Rio Grande do Sul

Coluna

Um impeachment nunca é igual a outro

Imagem de perfil do Colunistaesd
As hipóteses de destronamento de Bolsonaro não navegam pelas mesmas águas dos impedimentos de outros presidentes - Reprodução
A manutenção do governo Bolsonaro é, progressivamente, uma situação cada vez mais instável e difícil

O avanço da pandemia da covid-19 no Brasil está acelerando as crises que já haviam se formado ou desenvolvido antes desse período.

A recessão econômica sobrevive e recrudesce desde a explosão da crise de financiamento em 2008. Em especial, a partir de 2013 tornou-se forte no país e assumiu contornos mais dramáticos em 2017 devido às opções austericidas de Michel Temer, mas já desde 2015 as medidas de controle fiscal tomadas pelo governo Dilma tinha apontado um viés recessivo para a economia brasileira. A partir de sua posse na Presidência em 2019 Bolsonaro aprofunda o cenário com medidas de concentração de renda adotadas sob o comando de Paulo Guedes.

A crise política, por sua vez, vem de forma continuada desde os questionamentos à legitimidade do governo Dilma Rousseff, já no dia seguinte às eleições de 2014. O quadro foi progressivamente se agravando com o esforço político feito pelo bloco neoliberal no processo de impeachment de Dilma e na sustentação do esquálido e moribundo, porém obediente, governo Temer.

O resultado destas crises foi um crescimento dos setores neofascistas, neoconservadores e autoritários que ganharam apoio popular, exatamente pelo desalento que se abateu sobre os setores mais empobrecidos e sobre a pequena burguesia desesperada. Setores estes com os quais a burguesia neoliberal se viu obrigada a compor um bloco para garantir o poder, através da eleição em 2018, de um governo cindido desde seu início. Um Bloco no Poder (1) onde se confrontam a necessidade de estabilização institucional, sentida pela burguesia internacionalizada e financeirizada, para manter a segurança dos investimentos e fluxos de capitais, e a necessidade de rupturas progressivas e sucessivas com os elementos do Estado Social por parte da lúmpen burguesia regional, ávida por extorquir, de forma cada vez mais aprofundada, os salários dos trabalhadores antes que o barco afunde.

Esta aliança, entre rentistas, bancos e multinacionais com essa burguesia comercial local, abriu espaço para todo o tipo de contrabandista, sonegador, alto burocrata fundamentalista, militar ressentido e miliciano, transformarem em política e virtude sua forma de exploração e segregação dos trabalhadores, em especial dos trabalhadores precários das vilas e favelas mais empobrecidas e desassistidas de nossas cidades.

A crise sanitária da pandemia atualizou essas cisões e crises no interior do Bloco no Poder. Grandes intelectuais orgânicos da burguesia financeira demonstram rejeição ao governo Bolsonaro. Economistas, como André Lara Resende e Armínio Fraga, governadores e prefeitos conservadores, como João Dória, Wilson Witzel e Bruno Covas, empresas de comunicação e suas vozes, como a Rede Globo e Luciano Hulk, têm se distanciado e rejeitado as medidas do governo Bolsonaro. Não se trata somente da genocida política sanitária de Bolsonaro, mas também de sua política econômica, que apressa o Brasil em direção à anomia e à hipótese dos golpes autoritários.

A manutenção do governo Bolsonaro é, progressivamente, uma situação cada vez mais instável e difícil. Suas condutas, seus movimentos, suas declarações, seus enfrentamentos na conjuntura da pandemia, tanto nos aspectos sanitários quanto nos aspectos econômicos, aumentam a cisão entre as frações que compõem seu bloco de sustentação; e estão a erodir seu apoio em setores de empregados médios e nas classes trabalhadoras assalariadas e precarizadas.

A pesquisa publicada neste mês de março, pelo Valor Econômico (2), indica que 50% dos entrevistados desaprovam a ação de Bolsonaro para enfrentar a “crise do coronavírus” e que 64% não confiam que o presidente Bolsonaro tenha capacidade de enfrentá-la em um contexto onde 84% concordam com as medidas de proibir aulas, aglomerações e recomendar o toque de recolher às pessoas, ou seja com as medidas de isolamento social. As manifestações dos bolsonaristas ricos contra as medidas de proteção à vida, como as ‘carreatas da morte”, foram recebidas com críticas e reações tanto populares quanto institucionais. Foi assim em Porto Alegre onde a carreata foi vaiada e recebida com panelaço, em Salvador não teve condições de percorrer as ruas por falta de apoiadores ou em Belém onde foi impedida pela polícia com base nos decretos de ordem pública.

