confesso que só pensava em morrer, acreditava que com aquela fratura jamais conseguiria exercer minha profissão de forma adequada, via isso como uma falha irreparável no meu corpo para realizar atividades físicas. Fiquei muito traumatizada, fazia cinco meses que eu tinha saído da faculdade, estava recém formada.

Naquela época, junto com a faculdade, comecei a trabalhar com desenho arquitetônico, sou desenhista/projetista autodidata, aprendi com o apoio de profissionais do escritório do engenheiro Ned Quintana, pai de uma amiga lá de Bagé, onde estudava. Como sou virginiana, muito detalhista, cuidadosa, comecei a trabalhar nessa área e deixei a educação física de lado. Logo depois da minha recuperação fui trabalhar na empresa JHSantos, fui contratada como desenhista, projetista, fiquei de 1986 a 1991. Trabalhava muito, viajava bastante porque meu trabalho exigia, essa empresa tinha 76 lojas distribuídas no RS.

BdF RS – E quando foi que decidiu engravidar?

Zezé - Em 1991 saí da JHSantos. Fui convidada a trabalhar na Companhia Carris, na época da gestão do Olívio Dutra na Prefeitura de Porto Alegre. Fui contratada como assistente administrativa. Trabalhei na Carris de 1991 a 1999, em outubro deste mesmo ano, aos 40 anos engravidei.

Não lembro o critério que usei para escolher o obstetra que ia me acompanhar, eu me vi completamente perdida dentro de uma assistência obstetrícia tradicional. O obstetra criticou meu desejo de parto de cócoras, fez alusão que isso era "parto de índia", me chamou de primigesta idosa, e que não teria condições de ter um parto assim, sempre me relembrava a minha idade avançada.

Passei as primeiras 20 semanas da minha gestação sofrendo este tipo de violência, me sentia inadequada, saia chorando após cada consulta. Sofri muita pressão da parte dele para me convencer a escolher a única forma de parto que "ele fazia", no caso cesárea. Ele não assistia parto, só fazia cesárea, e eu cada vez mais assustada e sem saber para onde correr, ficava sem ação diante dos argumentos dele sobre minha incapacidade e inadequação, dizia que isto traria malefícios para o meu filho por conta da minha idade. Ele quase conseguiu roubar meu sonho de parir.

Sofri o que chamamos violência obstétrica, naquela época, este conceito não existia. A cada consulta de pré-natal eu voltava para casa arrasada, pela fala do médico dizendo que meu bebê poderia ter diversas síndromes, isso porque a ecografia das 12 semanas - translucência nucal, deu alterada pelo fator idade. Comecei a me preocupar, estudar um pouco para entender minhas opções, e falei que iria aceitar meu filho independente de qualquer síndrome, disse a ele que não iria tirar meu filho, aceitarei ele do jeito que ele vier. Bem difícil relembrar.

BdF RS – Mas tu conseguiste ter o parto natural como desejava?

Zezé - Sim, consegui, graças ao apoio da minha doula e do obstetra Ricardo Jones que foram minha equipe dos sonhos, lá nos idos do ano 2000. Voltando um pouco no tempo...

Aos 30 anos comecei a pensar que um dia teria filhos, nesta época trabalhava na Carris. Minha colega Ana Otto, gestante à época, me contou sobre seu obstetra que atendia na base aérea de Canoas, esse médico assistia partos naturais de cócoras, fiquei empolgada com a ideia e disse que se um dia decidisse ter filhos ia querer parir assim. Minha colega me presenteou com um xerox de um livro que o dr. Ricardo havia sugerido a ela para ler durante a gestação. O livro é do médico curitibano Moysés Paciornik um dos ícones do parto natural.

Lendo o livro me apaixonei pela possibilidade de ter um bebê através do parto de cócoras. Minha mãe teve quatro bebês em casa com parteira. Meu irmão caçula foi cesárea, por sugestão do obstetra para ligar as trompas da mãe, isso foi em 1970. Já tinha 5 filhos, o médico disse pra fechar a fábrica, pasmem.

Eu grávida, nas minhas angústias, buscava auxílio, não tínhamos a internet e foi num jornal de grande circulação que encontrei um anúncio sobre um curso de preparação para o parto. Quem organizava era a psicóloga Flávia Koeche, me inscrevi e já no primeiro dia de aula conheci o dr. Ricardo, o mesmo do livro da minha amiga, lá do passado. Foi uma palestra maravilhosa sobre parto natural, tive a oportunidade de ouvi-la recentemente numa fita cassete. Ele falou naquela época exatamente o que é evidência científica hoje e todas as teorias de parto humanizado que sabemos hoje ele já praticava. Falava de Parto natural, parto respeitoso, mulher protagonista do seu parto, respeito ao bebê, parto suave, respeitar o tempo do bebê, primeira hora, pele a pele... Falava de Leboyer, Nascer Sorrindo...

