Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | A sul da quarentena

A quarentena não só torna mais visíveis, como reforça, a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento

Sul 21 | Porto Alegre |
Para os moradores das periferias pobres do mundo a atual emergência sanitária vem juntar-se a muitas outras emergências. - Agência Brasil

A quarentena não só torna mais visíveis, como reforça, a injustiça, a discriminação, a exclusão social e o sofrimento injusto que elas provocam. Acontece que tais assimetrias se tornam mais invisíveis em face do pânico que se apodera dos que não estão habituados a ele. São muitos os grupos para os quais a quarentena é particularmente difícil. Têm em comum ter uma especial vulnerabilidade que precede a quarentena e se agrava com ela. No seu conjunto, estes coletivos sociais constituem a maioria da população mundial. Seleciono uns poucos.

As mulheres. A quarentena será particularmente difícil para as mulheres e, nalguns casos, pode mesmo ser perigosa. As mulheres são consideradas “as cuidadoras do mundo”, dominam na prestação de cuidados dentro e fora das famílias. Dominam em profissões, como enfermagem ou assistência social, que estarão na linha da frente da prestação de cuidados a doentes e idosos dentro e fora das instituições. Não se podem defender em quarentena para garantir a quarentena de outros. São elas também que continuam a ter a seu cargo, exclusiva ou maioritariamente, o cuidado das famílias. Postas em quarentena, poderia imaginar-se que havendo mais braços em casa as tarefas poderiam ser mais distribuídas. Suspeito que assim não será, em face do machismo que impera e quiçá se reforça em momentos de crise e de confinamento familiar. O aumento do número de divórcios em algumas cidades chinesas durante a quarentena pode ser um indicador do que acabo de dizer. Por outro lado, é sabido que a violência contra as mulheres tende a aumentar em tempos de guerra e de crise – e tem vindo a aumentar agora. O confinamento das famílias em espaços exíguos e sem saída pode oferecer mais oportunidades para o exercício da violência contra as mulheres. O jornal francês Le Figaro noticiava em 26 de Março, que as violências conjugais tinham aumentado 36% na semana anterior em Paris.

Os trabalhadores precários, informais, ditos autônomos. Depois de quarenta anos de ataque aos direitos dos trabalhadores em todo o mundo por parte das políticas neoliberais, este grupo de trabalhadores é globalmente dominante, ainda que sejam muito significativas as diferenças de país para país. O que significará a quarentena para estes trabalhadores, que tendem a ser os mais rapidamente despedidos sempre que há uma crise econômica? No dia 23 de março, a Índia declarou a quarentena por três semanas, envolvendo 1.3 mil milhões de habitantes. Considerando que na Índia, entre 65% e 70% dos trabalhadores pertencem à economia informal, calcula-se que 300 milhões de indianos ficaram sem rendimentos. Na América Latina, cerca de 50% dos trabalhadores trabalham no setor informal. Em África, por exemplo, no caso do Quênia ou Moçambique a maioria dos trabalhadores é informal. As recomendações da OMS parecem ter sido elaboradas a pensar numa classe média que é uma pequeníssima fração da população mundial. O que significa a quarentena para trabalhadores que ganham dia-a-dia para viver dia-a-dia? Arriscarão desobedecer à quarentena para dar de comer à sua família? Morrer de vírus ou morrer de fome, eis a opção. Noutros contextos, os uberizados da economia informal entregam comida e encomendas ao domicílio. São eles que garantem a quarentena de muitos, mas para isso não se podem proteger com ela. O seu “negócio” vai aumentar tanto quanto o risco.

