Rio Grande do Sul

Sem Feiras

Com a pandemia, situação dos artesãos gaúchos está no limite

As principais queixas são a falta de diálogo do poder público e a desvalorização das feiras de artesanato e briques

Brasil de Fato | Porto Alegre |
No Rio Grande do Sul são cerca de 90 mil artesãs e artesãos, entre ativos e inativos, que alimentam o setor - Samuel Maciel

Assim como a maioria das atividades da economia criativa, a situação dos artesãos também sofre com os impactos causados pelo novo coronavírus. Sem a realização de feiras, como a tradicional feira do Brique da Redenção em Porto Alegre, ou sem as vendas nas ruas do centro da cidade, como acontece com o artesanato indígena, trabalhadoras e trabalhadores do ramo tentam se reinventar em meio à crise. A desvalorização das feiras de artesanato que vem acontecendo nos últimos anos e a falta de diálogo do poder público estão entre as principais queixas. 

O setor do artesanato chegou a movimentar em media R$ 50 bilhões em 2018. Disposto na Lei 13.180, sancionada em 22 de outubro de 2015 pela então presidenta Dilma Roussef, o setor envolve cerca de 10 milhões de pessoas no país. Só no Estado do Rio Grande do Sul são cerca de 90 mil artesãs e artesãos, entre ativos e inativos, sendo que destes 80% são mulheres, que são responsáveis por 2,5 % do PIB na economia. Além de fomentar o turismo, gerar trabalho e renda e de difundir a cultura local, aponta a coordenadora do Colegiado Setorial do Artesanato RS (SEDAC) e presidente da Federação de Entidades de Artesãos do Estado do Rio Grande do Sul (FEDARGS), a pedagoga e artesã desde 1982, Rejane Beatriz Verardo.

Para se ter uma ideia, só em Porto Alegre são realizadas 23 feiras de Artesanato e Briques, onde participam artesãs e artesãos moradores de Porto Alegre e região metropolitana, cadastrados na Divisão de Fomento ao Artesanato da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico-SMDE. Com as regras de isolamento social decretadas pelo estado e municípios, tais espaços foram suspensos por tempo indeterminado, causando o rompimento abrupto das atividades econômicas da categoria, na comercialização do seu artesanato, que tem como característica o trabalho familiar, onde dependem exclusivamente desta renda para o seu sustento e sobrevivência.

“Com a ruptura das atividades, os trabalhadores artesãos vêm sofrendo drasticamente o efeito dessa situação que se prolonga por mais de dois meses, sem previsão de término, o que incorre em situação de vulnerabilidade social”, afirma.

Além da Lei, o setor atualmente tem o Programa do Artesanato Brasileiro, programa do governo federal ligado à Secretaria de Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Ministério da Economia. Nesse programa há o Sicab -  sistema de inscrição do cadastro de artesão brasileiro. 

Contudo, mesmo com a Lei definindo que o artesanato será objeto de política específica no âmbito da União, as pessoas que dependem dessa forma de renda não encontram amparo no auxílio emergencial do governo federal, já que no último dia 15, o governo federal vetou a categoria na lei que muda o auxílio. 

“Política pública para o artesanato praticamente a gente não tem quase nada. Tudo que temos hoje é luta de muitos anos, para mais de 30 anos. Luta iniciada no primeiro Congresso Nacional dos artesãos, puxadas pelos artesãos do RS começamos essa caminhada política da categoria. Desde então se formaram federações em alguns estados, por fim uma Confederação Nacional”, ilustra Rejane salientando a importância da aprovação  do Projeto de Lei da Previdência especial para os artesãos, que tramita na Câmara Federal. 

Sem feira, sem as ruas 

Inaugurado em março de 1978, com o nome de Mercado de Pulgas, o Brique da Redenção, é uma das feiras mais famosas do estado. Atualmente conta com 180 expositores de artesanato, 70 de antiguidades, 40 de artes plásticas e 10 de gastronomia. Todos os domingos milhares de pessoas costumam circular na avenida José Bonifácio ao lado do Parque Farroupilha, mais conhecido como Parque da Redenção, das 9h às 18h, para conferir artesanatos que vão desde a matérias-primas, como couro, prata, fios, madeira, resina, ferro, gesso, vidro e porcelana, como também antiguidades e artesanato indígena e diversas outras categorias, embalados no percurso por vários músicos e artistas locais.