A fala dele contemplava em 100% o parto dos meus sonhos, era exatamente como imaginei o nascimento do meu bebê. Nesse mesmo encontro conheci a minha doula, Cristina Balzano Guimarães, que trabalhava com o dr. Ricardo naquela época. Neste dia as mudanças começaram, a partir daí tinha a minha equipe formada, Ricardo e Cristina seriam as pessoas que me apoiariam no meu parto. Comecei a praticar yoga para gestantes com a Cris e tudo na minha vida se transformou.

Um reencontro com o yoga que havia conhecido em 1986, durante minha recuperação do atropelamento. Na ocasião uma amiga me apresentou o mestre em Yoga Integral Taunay Valle, grandes aprendizados. Ele teve paralisia infantil e mesmo ele tendo dificuldade de locomoção e movimentos limitados, é mestre de yoga.

Comecei praticar yoga com ele e, fui fazendo as pazes com meu corpo e me tornei praticante de yoga por muitos anos e continuo até hoje. Naquela época não se fazia plano de parto, mas eu tinha o meu plano de parto na cabeça. Tinha idealizado como eu queria que meu bebê chegasse.


"Pari meu filho exatamente como imaginei: de cócoras como minhas ancestrais", é o registro na sua primeira foto com Lorenzo no colo / Arquivo pessoal

BdF RS – E como foi o teu parto?

Zezé - Aaah, eu tive um parto maravilhoso! Eu estava absolutamente tranquila e em paz naqueles dias que antecederam a chegada do grande dia em que ia finalmente ter o encontro tão esperado com meu bebê. Trabalhei até sexta-feira, vim pra casa, vida normal, vinha perdendo meu tampão mucoso nos últimos 15 dias, isto era um sinal que o parto se aproximava... Como era fim de semana loquei vários filmes pra assistir, era perto das 22h quando me dei conta que teria que ir devolver as fitas na locadora, precisava andar um pouco, fui caminhando rápido, no andar de "pata choca" de uma gestante de 40+5 dias, lá me fui com meu barrigão levar as tais fitas. Eis que na volta percebi um sinal de muco com sangue, avisei minha doula.

Minhas contrações começaram logo em seguida, minha doula veio para minha casa, foi uma noite intensa de muitas contrações, mas absolutamente não tenho memória nenhuma de dor. Passamos a noite entre massagens, cromoterapia, chá de canela e muita respiração, posturas de yoga e posições que facilitavam a dilatação e a progressão do meu bebê para o seu nascimento. Ficava respirando fundo a cada contração e visualizava o colo do meu útero se abrindo em flor.

As seis horas da manhã, fomos pro Mãe de Deus, no carro da Cris, chegamos lá com 8cm, fiz muitos agachamentos pra ajudar meu bebê a descer. Tive uma parada de progressão da dilatação, bastante comum pela troca de ambiente. Perto do meio dia estava completa, mas faltava o tal do período expulsivo, este foi longo e bastante demorado. Parecia que ele ia nascer a qualquer momento, mas ele veio no seu tempo de forma lenta, muita calmo e sereno para os meus braços.

Meu corpo anestesiado pelas endorfinas, eu já não sabia mais quem eu era, dor já não existia mais, só queria que ele nascesse, as horas pareciam infindas, aaah, mas o tempo do parto é outro. O grande encontro aconteceu às 14h50 do dia 24/07/2000.

Ele nasceu e o meu mundo parou, se partiu em dois como eu, Zezé antes e depois do Lorenzo, divisor de águas, avalanche de emoções, desafios e muitos aprendizados. Continuo aprendendo a ser mãe, sendo. Foi um momento muito bonito e inesquecível, muito transformador e mudou minha vida para sempre. Eu fiquei muito, mas muito tocada com o tanto de possibilidades que se abriram pra mim, pela oportunidade que tive de parir de forma humanizada e pela presença contínua da minha doula ao meu lado.

Fiquei muito agradecida, agradecida de verdade pelo acompanhamento, pela assistência paciente, pelo carinho, dedicação, profissionalismo e amor com que a Cristina cuidou de mim, me conduzindo com sabedoria pelos caminhos tortuosos das contrações, ondas imensas de amor que me levavam a lugares distintos, jamais visitados pela minha mente.

Disse pra Cris, quando agradeci a ela, que se não fosse por ela, eu jamais teria parido. Ofereci meu parto a ela, tão grata eu estava. A Cris foi aquela mão amiga, que com suas palavras me tirou do medo, me trouxe informação, empoderamento, confiança em mim mesma, na sabedoria do meu corpo e também confiança na sabedoria do meu bebê de saber nascer. Ela me livrou de uma cesárea que eu estava predestinada a fazer, por desinformação, medo e desencorajamento por parte do meu antigo obstétra.

Ela trouxe de volta a confiança e a convicção que tinha. Era naquilo que eu acreditava. Que o parto é fisiológico, natural e espontâneo. Assim como gestar e parir um bebê, deveria ser o normal e natural. Eu estava muito desconstruída pelo medo.

Minha doula foi minha âncora, meu apoio incondicional durante todo o meu processo, no meu pré-parto, parto, no pós-parto e também na minha amamentação, ela quem deu o primeiro banho humanizado no Lorenzo, enquanto Ricardo revisava o meu períneo e me dava alguns pontinhos. Lamento não ter visto minha placenta e nem honrado ela, por pura ignorância não sabia que poderia ter trazido ela pra casa. Hoje honro demais a placenta que nutre nossos filhos durante toda a gestação. Sou apaixonada por elas.

