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Pássaros na garganta: a nudez do capital

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LP Tetê Espíndola - Pássaros na Garganta (1982)
LP Tetê Espíndola - Pássaros na Garganta (1982) | Som da Gente - Luiz Fernando Borges da Fonseca
Políticos defendem mais a economia que as pessoas

“O rei está nu” – eis a famosa expressão do conto infantil de Andersen. O falso tecelão a todos engambelara: só os sábios verão a nova roupa que o rei encomendou. Nu, o rei se cobria com as vestes de vento. Ninguém via, todos néscios querendo bancar-se de astutos. Mas uma criança grita, acusando a nudez do monarca!

A tradição bíblica é contundente: “a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus; porquanto está escrito: Ele apanha os sábios na própria astúcia deles” (1Co 3, 19). Ou, como diria Akira Kurosawa: “em um mundo louco apenas os loucos são sãos”. 

Andersen, São Paulo e Kurosawa parece prognosticarem a interpretação coincidente com o que estamos vivendo hoje, sob a coronacrise. A sociedade do capital, seus estados-nações, sua economia, a exploração da natureza, do trabalho, tudo, enfim, parece inutilidade diante do monstro virótico que nos assola a todos. Nem as virais mensagens da hipercomunicação nem a virulência do “fim da história” parecem poder desbancar a sua superfluidade. A única coisa que não se desmancha no ar são as necessidades do corpo humano, a capacidade produtiva dos operários fabricando ventiladores e máscaras, a centralidade dos agricultores produzindo comida. 

A feliz recordação de Guilherme Daldin, ontem em nossos diálogos, do vento de Caymmi coloca em tela justamente isso, “um ciclo produtivo comunitário” como contraponto ao que se derrete. Boa parte da tradição marxista, por exemplo, também o ressalta – a distinção entre sociedade (moderna, capitalista) e comunidade (originária, comunal). É evidente que não se pode, utopicamente, restaurar o passado; mas futuro algum haverá seguindo a retilínea destrutividade que o capital promove. No fim do túnel, apenas o abismo. Melhor retornarmos do túnel e cavarmos outras saídas. Seja lá como for.

O rei está nu, porque o capital tirou sua máscara. Políticos defendem mais a economia que as pessoas; empresários não se importam com milhares de mortes; diplomatas capitalistas vão aos portos chineses roubar a carga vendida a seus países irmãos (irmandade do capitalismo central, por sinal). Definitivamente, o rei está nu. 

Nessas horas, talvez o melhor seja regressar ao vento. Tetê Espíndola, por exemplo, alcança com suas cordas vocais lugares que só os alísios atingem. Dela me recordo por dois motivos: um é por ter gravado um disco só reproduzindo o som dos pássaros amazônicos, depois de uma longa expedição em busca do cantar do uirapuru, que resultou no álbum “Ouvir/Birds”, de 1991; outro é por ter “Pássaros na garganta”, título de seu segundo disco solo, de 1982, que Arrigo Barnabé qualificou de “sertanejo lisérgico”. 

A música que dá título ao disco é perfeita para dialogar com o vento caímico. O diálogo entre a cultura baiana e a pantaneira se dá por via do ar. Tetê Espíndola a compôs com Carlos Rennó. Tetê e Rennó, em combinação perfeita, apresentam o grito da criança, a loucura de Deus e a sanidade dos loucos, a um só tempo. A melodia é endoidecedoramente bela; a poesia, bonitamente alucinada. Cinco estrofes, uma a uma espelhando nosso tempo e apostando em ventosas humanas:

“No céu da minha garganta
Eu tenho ao cantar
Pássaros que quando cantam
Não posso conter
Solto o que se levanta
Do meu ser
E vou ao sol no vôo
Enquanto sôo”

Eis o grito incontido da criança ao ver a nudez do império do capital. Depois, o assobio do mestre baiano é sentido na crueza da constatação de pássaros extintos:

“Mas quando num céu tão cinza
Não vejo passar
Os pássaros que extinguem
Da terra e do ar
Passo o que existe em mim
A doer
Me dou tão só ao som
Com dó e dom”

A saúde humana pressupõe a sanidade do planeta. Por isso Deus captura a astúcia dos sábios – eles são insanos, destroem sua própria casa:

“E o que sinto vai contra
Quem varre as matas 
E arremata a terra-mãe
E me indigna a onda
De insanos atos de insensatos que não amaina”

E não é que nos indigna a todos “a onda de insanos atos de insensatos que não amaina”? Mas sempre é tempo de vencer a barbárie e o pós-COVID – 2021 (com otimismo!) – nos dará novo ânimo para desmanchar tudo o que está aí como sólido:

“Ânsia de que a vida seja mais cheia de vida
Pelas alamedas, pelas avenidas
Em aroma, cor e som –
Árvores e ares, pássaros e parques
Para todos e por todos
Preservados em cada coração”

Em breve, nas alamedas, nas avenidas e nos parques estaremos todos, “para todos e por todos”! Mas com a raiva dos loucos que são os únicos portadores da irredenta razão. Como nos versos cheios de – como de vento nos lábios – ar na garganta:

“Mas quando num grito raro
Se apossa de mim
O espírito desses pássaros
Que não tem fim
Espalho pelo espaço
O que não há
Com amor e com arte
Garganta e ar”

Vale a pena ouvir essa bela composição lítero-musical dos “Pássaros na garganta” de Tetê Espíndola, em concerto ao lado de Felix Wagner, ao piano, e Ivan Vilela, na viola, por ocasião dos trinta anos do disco homônimo: https://www.youtube.com/watch?v=rxWRjO0_Zug

CANÇÕES PARA A PANDEMIA: Esta é uma série de diálogos diários de Guilherme Daldin e Ricardo Prestes Pazello sobre música e conjuntura em tempos de pandemia, para resistir ao confinamento. Desde 17 de março, estamos trocando cartas virtuais no “Facebook” e divulgando nas redes sociais. A carta de hoje é de Ricardo Prestes Pazello, professor da UFPR, músico amador e militante da Consulta Popular.

Edição: Lucas Botelho