Rio Grande do Sul

Independentes

A resistência das “pequenas” livrarias de Porto Alegre em tempos de confinamento 

Na contramão das grandes livrarias, independentes da capital resistem preservando empregos e funcionamento

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em meio a crise do mercado editorial, livrarias independentes se reinventam durante a pandemia - Fabiana Reinholz

“Entre livros, ninguém pode se sentir sozinho.” A frase de divulgação do filme A Livraria, da cineasta catalã Isabel Coixet, ecoa para os amantes de livros durante o isolamento social ocasionado pelo novo coronavírus. A pandemia, para além dos impactos financeiros, exigiu reinvenção para todos os setores, e com as livrarias não foi diferente. Enquanto as grandes do ramo prosseguem com adiamento de pagamentos à editoras e demissão de funcionários, as pequenas do ramo, como as da capital gaúcha, seguem resistindo, mesmo tendo suas vendas diretamente atingidas. 

Passados cerca de 45 dias de portas cerradas, o coronavírus já causou uma queda de 47,6% no faturamento do mercado de livros do Brasil em abril, em comparação com o mesmo mês do ano passado. Em valores, caiu de R$ 125,4 milhões para R$ 65,7 milhões. Em relação ao número de vendas a queda foi de 45,4%. Os dados são da recente divulgação do Painel das Vendas de Livros do Brasil, lançado nessa quarta-feira (06). Cenário completamente adverso de outros países, como Reino Unido e Espanha, onde as vendas aumentaram, variando entre 33 a 50%, respectivamente . 

Alegando impactos por conta da pandemia, a Livraria Cultura suspendeu pagamentos a editoras e a Saraiva demitiu 500 funcionários. Contudo, conforme apontam livreiros de Porto Alegre, a prática das duas livrarias é bem mais antiga.

“A situação difícil da Cultura e da Saraiva é bem anterior ao surgimento da pandemia, e a falta de pagamento a editoras e distribuidoras já vinha colocando em risco muitas delas. Com certeza a situação atual só pode agravar ainda mais esse quadro, especialmente privando o trabalho a seus funcionários”, aponta o proprietário da Calle Corrientes, Miguel Ángel Gomez. Com foco em livros novos e usados em espanhol, há 25 anos resiste às intempéries econômicas. O atendimento é feito por Miguel e sua filha.

Nascida sob a tutela da jornalista Lu Vilella, e há dois anos sob a direção do também jornalista Milton Ribeiro, a livraria Bamboletras também segue na resistência há 25 anos. “Eu atribuo nossa resistência à necessidade e ao respeito que temos pelos trabalhadores da casa e pelos leitores. Sou um cara teimoso (muito) e que gosta não somente dos livros, mas também das pessoas. Então, quero tentar ultrapassar a crise sem demitir ninguém. Somos seis pessoas aqui. A Bamboletras sustenta cinco famílias. Estamos tentando manter nossos empregos e eu me incluo nisso como proprietário. Preciso da Bamboletras para viver. Não sou dono de uma rede e nem tenho crédito ilimitado nos bancos”, afirma Ribeiro.


"Somos seis pessoas aqui. A Bamboletras sustenta cinco famílias. Estamos tentando manter nossos empregos e eu me incluo nisso". / Luiza Prado/JC

Ao comentar sobre as vendas, Ribeiro diz que elas caíram cerca de 50%, contudo, ressalta, muitas pessoas estão devorando a famosa "pilha de livros a ler" que têm em casa. “Estamos vendendo muitos livros clássicos, alguns que são verdadeiros calhamaços. Ou seja, finalmente há tempo livre e alguns estão criando uma 'quarentena culta', por assim dizer”, aponta. Entre os livros mais procurados estão "A peste", de Albert Camus,  "O amor nos tempos do cólera", de Gabriel García Marquez, "Diário do ano da peste", de Defoe, e "Ensaio sobre a cegueira", de José Saramago. “Também há procura por livros de receitas gastronômicas, pois as pessoas estão precisando variar em casa”, pontua Ribeiro.

Até a possibilidade de abertura de pequenos estabelecimentos, concedida pelo Decreto Nº 20.564, de 2 de maio, a livraria funcionou com o sistema Siga-me, realizado através do telefone e por tele-entrega. “Continuamos fazendo tele-entrega, mas agora estamos abertos para a entrada de uma pessoa de cada vez na livraria, seguindo todas as normas estipuladas no decreto”, finaliza Ribeiro.