Cris foi inspiração para aceitar aquele convite do Ricardo para me tornar uma Doula e na minha consulta de pós-parto Ricardo me disse: “Que espetáculo foi teu parto guria, tu vais ajudar muitas mulheres, tiveste um parto de cócoras, com 41 anos, um parto bonito como o que tu teve”. Foi isso ou quase isso que me disse. Eu respondi “Ricardo, eu tive bebê com essa idade, eu quero curti-lo, não vou ter tempo para ser doula, ser doula exige muita dedicação, é uma missão, uma doação, minha área é outra, não sei se tenho essa habilidade”. Ele disse que não era precisava decidir isso agora que era apenas para eu refletir sobre. Era algo para mais adiante, deixei a possibilidade em aberto.

BdF RS – Quando iniciou essa aventura de ser doula?

Zezé - Após vivenciar o parto de forma plena, respeitosa e amorosa, sendo eu a protagonista e principalmente a maneira suave como meu filho nasceu, fez com que essa vontade de me tornar doula crescesse. Foi surgindo o desejo de contar para todas as outras mulheres que o parto poderia ser bonito, respeitoso, amoroso.


"Desde cedo precisamos saber que parto não é sofrimento" / Foto: Rafael Rosa

Queria contar esse segredo pra elas, na verdade, deveríamos contar para as meninas, desde cedo na escola, para desconstruir de vez essa estória de que parto não é sofrimento, a dor faz parte, mas somos mais fortes e maiores que a dor, nós damos conta dela, quando temos propósito de parir nossos filhos, passamos por ela, com honra e orgulho, esquecemos a dor no exato momento em que recebemos nossos filhos nos braços. É como se fosse uma mágica.

As pessoas me diziam “para que tu queres ter parto natural? Faz cesárea, é maravilhoso, tu não sentes nada, só marcar a hora”. E ainda hoje continuam a repetir esse mesmo discurso para as mulheres. Dizem tantas coisas negativas sobre o parto que muitas vezes acaba que desencoraja muitas mulheres. Eu não passei por nada disso, pelas escolhas que fiz.

As mulheres precisam saber que outro parto é possível, se informando, se preparando, lendo, se conectando com sua essência e poder, podem se permitir vivenciar o parto e oferecer aos seus filhos um nascimento suave.

Michel Odent, obstetra francês diz que “para mudar o mundo precisamos mudar a forma de nascer”. Em suas falas e palestras em Congressos, e no próprio filme o Renascimento, ele diz que os bebês já nascem com a marca da violência. Precisamos mudar, precisamos recomeçar tudo de novo, a humanidade está muito violenta porque o parto é violento, porque os bebês nascem de forma violenta através de cesarianas todos os dias. Basta olhar as elevadas taxas de cesárea no Brasil. Michel Odent escreveu diversos livros, busquem, leiam, pesquisem e assistam o filme O Renascimento do Parto, 1, 2 e 3, disponível na Netflix. Brincamos que ele é o papa da humanização, sua trajetória é incrível, uma longa data de dedicação a pesquisar e estudar o nascimento humano.

A partir do momento que eu comecei a atender partos, fiquei muito focada nos bebês, queria que os bebês fossem cuidados como o meu filho foi pela Cris. Eu pense que todos os bebês precisam ganhar esse aconchego na chegada. Evitar a separação precoce de sua mãe, por conta das rotinas e procedimentos. A recepção dos bebês não é nada amigável ainda nos dias de hoje. 

A rotina na grande maioria dos hospitais já está sendo respeitada e adiada para garantir a hora dourada, o bebê que nasce em condições fisiológicas estáveis não é separado da mãe na primeira hora.

O banho tardio já é uma prática na grande maioria dos hospitais, as demais rotinas são feitas após a primeira hora. O colírio nitrato de prata, mediante assinatura de um termo, pelos pais, em alguns casos pode ser dispensado.

Eu não gostaria que nenhum bebê precisasse ser vacinado, logo na sua chegada, mas ainda vai levar muito tempo para mudarem as rotinas, já avançamos muito. As luzes, os barulhos, o manuseio e a separação, mesmo que "rápida" pode ser traumática para eles que acabaram de nascer, nascer por si só, já é um trauma. 

Naquela época, 20 anos atrás, era muito mais difícil, e mesmo assim meu bebê não passou por nada disso. Sempre priorizo orientar os pais sobre esse início para que seja o mais suave e respeitoso. Meu foco era fortalecer a mulher para que ela desejasse ter o parto pensando em todos os benefícios pra ela e para o seu bebê através desta vivência ímpar que é parir.

A frase do Michel Odent sempre me tocou muito, “o mundo é violento, porque os nascimentos são violentos”. Quando a gente começa a olhar com atenção, realmente nos damos por conta de que o parto e o nascimento que oferecem nos serviços ainda são muito frios e cheios de intervenções, continuamos a nascer de forma violenta, através de cesareanas, todos os dias.

