Rio Grande do Sul

Coluna

Reforma trabalhista foi a base do desastre que Bolsonaro quer aprofundar na crise

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A superexploração é aprofundada nos momentos de crise - Sammel Becken
Querem nos espremer até não sobrar nada e aproveitam a crise de saúde para aprofundar esse processo

Este é um 1º de Maio atípico. Temos que estar em isolamento físico e a luta mais urgente dos trabalhadores e das trabalhadoras de todo o mundo, neste momento de pandemia, é pelo direito a não estar nas ruas, a não estar nos locais de trabalho, a ficar em casa e ter garantidas, nessas condições, saúde, renda, emprego e a própria vida. Mas o isolamento físico, com as tecnologias de informação, não impede a articulação virtual e não elimina nossa capacidade de, mesmo online, estarmos juntos e juntas para defender também outros direitos. No caso do Brasil, a ameaça às nossas vidas vai muito além do novo coronavírus: querem nos espremer até não sobrar nada e aproveitam a crise de saúde para aprofundar esse processo.

Trata-se, aqui, da ampliação do desmonte trabalhista iniciado com o golpe de 2016. A reforma trabalhista que Michel Temer (MDB) conseguiu aprovar em 2017 produziu um grande desmonte dos direitos trabalhistas. Sob o pretexto da geração de empregos – que, em seguida, comprovou-se uma grande mentira –, Temer e a maioria dos deputados e senadores, embalados e orientados pelos grandes empresários, pelos mais ricos do Brasil, alteraram ou eliminaram mais de 100 artigos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que rege os direitos do trabalho no país. Com pouco debate com a população, com centenas de emendas parlamentares que pioraram o projeto inicial apresentado pelo governo, ignorando as demandas e necessidades da grande maioria da população, a legislação trabalhista foi desmontada e direitos históricos conquistados pelos trabalhadores foram apagados ou “flexibilizados”.

Precarização para aumentar os lucros

A reforma trabalhista forneceu aparato legal para um processo que já vinha se construindo no país às margens da lei: a precarização acelerada do mundo do trabalho. O aumento dos trabalhos precários – ou seja, com menos direitos e menos proteção para os trabalhadores e mais lucro para os patrões – é uma realidade incontestável. A informalidade, que também já vinha em uma curva ascendente, não foi freada com a reforma, ao contrário do que prometiam seus defensores. E o desemprego quase nada foi reduzido. A promessa de geração de milhões de empregos caiu por terra rapidamente, mas aí o estrago já estava feito.

Quase tudo passou a ser passível de “negociação”, o que, no caso do Brasil e dos demais países da periferia do capitalismo, significa, quase sempre, a imposição das vontades dos patrões. A lei, que antes protegia ou ao menos freava ímpetos mais radicais do grande empresariado, foi rasgada e substituída pelo “salve-se quem puder”. É, como descreve Ricardo Antunes, o “privilégio da servidão”: a maioria passa a não ter direito nenhum, quem tem algum direito passa a ser visto como privilegiado e o caminho que os governos neoliberais apontam é o de “nivelar por baixo”. Essa, aliás, foi uma das estratégias discursivas dos defensores da reforma de 2017: dividir os trabalhadores dizendo que a CLT deixava muitos abandonados, na informalidade. A “solução” mágica apresentada foi, então, acabar com a legislação, em vez de incluir no aparato protetivo de direitos os que estavam fora dele. Como se sabe, para os trabalhadores essa magia não solucionou nada; para os grandes empresários e o capital financeiro, os lucros seguem aumentando.

Em meio à crise, patrões mais livres, trabalhadores mais presos

A reforma trabalhista, como já dito, construiu uma sustentação legal para muito do que já se fazia antes no Brasil em matéria de desrespeito aos direitos do trabalho. Com isso, fundou as bases na lei para que, em momentos de crise, o capital siga se alimentando enquanto os trabalhadores passam fome. Por trás do discurso de “liberdade” para o mundo do trabalho, o que aparece é cada vez mais liberdade para alguns e cada vez menos para outros. A “flexibilidade” pregada no modelo de organização do trabalho formalmente implementado no Brasil com a reforma de 2017 deixa os donos do poder mais livres para garantir seus interesses e os trabalhadores mais presos às vontades dos patrões. É o que ocorre agora, em meio a uma crise sanitária e econômica sem precedentes recentes. E Bolsonaro quer mais.