Ainda de portas cerradas, a Calle tem feito suas vendas online, através da loja virtual. Conforme aponta Miguel, a venda virtual representa apenas 15% do faturamento normal. Ele, que há décadas participa de feiras do livro como as de Porto Alegre, Santa Maria e Caxias do Sul, diz que para um livreiro pequeno é muito importante também a participação em feiras de livro, que não estão acontecendo. “As livrarias que têm funcionários e têm que pagar salários sofrem ainda mais, mas esse não é nosso caso. E o mais grave é que não há perspectiva de a situação se normalizar em curto prazo”, desabafa. Além das vendas virtuais, outra medida adotada pela livraria foi negociar descontos para reduzir os custos fixos: aluguel, honorários do contador, etc.


Miguel deixou a Argentina na década de 1970, poucos meses após o golpe de Estado, antes de ser livreiro foi cinegrafista de reportagens de TV / Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Miguel, que mantém contato constante com livrarias da Argentina, relata que lá a situação é similar ào brasileira, com limitações à abertura dos comércios e a circulação das pessoas. Porém, ressalta, o governo argentino tem sido muito mais eficaz e sério nas medidas de combate à pandemia, o que gera a esperança de um retorno mais rápido a uma atividade menos restritiva. Diante da pandemia, a feira do livro do país vizinho, que acontece todo mês de abril, tem realizado atividades online e segue ainda sem data de quando virá a acontecer. Destino incerto também tem as feiras do livro no Brasil, como a de Porto Alegre, que acontece há 65 ano no mês de novembro. 

De acordo com o atual presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro e responsável pela Feira do Livro de Porto Alegre, Isatir Bottin Filho, a realização da feira, de forma normal, física, ainda é incerta. Porém, antecipa, está sendo feito um projeto para que ela ocorra online. “Estamos trabalhando com dois planos A e B, uma feira física como sempre ocorre e uma outra feira online, mas ainda é um estudo inicial de planejamento de programação, orçamentos e viabilidade. Não sabemos ao certo se será possível em novembro devido à aglomeração de pessoas, e certamente é impossível trabalhar com número limitado de pessoas no evento aberto ao público, na praça”, afirma.

Livrarias jovens também como foco da resistência 

Assim como as livrarias mais “adultas” da capital, as jovens como a Cirkula, Baleia e Padula seguem na linha de frente, articulando novas formas de existência. Para além da questão da venda de produtos, as três livrarias têm sua receita maior através dos eventos que realizam. Por conta da pandemia, por tempo ainda indeterminado, tais atividades, como lançamentos de livros, palestras e cursos seguirão não sendo realizadas.

“As portas abertas mantinham os clientes presentes no nosso dia a dia. Outro ponto importante foi o cancelamento dos eventos, que possibilitavam a circulação e adesão de novos clientes. As vendas online diminuíram no início da pandemia, mas estão normalizando com o passar dos dias”, destaca Diego de Souza Padula, sócio-proprietário da Padula, que assim como a Calle, é conduzida pela família. Além de Diego, ela também é administrada pela sua companheira, Marina Soares Leal. Professor de história, Diego começou as vendas na feira de rua em frente ao Capitólio, passando para vendas pela internet e há três anos está com o espaço físico.  


Equipe da livraria Padula / Arquivo Pessoal

“A venda do cotidiano, a venda do dia a dia não paga as contas. O impacto maior pra gente não foi necessariamente em venda, mas foi na movimentação, e essa movimentação nos permitia conseguir compor receita”, observa Nanni Rios, proprietária da livraria Baleia. Conforme explica, um dos métodos adotados pela livraria foi fazer atividades online, como lives com convidados, através do Instagram, um clube de assinatura de livros e também uma banca de livros online

O confinamento fez com que projetos saíssem da gaveta, relata a sócia-proprietária da livraria Cirkula, Luciana Hoppe. Entre eles, o TV Cirkula, assim como o lançamento do selo infantil Cirkulinha, que será feito virtualmente. Para Luciana, que tem a editora desde 2013, e loja física desde 2018, mesmo com tempos difíceis está se conseguindo dar um jeito. “É horrível estarmos sem receber, mas mais horrível é essa situação da Saúde no mundo inteiro e principalmente no nosso país”. Assim como a Bamboletras, a Cirkula decidiu voltar a atender, respeitando as normas de segurança, e também prossegue comercializando online. O café do local permanece fechado.   