As taxas não mudam, bebês são arrancados do corpo de suas mães, numa cirurgia com hora marcada, numa sala fria, sem o bebê estar pronto para nascer. Esse foi um dos principais motivos que me moveram a querer me tornar uma doula.

BdF RS – Como foi tua trajetória?

Zezé - Capacitei-me em 2004 e nunca mais parei de atender parto. Esse ano eu completo 16 anos. Todo parto que eu acompanho me deixa uma marca indelével da força da mulher, do poder do amor, da nossa capacidade. A gente nasce com essa força de parir. O parto é transformador. O parto é poder.

O parto é um ato político também, como disse a Natalia Crasoves, na sua tese de conclusão do curso de Psicologia da UFRGS.

É uma exaustiva e longa conversa que precisamos trabalhar com os casais para conscientizá-los e informá-los sobre tudo o que é essencial que saibam para vivenciar a aventura do parto, nos dias atuais.

Ofereço Rodas de Conversa gratuitas, através do grupo Nascer Sorrindo. A cada dois meses organizo workshops para casais grávidos, semanalmente aulas de yoga para gestantes teórico/práticas.

Precisamos falar mais de parto, não só com as mulheres, com os homens também. Por muitos anos o homem foi alijado do processo de gestação e parto. Hoje trabalhamos nos referindo a casais grávidos, trazer para esses homens o direito de participar desse momento, de exercer sua paternidade e proteger a mulher até de possíveis VO que por ventura possa acontecer.

Meu filho, faz 20 anos este ano, absolutamente tudo o que eu faço, o que me move ainda hoje a trabalhar é em honra ao presente que ele foi e é na minha vida. Foi uma belíssima oportunidade que eu tive de vivenciar a gestação e o parto de forma respeitosa e plena, e exercer a minha maternidade tardia, com 41 anos.

Hoje aos 60 anos, com a vitalidade, energia e força que tenho, só tenho a agradecer a tudo de maravilhoso que meu filho trouxe.


"O parto é transformador. O parto é poder. O parto é um ato político também" / Foto: Rafael Rosa

BdFRS - O que uma doula faz exatamente? Existe ainda muita resistência ao trabalho das doulas nos hospitais?

Zezé - Parece bem simples de responder, mas quando paro para pensar o que faz uma doula vejo na minha frente uma lista enorme de coisas que uma doula faz. Existe muita literatura que explica o que faz uma doula e também o que não faz. O trabalho da doula tem uma característica importante que vale salientar, cuidado contínuo e com os olhos voltados e atentos apenas e exclusivamente para o bem-estar da mulher.

Quando a doula surgiu na cena do parto, houve e ainda existe, muita resistência em relação ao nosso trabalho. Pois a doula pode ser uma mulher leiga, que tenha sido especialmente treinada para tal.  

A doula presta apoio físico e emocional para a mulher, e alguns dizem que também apoio espiritual. Cada doula tem suas especificidades e segue sua linha de atuação, utilizando sempre as medidas não farmacológicas de alívio da dor.

Outra coisa importante a dizer, a doula já conhece a mulher anteriormente, a doula faz o vínculo com a mulher, existe um elo de confiança enorme depositado na doula, que vai cuidar e acompanhar cada gestante.

Cada profissional, tem a sua função específica, o médico vai cuidar da parte técnica, da saúde e bem-estar da mulher, dos exames, observar toda a parte clínica, avaliar o bem-estar do bebê, fazer escuta, fazer o toque para acompanhar a evolução da dilatação. Cada um no cenário do parto tem sua uma função. Temos várias definições para exercer a mesma função que é receber o bebê. 

Temos a parteira tradicional que é aquela parteira que aprendeu de mãe para filha, esta é parteira que realmente presta assistência, com os cuidados dentro da tradição.  

Se voltarmos um pouquinho no tempo vamos lembrar que muito antes de existir a medicina, médicos, enfermeiras e técnicos, quem prestava assistência para a mulher no parto eram as outras mulheres, que aprendiam umas com as outras como assistir as mulheres em trabalho de parto, isso não faz muito tempo, não é mesmo?

O parto é um evento social, fisiológico, natural e espontâneo. Quando nascemos mulheres e estamos saudáveis, gestando um bebê, temos plenas condições de ter um parto natural e fisiológico.

Em partos de risco habitual, uma parteira tradicional, sem nenhum curso superior, apenas com a sua experiência pode prestar assistência para a mulher o receber o bebê e cuidar de ambos.

Tanto é que a mídia divulga partos que acontecem acidentalmente no táxi, as vezes é o bombeiro, o policial que acaba recebendo o bebê, isso porque o parto é da mulher é seu próprio corpo que realiza sabiamente todo o processo.

Devemos nos preocupar que na grande maioria das vezes as pessoas, querem fazer mais do que precisa e por vezes acabam intervindo em demasia, sem a menor necessidade. Menos é mais num parto que acontece, numa situação atípica, tipo num taxi.

Costumo dizer, parto eu só fiz o meu, os outros eu só tive a honra de assistir. O importante papel da doula é a qualidade de presença.

