Rio Grande do Sul

PANDEMIA

“É preciso garantir a soberania alimentar dos povos originários e tradicionais”

Afirmação é da coordenadora do FONSANPOTMA em documento ao governo gaúcho para cooperação por segurança alimentar

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Para os signatários do documento, a fome não deve ser utilizada como instrumento de pressão política ou econômica - Guilherme Santos / Sul 21

Na última quinta-feira (23), o Fórum Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Tradicionais de Matriz Africana (FONSANPOTMA) encaminhou para a Secretária Estadual do Trabalho e da Assistência Social do Rio Grande do Sul, Regina Becker, o Protocolo Multilateral de Intenções para cooperação interinstitucional para soberania alimentar durante a pandemia de coronavírus. Entre as solicitações, a organização pede a inclusão imediata no Cadastro Único das famílias de Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, da população negra, da população negra LGBTI+, de refugiados e migrantes, de comunidades rurais negras, de famílias da agricultura familiar negra e de famílias de mulheres negras da agricultura urbana e periurbana. Solicita ainda a criação de uma política de soberania alimentar. Ainda não houve manifestação oficial do poder executivo.

No Brasil, 56,10% das pessoas se declaram negras, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com uma população total de 209,2 milhões de habitantes, 19,2 milhões se assumem como pretos, enquanto 89,7 milhões se declaram pardos. Uma população que, segundo o coordenador de articulação política no Fórum Nacional de Segurança Alimentar, Tata Edson, é permeada por índices elevados de analfabetismo, insegurança alimentar violência, desemprego. Elementos que têm sua raiz no histórico da escravidão, e que ainda não foram totalmente reparados.

Um bom contingente dessas pessoas está ligada aos povos de matriz africana, que conforme aponta a coordenadora do FONSANPOTMA, Kota Mulanji Mona Kelembeketa, tem um sistema alimentar próprio, uma língua própria, uma forma de relação com a natureza própria, tanto pro trabalho quanto preservação das suas tradições. O reconhecimento da existência desses povos foi o gatilho que impulsionou a elaboração do documento, explica a coordenadora. “Quando termina a escravidão, esse povo fica no Brasil, fica dentro desses territórios, e são pessoas que mantém esses princípios e valores, e que exatamente por ser um espaço de resistência, contra o sistema dominante, vêm sofrendo inúmeros preconceitos e discriminação. Portanto, precisam que o Estado os reconheça e os proteja”, destaca.

No início do mês de abril, o Brasil de Fato RS já havia denunciado a situação dos povos de matriz africana no estado, por conta da pandemia causada pelo novo coronavírus. Na ocasião, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Estado do Rio Grande do Sul (Consea-RS) havia feito um relatório com propostas para atender as comunidades.

“Estamos vivendo no mundo um momento em que toda a população está sendo atingida, e as populações originárias e tradicionais, incluindo aqui também os indígenas, ciganos, ribeirinhos, quilombolas, pescadores artesanais. São as que sofrem mais, porque elas, além de lutar contra o agente destruidor que é o coronavírus, têm ainda que continuar lutando para preservar sua tradição e suas questões, somando-se a isso tanto as questões sanitárias quanto as econômicas”, afirma Kota, ressaltando que nessas comunidades a ação de trabalho e de convivência (festejos, ritos, mitos) costumam acontecer de forma coletiva e, por conta da pandemia, não podem acontecer. De acordo com ela, os impactos da pandemia vão além das questões econômicas.

“A covid-19 atinge diretamente as ações coletivas, sem contar que atinge diretamente a vida física das pessoas. Os ritos dos povos de comunidades tradicionais, que são algo também coletivo, estão impedidos pela questão sanitária. Todas as atividades para os povos e comunidades tradicionais são feitas a partir da troca, e muitas delas de uma troca também que se mantém com os instrumentos de ligação entre o sagrado, natureza e o corpo físico, biológico e mítico, biomítico. A manutenção econômica de alguns espaços são a partir dessas ações coletivas e isso está sendo impossibilitado de ser desenvolvido”.

De acordo com a coordenadora, para além das questões federais e estaduais, são as questões municipais que se sobrepõem, porque é no município que tudo acontece. “A prova disso é que muitos dos municípios menores têm conseguido preservar a vida dos seus munícipes melhor que as grandes metrópoles, que têm maior dificuldade de chegar a seus habitantes”, avalia.

Políticas insuficientes

Uma das políticas públicas criadas para sanar essa reparação histórica por conta da escravidão foi o Cadastro Único (CAD Unico), instrumento de coleta de dados e informações que objetiva identificar todas as famílias de baixa renda existentes no país para fins de inclusão em programas de assistência social e redistribuição de renda. Criado durante o governo de Lula, nesse sistema foram criadas uma série de ações, agrupando diversas políticas dentro, entre elas o Bolsa Família.