As permissões para que as empresas suspendam os contratos e os salários dos trabalhadores, a falta de freios para as demissões em massa, a retomada da discussão sobre a extinção da Justiça do Trabalho, o congelamento e a pretensão de reduzir os salários dos servidores públicos, essas e outras medidas tomadas ou encaminhadas por Bolsonaro e Guedes visam aprofundar o desmonte iniciado com a reforma trabalhista de Temer. Tudo, inclusive a reforma de 2017, com o apoio de lideranças parlamentares de direita e da mídia hegemônica. Com Temer, esses atores construíram juntos a derrubada de Dilma Rousseff e o projeto de país que inclui a reforma trabalhista, o congelamento dos investimentos públicos e a liberação das terceirizações. Com Bolsonaro, alguns, como Rodrigo Maia (DEM-RJ), Davi Alcolumbre (DEM-AC), a Rede Globo e a Folha de S. Paulo, criticam “excessos” do governo e do presidente, como se esses “excessos” pudessem ser separados da política econômica e da agenda de desmonte de direitos, apoiadas por eles.

Pandemia desnuda fragilidade das proteções ao trabalho

A chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil mostrou toda a fragilidade do modelo implementado por Temer e Bolsonaro. As críticas do atual presidente à política de isolamento e distanciamento defendidas por todas as autoridades mundiais de Saúde não acontecem por acaso: os poderosos não se importam com as vidas perdidas, desde que seu lucro e seu poder se mantenham intactos. Bolsonaro minimiza o problema, impulsionando o número de mortes, e tenta aproveitar o momento de caos para fazer avançar sua agenda de desmonte de direitos e para fechar ainda mais os poucos espaços democráticos que vão nos restando pelo caminho.

Em meio à crise sanitária, sem garantias legais, os trabalhadores e as trabalhadoras ficam expostos, são obrigados a sair às ruas para ganhar o suficiente para comer e pagar algumas contas. A servidão remota passa a ser vista como um privilégio de quem pode ficar em casa e, de lá, vender sua mão de obra. Mas o desemprego cresce – a tendência é de que exploda – e o exército de reserva vai servindo como instrumento de pressão para que cada vez mais direitos sejam retirados. A proposta da “carteira de trabalho verde amarela” tem como propósito aproveitar-se dessa situação para ampliar os lucros dos mais ricos, nada mais.

A proteção social, coletiva, de que os ricos não precisam, foi desmontada em grande medida pela reforma de 2017. Como apontei em outro artigo para o Brasil de Fato, quando, em tempos de crise, a coletividade abandona os mais vulneráveis, aos pobres resta a liberdade de escolher morrer de fome ou de vírus.

Construir um “novo normal”, com mais direitos e democracia

A ideia de necropolítica, chave interpretativa para entender os efeitos da agenda neoliberal, aplica-se, agora, como nunca. Há aquele cartum clássico, chamado “Des Kapitalismus”, de Sammel Becken, em que dois capitalistas espremem um trabalhador e, de seu corpo, fazem cair moedas em uma bacia. É outra imagem perfeita para caracterizar o momento que vivemos. A superexploração é aprofundada nos momentos de crise, e a desigualdade não apenas econômica, mas de poder, de capacidade de definir a agenda política, torna-se mais visível.

Mas, justamente pelo fato de que as contradições estão mais visíveis, podem ser enfrentadas com mais clareza. Fica mais fácil demonstrá-las, e é urgente demonstrar a necessidade de derrotar o atual governo e substituir sua agenda por políticas de proteção à vida e à dignidade dos trabalhadores e das trabalhadoras.

Muito tem se falado, nos círculos mais militantes ou entre especialistas em Saúde, que não teremos um mero retorno ao “normal” quando a pandemia começar a passar, mas, sim, a necessidade de construção de um “novo normal”. Esse novo normal terá necessariamente que passar por novas atitudes de proteção à Saúde, mas é fundamental que passe, também, por novas relações comunitárias e pela construção de outras lógicas no mundo do trabalho, que reforcem a proteção aos trabalhadores e que retomem o caminho do aprofundamento democrático, cada vez mais ameaçado no caso do Brasil. A última crise econômica nos deixou o desastre Bolsonaro como legado. Para esta que recém começamos a viver, é preciso construir uma saída diferente.

Edição: Marcelo Ferreira