BdF RS - Quais as semelhanças e diferenças com as parteiras?

Zezé - As semelhanças que se têm é que ambas as atividades cuidam da gestação e parto. Mas a diferença é que a parteira tem olhar e a responsabilidade técnica e profissional, sobre a mãe e o bebê. Normalmente as parteiras trabalham em duplas, uma vai cuidar do bem-estar da mãe, e outra vai cuidar do bem-estar do bebê.

A doula cuida especialmente do apoio físico e emocional da mulher de forma contínua, sendo a primeira a chegar na cena do parto e a última a sair, ela vai prestar apoio até que a mulher vá para a sala de recuperação.

Vamos encontrar no cuidado da gestação e parto, inicialmente as parteiras tradicionais, depois vieram as enfermeiras obstétricas e mais atualmente as obstetrizes, cada uma tem uma formação distinta. 

E, todas empenhadas no cuidado da mãe e do bebê, parteiras, enfermeiras, obstetrizes, todas capacitadas para acompanhar o ciclo gravídico-puerperal da mulher.

Eu como doula trabalho com olhar atento sobre o casal grávido, que como falei anteriormente, o pai por muito tempo foi alijado desse período da vida da mulher. Eles caem meio de paraquedas, nosso papel como doulas, enfermeiras, parteiras, médicos obstetrizes, é inclui-lo, trabalhar a inclusão do homem nesse processo tem sido bem frutífero. Nesses 16 anos que eu trabalho como doula, presencio a felicidade dos pais que de verdade entram nesse processo, e participam ativamente em todos os momentos de gestação, parto, pós-parto e cuidados com o bebê. É lindo ver o envolvimento afetivo emocional deles.

Nas atribuições da doula durante a preparação do casal para o parto, além da parte informacional, vamos trabalhar a parte prática, conversando e informando as fases do parto, a parte hormonal, as posições que facilitam o parto e a respiração.

Empoderamento, fortalecimento e encorajamento da mulher, não podem ser esquecidos. Durante o cuidado da mulher durante o parto, basicamente usamos as técnicas não farmacológicas de alívio da dor, para trazer conforto e alívio à mulher, usamos a massagens com óleos, aromas, óleos essenciais. Algumas doulas usam florais, acupuntura, a hidroterapia, que é o uso da água, musicoterapia, visualizações, meditações, cromoterapia e mais recentemente auto hipnose.

As doulas estão sempre se atualizando, fazendo novos cursos e aprendendo novas técnicas para facilitar cada vez mais e prestar um apoio mais eficiente. Cada técnica pode ser mais efetiva para uma determinada mulher para que ela possa lidar melhor com suas contrações. Vamos descobrindo como auxiliar cada mulher, considerando que somos distintas e únicas. E cada técnica pode funcionar de maneira mais eficiente dependendo da fase do parto que a mulher se encontra. 


"A doula é a primeira profissional que chega no parto e a última que sai" / Foto: Arquivo pessoal

BdFRS - Quais os benefícios das doulas para a mãe e o bebê?

Zezé - Como resposta para essa pergunta eu falo sobre os inúmeros relatos de agradecimento que recebemos das mulheres, da importância de estarmos ao lado delas de forma contínua. Quando as gestantes me dizem que sem a minha ajuda não teriam conseguido, eu aceito, pois eu fui essa mulher que disse isso para a minha doula, eu entendo perfeitamente, pois já estive, neste lugar, já passei pelo parto, sei como é, que a doula tem esse  papel essencial de ser uma espécie de guia para a mulher.

O meu filho um dia me disse: “tu poderias ser treinadora de atletas, porque o papel que tu faz é de treinadora”. E, na verdade, se tu fosse fazer uma comparação, realmente é isso, até uso essa comparação para incentivar as mulheres. Eu digo a elas: “tu me contratas para eu não te deixar desistir”.

O parto tem vários estágios e fases e somente após dilatar os 10cm é que ela vai expulsar o bebê e dar à luz. A fase ativa é a mais intensa e na transição a mulher vai ter contrações a cada 2 minutos.

Nesta fase 99,9% das mulheres pensa em desistir, normalmente estão muito cansadas e pensam que não terão energia para o período expulsivo, muitas se questionam se vão dar conta, algumas pedem analgesia, dizem que não irão conseguir, e muitas até duvidam da sua escolha de parir naturalmente, algumas pedem cesárea. Ai que a figura da doula faz a diferença, pois está ali para lembrá-las das escolhas feitas anteriormente. Aviso para elas que quando pensam em desistir é porque o bebê está quase nascendo. E vamos encorajando, apoiando, fortalecendo a cada contração.

Faz muita diferença dar assistência continuada para a mulher, para que ela não desista da escolha que fez de ter um parto natural. Não tem emoção melhor e melhor benefício do que ver a mulher sair fortalecida desse processo, mais forte para poder cuidar do seu bebê, o vínculo da mãe com o bebê, do pai com seu filho.