Os moradores nas periferias pobres das cidades, favelas, barriadas, slums, caniço, etc. 1.6 mil milhões de pessoas não têm habitação adequada e 25% da população mundial vive em bairros informais sem infraestruturas nem saneamento básico, sem acesso a serviços públicos, com escassez de água e de eletricidade. Vivem em espaços exíguos onde se aglomeram famílias numerosas. Dadas as condições de habitação, poderão cumprir as regras de prevenção recomendadas pela OMS? Poderão manter a distância interpessoal nos espaços exíguos de habitação onde a privacidade é quase impossível? Poderão lavar as mãos com frequência quando a pouca água disponível tem de ser poupada para beber e cozinhar? Muitos destes bairros são hoje fortemente policiados e por vezes sitiados por forças militares sob o pretexto de combate ao crime. Não será esta afinal a quarentena mais dura para estas populações? Os jovens das favelas do Rio de Janeiro, que sempre foram impedidos pela polícia ou pelos transportes de ir ao domingo à praia de Copacabana para não perturbar os turistas, não sentirão que já viviam em quarentena? Qual a diferença entre a nova quarentena e aquela que foi sempre o seu modo de vida? Em Mathare, um dos bairros periféricos de Nairobi, Quênia, 68.941 pessoas vivem num quilômetro quadrado. Tal como em muitos contextos similares no mundo, as famílias partilham uma sala que também é cozinha, quarto e sala de estar. Como é que se lhes pode pedir auto-isolamento?

Para os moradores das periferias pobres do mundo a atual emergência sanitária vem juntar-se a muitas outras emergências. Segundo nos informa a Garganta Poderosa, um dos mais notáveis movimentos sociais de bairros populares da América Latina, os moradores enfrentam várias outras emergências. É o caso da emergência sanitária decorrente de outras epidemias ainda não debeladas e da falta de atenção médica. Neste ano foram já registrados 1833 casos de dengue em Buenos Aires. Só na Villa 21, um dos bairros pobres de Buenos Aires, registraram-se 214 casos. “Por coincidência”, na Villa 21 70% da população não tem água potável. É o caso também da emergência alimentar: os modos comunitários de superar a fome que grassa nos bairros (cantinas populares, merendas) colapsam ante o aumento dramático da procura. Se as escolas fecham, acaba a merenda escolar que garantia a sobrevivência das crianças. É finalmente o caso da emergência da violência doméstica, particularmente grave nos bairros, e da permanente emergência da violência policial e da estigmatização que ela traz consigo.

Os idosos. Este grupo, particularmente numeroso no norte global, é, em geral, um dos grupos mais vulneráveis, mas a vulnerabilidade não é indiscriminada. Aliás, a pandemia obriga-nos a uma maior precisão sobre os conceitos que usamos. Afinal, quem é idoso? Ainda segundo a Garganta Poderosa, a diferença de esperança de vida entre dois bairros de Buenos Aires (o bairro pobre de Zavaleta e o bairro nobre de Recoleta) é de cerca de vinte anos. Não surpreende que os líderes das comunidades sejam considerados de “idade madura” pela comunidade e “jovens líderes” pela sociedade em geral.

As condições de vida prevalecentes no norte global levaram a que boa parte deles fosse viver em lares, casas de repouso, asilos. Em tempos normais, os idosos passaram a viver nestes alojamentos como espaços que garantiam a sua segurança. Em princípio, a quarentena causada pela pandemia não deveria afetar grandemente a sua vida, dado viverem já em permanente quarentena. O que sucederá quando, devido à propagação do vírus, esta zona de segurança se transforma em zona de alto risco, como está a acontecer em Portugal e Espanha? Estariam mais seguros se pudessem voltar às casas onde viveram toda a vida, no caso improvável de elas ainda existirem? Os familiares que, por exclusiva conveniência própria, os alojaram em lares, não sentirão remorsos por sujeitar os seus idosos a um risco que lhes pode ser fatal? E os idosos que vivem isolados não correrão agora um risco maior de morrer sem que ninguém dê conta? Há ainda a acrescentar que, sobretudo no sul global, epidemias anteriores levaram a que os idosos tivessem que prolongar a sua vida ativa. Por exemplo, a epidemia do SIDA matou e continua a matar pais jovens, ficando os avós com a responsabilidade do agregado familiar. Se os avós morrerem, as crianças correm um risco muito alto de fome, desnutrição e morte.

À luz das experiências destes grupos sociais torna-se particularmente evidente a necessidade de imaginar e adotar alternativas ao modo de viver, de produzir, de consumir e de conviver nestes primeiros anos do século XXI.

(*) Sociólogo, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Artigo publicado originalmente no jornal O Público.

Edição: Sul 21