Crescem as movimentações políticas, inclusive entre militares, pela hipótese do afastamento de Bolsonaro, seja pelo impeachment ou por renúncia - caminho que pode permitir maior controle da sucessão aos setores conservadores do governo.

O impeachment fatalmente mobilizaria a oposição e, talvez, acabasse por extrapolar para mobilizações sociais, o que poderia dificultar o controle do processo. Contudo, processos de impeachment e renúncia nunca são iguais uns aos outros.

Jânio Quadros renunciou em agosto de 1961, após um breve governo sem base parlamentar, sem apoio dos militares, distanciado dos EUA e que não expressava uma afirmação ideológica com capacidade de mobilização contra a ordem, seja à esquerda ou à direita. O governo de Jânio Quadros implementou cortes nos gastos públicos para conter a inflação, medidas estas de cunho liberal. O resultado foram perdas salariais fortes, que geraram críticas entre os trabalhadores. Por outro lado, tentou controlar a remessa de lucros ao exterior, contrariando setores conservadores que o haviam apoiado. Sua renúncia abriu caminho para a unificação da frente empresarial e militar que levou ao golpe militar de 1964, com apoio dos EUA.

Em 1992, Fernando Collor de Melo sofreu o impeachment, já isolado após o confisco da poupança, num acelerado processo de desregulamentação da economia que, se o aproximou do capital volátil internacional, o distanciou da ainda autárquica indústria brasileira, que desde este período entrou em declínio contínuo, tanto econômico quanto político. Este processo marcou o mergulho da burguesia brasileira no neoliberalismo e sua financeirização absoluta, consolidando a hegemonia política dos setores rentistas, após longas décadas de expansão do capital sob direção desenvolvimentista. Esta base de apoio se desmanchou “no ar”, vindo a se reorganizar no período seguinte, sob a política do “Plano Real” de Itamar Franco e Fernando Henrique.

O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, foi a expressão do rompimento de um Bloco no Poder construído no contrafluxo da tendência mundial de radicalização neoliberal. Um bloco que, sob hegemonia de um setor semi autárquico da burguesia, em especial da indústria e da infraestrutura, envolveu setores das classes trabalhadoras e apostou em um projeto de aquecimento do mercado interno, com base em requisitos parcialmente desenvolvimentistas. O impeachment da Dilma foi, em última análise, o afastamento dos setores da classe trabalhadora da composição do Bloco no Poder, com o sentido estratégico de desobstruir o caminho para a retomada de um programa de austeridade e garantia da remuneração de capital, para o que seria necessária a diminuição dos sistemas de proteção social a diminuição do custo do trabalho. Se o governo Dilma já era acossado pela operação de desestabilização do setor rentista da economia e da nova direita, também a erosão do apoio popular em função das medidas recessivas tomadas, em especial no ano de 2015, criou as condições suficientes para sua deposição.

De um modo sintético e não detalhado, o que há em comum entre os dois primeiros episódios críticos no governo Bolsonaro, a renúncia de Jânio e o impeachment de Collor, é a incapacidade de resistência desses governos à própria queda. Já o que caracterizou o processo de queda da Dilma foi a retirada de setores da classe trabalhadora do Bloco no Poder, ainda que ocupassem um papel não dirigente.

As hipóteses de destronamento de Bolsonaro não navegam pelas mesmas águas de nenhum destes processos políticos. Em comparação ao processo de Dilma, a deposição de Bolsonaro não tem o objetivo de excluir os trabalhadores do Bloco no Poder que sustenta Bolsonaro, já que estes nunca incorporaram o campo político do governo. Em relação aos processos de Jânio e Collor a diferença está na capacidade de reunir recursos para resistir. Bolsonaro ainda reúne alguns recursos políticos para evitar ou, ao menos, atrasar sua queda.

A política de sustentação de Bolsonaro está baseada na emergência de uma direita de caráter neoconservadora e neofascista, mobilizada, ideologizada e politizada. Reúne um bloco de ressentidos ideológicos que pensam ter perdido direitos naturais baseados na supremacia racial, no patriarcado e nos valores culturais religiosos fundamentalistas. As transformações de hierarquia social em curso no Brasil, em especial no período dos governos de política Lulista, de 2003 a 2014, com a diminuição da pobreza somada a uma acelerada corrosão da economia brasileira, de 2015 aos dias de hoje, criaram as bases sociais e culturais para um ‘contra-ataque’ reacionário, com um programa de restauração da tradição, da família e do direito dos ricos. A aliança destes setores da direita reacionária com a elite empresarial rentista foi o que deu condições para a ascensão deste bloco ao governo.