Os benefícios são vários, mas o que de fato vejo é o orgulho da mulher de si mesma, por ter conseguido parir, e que foi por escolha dela. Seu maior prêmio é seu bebê no colo e a família ali reunida banhada no coquetel de hormônios do amor. É um momento de muita plenitude, do nosso feminino, do nosso poder, da nossa força e de muita transformação.

O parto é um rito de passagem, a mulher renasce. E todos os desafios que a mulher passa são benéficos para ela sair desse processo mais fortalecida para cuidar do bebê, para passar pelo puerpério, a amamentação.

A primeira hora de vida do bebê fora do útero chamamos de Hora Dourada, é quando o bebê está no seu momento pleno e com seus reflexos e instintivo de sobrevivência mais presente por estar banhado no coquetel de hormônios. Neste momento acontece um enamoramento e um apaixonamento da mãe pelo seu bebê, neste reconhecimento existe um imprint que é o encontro do primeiro olhar do bebê com sua mãe, com seu pai, se a primeira hora for respeitada e o bebê nascer numa condição fisiológica estável é mágico observar estes momentos.


"Faz muita diferença dar assistência continuada para a mulher, para que ela não desista da escolha que fez de ter um parto natural. " / Arquivo de Marina Freitas

BdFRS - Como está o debate sobre a entrada de doulas no SUS?

Zezé - As doulas ainda não são bem-vindas no SUS, tem um debate gigante aqui na nossa cidade sobre essa questão. Temos um médico que é vereador aqui na Câmara, e sua posição é contrária a presença das doulas no SUS. Tentamos, junto com a ex-vereadora Jussara Cony implementar um Projeto de Lei (PL) para entrada das doulas no SUS e nos hospitais de Porto Alegre, não conseguimos ainda aprovar esse projeto, porque esse médico influenciou todos os vereadores da Câmara.

Alguns municípios do RS já têm Lei para a presença da Doula nos hospitais, aqui na Capital não temos apoio para aprovar o PL das Doulas, apesar dos esforços das ADOSUL (associações das doulas), o discurso consiste na questão de que o SUS é gratuito e que a doula cobra. Uma mulher de baixa renda não poderia pagar, e ela está usando SUS e pagando a doula isso não é coerente.  

Temos o Hospital Conceição, que é hospital público e trabalha com parto humanizado, mas felizmente a doula não pode entrar, pois a gestante tem direito a apenas um acompanhante, equivocadamente classifica a doula como acompanhante e a doula não é, acompanhante é o companheiro ou algum familiar de escolha da mulher, precisamos avançar. A referência no Brasil é o Hospital Sofia Feldman, de Belo Horizonte, vários profissionais daqui de Porto Alegre, já foram fazer formações e capacitações lá no Sofia por ser Hospital SUS, referência em Parto Humanizado e lá trabalham com doulas voluntárias, mulheres leigas da comunidade, treinadas como doulas para estarem ao lado das mulheres no parto.

Quando o parto passou para o hospital, a mulher se afastou da sua família, ficou isolada, sozinha dentro de um serviço, com pessoas estranhas, em um ambiente estranho e foi neste contexto que surgiu a doula e sua presença veio amenizar, aquela suposta solidão que a mulher se encontrava, sem a presença de nenhum familiar.

Entrou em vigor a Lei Federal nº 11.108, de 07 de abril de 2005, mais conhecida como a Lei do Acompanhante. Ela determina que os serviços de saúde do SUS, da rede própria ou conveniada, são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante durante todo o período de trabalho de parto, parto e pós-parto.

A doula tem como premissa, não poder se manifestar, de nenhuma forma, enquanto ela está prestando assistência à gestante em sala de parto, nosso papel é prestar apenas apoio à mulher. A doula deve exercer sua função sempre baseada em evidências científicas e ter conhecimento da linguagem técnica, usada pelos profissionais. Muitas vezes ela traduz para a mulher em linguagem simples, termos técnicos que algumas vezes não entende, creio ser esta a razão de ser muitas vezes vista como uma ameaça, razão pela qual a nossa presença ainda não é bem-vinda em alguns hospitais.

BdF RS - Mas existem inúmeros estudos e pesquisas que demonstram a importância da doula...

Zezé – Sim, estudos que mostram a diferença que faz a presença da doula, onde são elencados em percentuais os valores de diminuição de pedidos de analgesia, diminuição da percepção da dor, diminuição do tempo de trabalho de parto, satisfação da mulher, do casal e também existem pesquisas em relação a amamentação, o vínculo.

E como se diz “contra fatos não há argumentos”, alguns médicos estão tendo uma maior abertura para a presença das doulas, é preciso levar em conta que é um direito da mulher ter sua doula. Os que ainda resistem dizem que não aceitam doula ou não trabalham com doulas, vale lembrar que a doula é da mulher. Ela pode simplesmente trocar de profissional ou ainda, pode responder: “Mas a doula não é para o senhor, é para mim doutor”. 

Ainda não temos uma democratização do parto humanizado, as doulas ainda não são bem-vindas no SUS, e temos um longo caminho de conscientização e informação para que a mulher se informe e empodere o bastante para debater com o médico sobre suas escolhas sobre seu parto e sobre o corpo dela. As mais ativistas dizem: “Meu corpo, minhas regras”.