Luciana Hoppe e Mauro Meirelles, sócios na livraria Cirkula / Guilherme Santos/Sul21

Luciana destaca que entre os ganhos durante a pandemia estão a rede de livreiros e livrarias independentes, e também as reuniões que, por exemplo, a Boitempo tem feito com livreiros do país inteiro. “Diante das rasteiras que levamos das grandes, a rede de solidariedade do mercado livreiro foi um levante, todo mundo resolveu se ajudar e enxergar como uma rede de livrarias independentes, que talvez antes não se enxergassem assim. Estamos fazendo essa união para todo mundo sair da crise”, afirma.   

Para além dos livreiros 

Tanto Nanni como Luciana ressaltam que há toda uma cadeia, para além do livreiro, que depende do livro. Cadeia que passa pelo pessoal de produção, confecção do livro, escritor, gráfica, distribuição, pela bibliotecária. Apesar de haver uma compreensão generalizada entre os atores dessa cadeia, onde se tem conseguido negociar pagamentos, ela não deixa de sofrer com a pandemia. 

“O mercado do livro é um mercado que não tem condição de ter como padrão a lida como escala, o mercado do livro trabalha com outra simbologia que não é só número. É uma reação em cadeia muito nociva que está acontecendo agora, e o que precisamos é de linhas de financiamento que consigam injetar grana para permitir que sigamos funcionando nesse tempo de isolamento”, afirma Nanni. De acordo com ela, como a livraria trabalha como material consignado, precisa de ajuda com a negociação de débito. 


"O primeiro ensinamento é a necessidade de uma visão sobre o próprio negócio, enxergar outras potencialidades e poder se inventar a partir disso”, afirma Nanni / Arquivo Pessoal

Projetos no legislativo

Sem um vislumbre de auxílio para as livrarias por parte do governo federal, como destinação de recursos, projetos de lei em andamento na Câmara e no Senado podem trazer alento para o setor. 

Na Câmara dos Deputados, a líder do PSOL, Fernanda Melchionna (RS), protocolou o Projeto de Lei, a PL 1874/2020, que propõe a suspensão temporária do pagamento de empréstimos e financiamentos bancários por pessoas físicas, micro e pequenas empresas e microempreendedores individuais (MEIs). A proposta, pensada para diminuir os efeitos da pandemia do coronavírus na crise econômica também prevê a redução da taxa de juros de novos empréstimos. .

Para Nanni esse projeto beneficiará as pequenas e médias livrarias pois, com linhas de financiamento específicas, elas poderão comprar material, no caso livros, junto às distribuidoras, com prazo de pagamento bem estendido e com carência de pelo menos seis meses.

Por sua vez, o senador Jean Paul Prates (PT/RN) protocolou, no dia 6 de maio,  o Projeto de Lei n° 2148, de 2020, que tem como objetivo auxiliar o mercado editorial. O  texto do projeto tem por objetivo alterar a Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003, que institui a Política Nacional do Livro, e busca estabelecer medidas a vigorar em período de calamidade pública. O texto ressalta os efeitos da desaceleração econômica e quase-estagnação do PIB nacional nos últimos anos. O texto abrange tanto as grande livrarias como as pequenas.

Ensinamentos da pandemia 

“Devemos repensar nossos hábitos, optando pela reutilização de produtos e o consumo local, valorizando os sebos e brechós.  Precisamos, também, dar ênfase à leitura, pois ela traz conforto e meios de viajar sem sair do lugar. Esperamos que possamos sair com melhores sentimentos em relação aos nossos semelhantes ao passar por esse contexto tão difícil”, opina Diego.

Para Miguel os ensinamentos serão os mais variados e de todas as ordens. Em sua avaliação, é momento de aproveitar o tempo para reflexionar sobre o que virá a mais longo prazo. “Será aquilo que tentarão nos impor, ou aquilo que poderemos vir a construir com nossa luta? Leituras que podem nos ajudar a pensar os caminhos a seguir não faltam. O importante é fortalecer aquilo que a pandemia deixou a nu: que o deus 'Mercado' é uma falácia e que só a solidariedade poderá nos ajudar a ter um futuro melhor”, encerra.

Já Nanni acredita que se irá conseguir entender isso muito melhor depois. No momento, se está inventando e reinventando. “O primeiro ensinamento é a necessidade de uma visão sobre o próprio negócio, enxergar outras potencialidades e poder se inventar a partir disso”. 

Luciana reafirma ser o momento de cuidarmos da Saúde, nossa e dos a nossa volta, “o fator econômico recuperamos depois’. 

Edição: Marcelo Ferreira