Ainda que os setores rentistas internacionalizados da economia percebam a dimensão da crise a que Bolsonaro está levando a economia e a política, e comecem lentamente a se distanciar dele, refletindo nas críticas das empresas de comunicação, no distanciamento dos governadores, na perda de base no Congresso e em revezes no Supremo Tribunal Federal e no sistema de Justiça, Bolsonaro ainda possui condição de resistência, mesmo que tenha perdido grande parcela de sua capacidade de direção política, criando um vai-e-vem de decisões, desencontros e derrotas capazes de ampliar a crise em um contexto crescente da pandemia.

O tema de sua deposição está em aberto, está na pauta e em crescimento. Porém, não resolvida exatamente pela capacidade de Bolsonaro mobilizar a nova direita reacionária. Um caminho pode ser seu afastamento por uma renúncia acordada, o que seria o auto reconhecimento de sua total inépcia, necessitando para isto uma deterioração política na unidade deste campo reacionário - que se mantém mobilizado em torno de causas ideológicas e de valores - até sua perda total de apoio, inclusive na extrema direita que vai para as ruas e atua nas redes sociais catalisando opinião.

O outro caminho, a deposição pelo impeachment, pressuporia um crescimento da oposição no sentido amplo, mas a de caráter popular em especial, e uma disposição de enfrentamento político maior. Neste segundo caminho é de se supor que haja resistência de Bolsonaro e de sua base de extrema-direita. Neste contexto, não se pode, sob pena de subestimar a luta política e a disposição da nova direita brasileira, descartar a hipótese de crescerem os apelos de viés autoritário, onde Bolsonaro e seu campo político, incluindo-se parcela dos militares e do Judiciário, poderiam adotar medidas desdemocratizantes como a suspensão das eleições de 2020 para que estas não virem um plebiscito contra seu governo, intervenção da União Federal sobre os entes da Federação, decretação de garantia da lei e da rodem (GLO) para cumprimento pelas Forças Armadas, etc. A adoção do Estado de Defesa viria para concentrar poder e diminuir o dos governadores, prefeitos e Congresso, como estratégia de sobrevivência dos setores mais autoritários e de viés fascista e não internacionalizados, dependentes da manutenção do governo para consolidar sua acumulação de capital e autoridade.

Inspiração e talvez autorização superior não faltam. No dia 19/03, com a conveniente discrição dos meios de comunicação e das vozes reacionárias e extremistas do bolsonarismo, o instável e deslegitimado governo do Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, fechou o parlamento e os tribunais israelenses (3). Benjamin Netanyahu concentrou poderes sob o manto da excepcionalidade da “guerra contra o coronavírus”, em um claro passo adiante na ideia de um processo de desdemocratização e autoritarismo em fomentação no mundo (4). Trata-se de um aliado central da política de Donald Trump e do setor de defesa dos EUA. O quadro é semelhante na Hungria de Viktor Orban, na Bulgária de Boyko Borisov, nas Filipinas de Rodrigo Duterte, entre outros arroubos da nova direita no mundo.

A queda de Bolsonaro está na ordem do dia, mas trata-se de uma luta entre forças poderosas, múltiplas e paradoxais, inclusive as forças da sustentação de Bolsonaro. O desfecho se dará quando houver uma nova coalizão política, que tenha força suficiente para deslocar uma fração de um campo para o outro.

 

1 - Bloco no Poder é aqui tomado como uma relação específica de dominação conjunta de mais de uma classe ou de fração, que emerge como uma unidade política no interior do Estado. Uma unidade de classes e frações politicamente dominantes sob a égide da fração hegemônica, porém contraditória e conflitiva. Como referência: Nicos Poulantzas, Poder Político e Classes Sociais 1977.

4 - Sobre isto ver artigo de Eric Kayser “Coronagolpe ou como a pandemia pode ser usada para criar ditaduras”. http://www.ihu.unisinos.br/597443?fbclid=IwAR3vbUe_Kxp2Vcv_tGv3rw9fKY_mKeK5xeiq44yHgelinzAvLi4N5GisiaI

 

Edição: Katia Marko