"Ainda não temos uma democratização do parto humanizado, as doulas ainda não são bem-vindas no SUS" / Foto: Arquivo pessoal

BdFRS - Como uma gestante pode “contratar” uma doula? Há um “bando de doulas” em Porto Alegre? Qual a melhor maneira de escolher/selecionar uma doula? Há formação pública para doula?

Zezé - Falo sobre a minha experiência, a forma mais comum de contratar uma doula é por indicação. Na internet há bastante divulgação de trabalho de doulas. Mas a maioria das mulheres buscam através da indicação de uma amiga que teve o acompanhamento de uma doula. 

Sempre pergunto, quando uma mulher me procura como ficou sabendo meu contato, a maioria é por indicação, mas na semana passada duas me disseram que chegaram a mim pela internet. O Google é meu cartão de visitas.

Sobre se há um bando de doulas em Porto Alegre? Existe um bando de doulas em Porto Alegre. Quando eu comecei, fiz o meu curso em 2004, em 2005 já comecei a organizar os cursos de doulas aqui em Porto Alegre. No início fazíamos curso para 10, 20 doulas. Logo após o lançamento da Rede Cegonha pelo Ministério da Saúde, onde incentivava a presença das doulas, houve uma procura absurda pela Capacitação de Doulas, chegamos a formar 80 doulas num ano. Quando a Organização Mundial da Saúde, o Ministério da Saúde começaram a trabalhar a inclusão das doulas e ter toda essa campanha de  incentivo do parto humanizado, adequado, via Rede Cegonha, existiu essa necessidade de capacitar e treinar novas mulheres para prestar assistência.

O curso de doulas que oferecemos em Porto Alegre é um curso de sensibilização das alunas para que olhem para o parto e para essa mulher, para esse homem, com empatia, carinho e respeito neste momento único da chegada de seu bebê, procuro alertar os casais sobre nossa realidade, vivemos em um país que precisa uma lei federal para o marido estar ao lado da esposa para assistir o nascimento do filho, imagina ter que autorizar a presença da doula?

A mulher tem direito à liberdade de escolha, humanizar o Parto é respeitar a escolha da mulher. 

Temos um bando de doulas, mas que ainda não podem exercer de fato a assistência a que se propõe, fazemos trabalho de formiguinha, vamos gradativamente conscientizando uma mulher de cada vez. Quando conseguimos empoderar uma mulher para parir é uma vitória, não é nada fácil fugir do sistema obstétrico vigente para termos o parto que sonhamos e desejamos, quero um parto adequado para todas as mulheres, em hospitais públicos e privados, no SUS, no Moinhos, no hospitalzinho lá da conchinchina, que cada mulher possa ter o mesmo tratamento, o mesmo respeito e as suas escolhas respeitadas. Esse é o nosso sonho e vamos continuar trabalhando para torná-lo realidade.

Formações públicas ainda não temos, parece que Brasília tem um projeto de fazer capacitação de Doulas voluntárias. Nossos cursos são de 40 horas aula e parece que o Ministério vai passar a exigir que a formação seja de 80 h/a, para formação de novas doulas.

BdFRS - Quantos partos você já acompanhou?

Zezé - Eu sempre tenho uma reticência sobre isso, não gosto muito de números. Tenho todos anotados aqui nos meus cadernos, eu nunca parei pra contar com exatidão. Não tenho o número preciso e algum dia, talvez, pare para contar se achar importante. Gostaria de ter escrito um livro para contar alguns deles, isso é um projeto para o futuro. Eu queria ter escrito esse livro pela passagem dos meus 15 anos como doula, por várias razões, não consegui. 

BdFRS - O parto pode ser tratado como um momento de cura? Nos fale sobre o protagonismo das mulheres neste trabalho.

Zezé - Para protagonizar seu parto a mulher precisa decidir quando, como, onde e acompanhada de quem ela quer estar no momento da chegada do seu bebê. Muitas vezes uma mulher precisa vencer muitos desafios, inclusive convencer o próprio marido a aceitar que ela deseja um parto normal, são muitos mitos a serem vencidos e derrubados, as vezes crença familiar dele é que cesárea é maravilhosa.

E sim, o parto é um momento de cura. Eu falo sempre com as minhas doulandas, durante a preparação para o parto, para que elas acessem experiências negativas que tiveram, que marcaram a sua vida de alguma forma, que façam contato e acessem essas emoções antes do parto para chegar no parto um pouco mais leves.

Às vezes vivemos experiência de abuso, uma coisa bem comum na nossa vida de mulher, botamos aquela história lá embaixo do tapete e nunca a acessamos. O parto é uma boa oportunidade para a mulher buscar de alguma forma ressignificar a violência sofrida.

No meu parto ressignifiquei muitas coisas em relação a isso, de me sentir incompetente, de me sentir burra. São exemplos de coisas que podem te marcar e que no parto tu podes curar, pelo processo desafiante que é o parto e perceber o quanto somos fortes, é lindo de ver.