De acordo com Tata, a reparação deveria ser gradual e levando em consideração o país continental. Mas é feita com muita dificuldade efetiva, já que, ao ser criado, não foi feito com a dimensão total do sistema. “Lutamos muito para que dentro do CAD fosse construída uma categoria que pudesse colocar lá os povos e comunidades. Como as pessoas tinham que se autodeclarar individualmente, elas também poderiam se dizer daquele ambiente, daquele território. Esse era o gatilho do nosso entendimento de que isso avançaria no objetivo de chegar a não só termos o dado populacional, mas também teríamos um dado mais bem definido dessa população”, explica o coordenador.

Para nós, tudo é muito difícil como comunidade, como povos tradicionais, relata Kota. “Entre as descrições das famílias que podem receber doações, não está lá essa família tradicional. Por exemplo, no quilombo, que é uma comunidade tradicional, tem os mais velhos que são cuidados por outras pessoas que não são as famílias consanguíneas; isso também nas comunidades indígenas, nos povos tradicionais de matriz africana. A gente precisaria talvez incluir uma outra categoria. Temos o público e o privado, mas também temos o privado de uso público. Então, acho que pra gente poder ter uma real avaliação de como que isso chega na ponta, para as comunidades e os povos tradicionais, tem que ver como o coletivo está se mantendo”, frisa.

Para Tata, as sequelas do coronavírus vão ficar por um bom tempo. “Não sabemos quais são ou de que forma serão, se serão muito intensas. Todos estão dizendo que elas vão estar refletidas no campo da economia. Contudo, diferente do cenário do holocausto gerado pela escravidão, que veio para criar o ambiente da economia que hoje o Brasil se beneficia. Dessa relação nunca se pagou um centavo para essa reparação. Não se leva em consideração esses mesmos atores que hoje se encontram sequelados, na medida que estão sem todas as condições de vida, que vivem nas regiões periféricas, que constituíram os bolsões de pauperização e miserabilidade do país”, expõe.

Mesmo considerando o protocolo uma medida que vem tardiamente, Tata espera que ele não fique só em um processo burocrático, mas que sirva durante a pandemia, pós-pandemia e durante muito depois. “Que tenhamos uma implementação de fato, que as políticas públicas e as ferramentas que foram construídas efetivadas.

Além do FONSANPOTMA/RS, firmam o protocolo de intenções a Federação Riograndense de Associações Comunitárias e Moradores de Bairros (FRACAB); Rede de Mulheres Negras para Segurança Alimentar e Nutricional (REDESSAN); Secretarias do Estado de Trabalho e Assistência Social (STAS); Defensoria Regional de Direitos Humanos da Defensoria Pública da União no Rio Grande do Sul; Ordem dos Advogados do Brasil/RS (Comissão Especial de Igualdade Racial); Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública Estadual do Rio Grande do Sul; e outros conselhos, órgãos governamentais, cooperativas de produção saudável e sustentável de alimentos, entidades comunitárias e da sociedade civil organizada.

Veja aqui o documento completo.

Outras ações civis que aguardam resposta

No último dia 19 de abril, o defensor regional de Direitos Humanos no Rio Grande do Sul (DRDH-RS) em exercício, Gabriel Saad Travassos, protocolou uma ação civil pública com tutela de urgência perante a União, a Fundação Cultural Palmares (FCP), a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o Estado do Rio Grande do Sul. Pede garantia ao direito à segurança alimentar e nutricional das comunidades quilombolas e dos povos tradicionais de matrizes africanas no estado durante a pandemia de covid-19.

Na ação, que tramita na 5ª Vara Federal de Porto Alegre, são pedidas 3.076 cestas básicas mensais para as famílias quilombolas e 323 destinadas ao total de famílias pertencentes às comunidades de terreiro (povos tradicionais de matriz africana) cadastradas no CAD Único. É também solicitado que a Fundação Cultural Palmares apresente uma listagem completa com a indicação do quantitativo total de famílias pertencentes às comunidades quilombolas e aos povos tradicionais de matriz africana que não estejam cadastradas no CAD Único, devendo a União e o Estado do Rio Grande do Sul adotarem providências para o cadastramento dessas famílias, habilitando-se aqueles que preencherem os requisitos legais ao recebimento do Bolsa-Família, do Benefício de Prestação Continuada e dos demais programas governamentais que prevejam auxílio emergencial em decorrência da calamidade pública.

De acordo com Travassos neste primeiro momento o juízo optou por anteriormente ouvir os réus (CONAB, União, Fundação Cultural Palmares e Estado do RS). O prazo está em curso até o dia 05 de maio. Somente a CONAB até agora apresentou manifestação.

Edição: Marcelo Ferreira