Parir pode curar, cura a tua criança, cura a adolescente que tu foi, cura a relação com teus pais, cura a relação contigo mesma, com a tua sexualidade, com teus medos. Parto é rito de passagem e para uma mulher protagonizar o parto ela tem que fazer todas as escolhas, as escolhas precisam ser dela, ela só precisa ser apoiada e respeitada pelo companheiro, pela companheira e pelos profissionais que irão assisti-la.


"A mulher protagonizar o seu parto é ela decidir quando, como, onde estar, acompanhada de quem ela quer estar" / Foto: Arquivo pessoal

BdFRS - Maia Neves escreveu que a parturição sempre teve o poder de agrupar mulheres, vizinhas, amigas e parentes próximas em volta da parturiente, gerando amizades profundas, comadrismos, um grande número de crenças acompanhadas de um universo simbólico, além de invocações aos mais diversos santos (...) Isso também é observado no serviço como doula?

Zezé - Nunca li Maia Neves, mas é exatamente isso. Na assistência e preparação para o parto, priorizamos agrupar os casais para trabalharmos juntos por ser muito produtivo e enriquecedor, levando em conta que para pais de primeira viagem é importante estabelecer novos laços com casais que estejam vivenciando experiências semelhantes.

Desde 2006 organizo Rodas de Conversa, através do grupo de apoio, Nascer Sorrindo, em breve vamos retomar os encontros, são mensais e gratuitos, sempre num local público.

Costumo dizer que cada mulher que acompanho se torna uma filha para mim, passamos um momento muito forte juntas, a ligação da mulher com sua doula é pro resto da vida.

E vale aquela máxima “É preciso uma aldeia para criar uma criança!”

BdFRS - Os índices de mortalidade materna e neonatal em nosso País ainda se encontram em patamares elevados. Tais indicadores configuram uma situação de violação dos direitos humanos de mulheres e crianças e um grave problema de saúde pública. O elevado número de cesáreas. Como doula, como tu vê essa questão?

Zezé - Como doula, creio que os números de cesáreas, somente vão diminuir quando as mulheres decidirem parir. Essa mudança só vai acontecer pelas mulheres, quanto mais mulheres se fortalecerem, quanto mais mulheres se empoderarem, mais mulheres desejarem vivenciar o parto, as taxas de cesáreas vão diminuir gradativamente. Uma grande mudança já aconteceu pela presença das doulas, mas precisamos avançar ainda mais. 

Eu sempre falo para minhas clientes: eu duvido, que uma mulher com informação adequada, baseada em evidências, ela jamais vai escolher uma cesárea.

Existe uma pesquisa chamada Nascer no Brasil: Cesárea, mitos e riscos, esta pesquisa nos mostra que a grande maioria das mulheres da rede privada inicia o seu pré-natal desejando um parto normal, e a grande maioria delas termina em cesárea, basta olhar o índice de cesáreas na rede privada que é de quase 90%, triste realidade. Aqui não estamos a buscar culpados, fica a reflexão!

BdFRS - Com a pandemia do coronavírus deve ser enfrentada pelas gestantes? Quais as precauções?

Zezé - Essa questão do coronavírus está bem complicada. Eu estou prestando suporte virtual nesse momento, só vou atender os partos presencialmente, no domicílio das minhas clientes e acompanhá-las até a entrada do hospital, seguindo todos os protocolos de higienização, uso de máscaras, respeitando todas as recomendações de segurança, tanto para mim, quanto para o casal.

Os hospitais, para prevenirem contaminação, limitaram entrada a apenas um acompanhante, então, neste momento precisamos ser compreensivas e entender que é por uma razão específica, estou acompanhando as notícias a todo o instante, nos grupos e nas redes sociais sempre ouvindo os profissionais mais respeitados para estar atualizada e alinhada com as últimas determinações de segurança.

As precauções são seguir as informações, respeitar as orientações da Organização Mundial da Saúde, do Ministério da Saúde, ficar em casa. Em isolamento social o máximo possível. 

BdFRS - O que significa o ato do nascimento para ti?

Zezé - Talvez seja a pergunta mais significativa para mim. O que significa o ato de nascimento?

Me surgiram várias interrogações para falar sobre algo sagrado e tão poderoso. Sempre digo, parto é poder, fico sem palavras diante do milagre da vida, diante de um nascimento, me emociono e nunca vou parar de me emocionar, quando uma mulher vence o sistema e consegue parir e dar à luz.

Mesmo depois de 16 anos, cada parto é sempre como se fosse o primeiro. O parto toca todas as pessoas que estão presentes, se tiverem olhos de ver e coração para sentir.

É sempre um renascimento para todos nós que estamos ali diante do nascimento de um novo ser, puro e sagrado, parto é um momento único, muito difícil de traduzir em palavras essa forte emoção.

Parto é ocitocina pura e ocitocina é o hormônio do amor.

Parto é amor, é vida, renascimento.

Parto é chegada, é divino,

Parto é presença!


"Parto é amor, é vida, renascimento. Parto é chegada, é divino, parto é presença" / Foto: Arquivo pessoal

 

Edição: Katia Marko