Artesão há mais de 40 anos, Roni Rodrigues da Silveira tem 35 anos de sua trajetória ligada ao Brique da Redenção. Vendedor de bolsas, carteiras, chinelos e alguns outros objetos de couro, Roni, que chegava a faturar até R$ 2.000,00 reais por domingo, com o isolamento social, viu as vendas despencarem, chegando a 95% de queda. Sem conseguir fazer a feira, a saída encontrada foi fazer as vendas pela internet. "Não é a mesma coisa que as vendas presenciais. Estou há dois meses sem trabalhar, e a venda por meio de aplicativos não dá conta da renda", desabafa.    

Artesã desde 2002, Luciana Andrades Raldi, costumava, até março desse ano, vender seus produtos na feira de artesanato que ocorre no calçadão Tapir Rocha, em Viamão. Trabalhando desde sempre com material pedagógico, suas vendas se concentram mais no fluxo para professores ou estudantes. A sua situação, afirma, está no limite. Como alternativa mudou o foco e começou a produzir máscaras, contudo o lucro não é suficiente, devido à concorrência.

 “Tenho produzido máscaras e faço propaganda pelo face e pelo Whatsapp. Quando entra encomenda ou a pronta entrega, marco a entrega no centro de Viamão, geralmente todas para o mesmo dia pra não sair todos os dias. Também faço bicos fazendo faxina, mas por conta da quarentena não pude mais fazer, isso já faz dois meses. Me escrevi pra receber o auxílio mas até agora estou em análise”, expõe Luciana , que também coordena o Grupo Mãos Que Criam. Através dele são feitas ações para mulheres e se busca políticas públicas tanto pra  mulheres como para o artesanato.  

Sem contar com o uso da internet ou ter outras provisões de renda, a liderança kaingang urbana, mestra na disciplina saberes indígenas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Iracema Gah Téh, relata que as vendas de artesanato indígena caíram muito por conta da pandemia. Junto com ela, 32 pessoas da comunidade kaingang da periferia de Porto Alegre dependem substancialmente dessas vendas, que são realizadas no Brique da Redenção e nos artesanatos vendidos na rua da Praia, centro da capital. “A venda não sai, estamos com falta de passagem, está faltando muito a nossa venda para o sustento. Estamos vivendo uma precariedade, se ao menos tivéssemos a terra para plantar não estávamos com tanta dificuldade”, afirma.  


Precisamos de auxílio para conseguirmos nos sustentar, desabafa Iracema / Arquivo Pessoal

Diante da inexistência de políticas públicas que atendam às comunidades indígenas, em especial as de contexto urbano, o Centro de referência afro-indígena, que é a ocupação Baronesa, na capital gaúcha, criou a primeira Rede de Mulheres Indígenas Artesãs em Porto Alegre. Criada pela liderança indígena Guarani Kaiowá, Alice Martins, e por Iracema, a rede tem conseguido arrecadações para as comunidades indígenas, tanto das aldeias quanto as de contexto urbano. Uma rede para conectar apoiadores da causa durante a quarentena da covid-19. Para colaborar, basta acessar aqui.

De acordo com Rejane, em Porto Alegre vem se discutindo a possibilidade de reabertura de algumas feiras permanentes, desde que respeitando as regras de distanciamento social e de uso de EPIs. “Talvez haja uma transformação no formato estrutural das feiras, usados anteriormente. Mas, o que se tem observado é que a grande maioria dos artesãos ainda não se sentem seguros em deixar o isolamento social, em função do crescimento indiscriminado da contaminação de covid-19, que ainda está numa crescente”, destaca.

Ações empreendidas 

Conforme aponta Rejane, a FEDARGS, com o apoio da Frente Parlamentar em Defesa do Artesanato, promoveu uma ação solidária para doação de cestas básicas de alimentos e produtos de higiene e limpeza para as famílias mais afetadas. Contudo, segundo afirma, a arrecadação até agora é muito pouca. “Precisamos de mais contribuições. Temos muitas famílias necessitando de ajuda”, reforça. 

A entidade também entregou cartas aos poderes públicos federal, estadual e municipal de Porto Alegre, solicitando que fosse providenciado uma renda básica e a liberação de uma linha de crédito especial para os artesãos com taxas de juros subsidiadas, em caráter emergencial, para que estes trabalhadores possam atravessar essa crise exponencial sem precedentes, com dignidade. “Através do Colegiado Setorial do Artesanato RS, estamos buscando em parceira com os demais colegiados setoriais, ações emergenciais junto à Secretaria da Cultura RS, como um cadastramento emergencial para os fazedores culturais e o Edital Emergencial Fac Digital, ambos em processo de desenvolvimento”. 

A Deputada Federal Maria do Rosário protocolou, em 23 de abril, o Projeto de Lei 2107/2020, que determina que o Poder Público disponibilize crédito aos artesãos sem juros, preferencialmente em bancos públicos, na iminência ou em caso de calamidade pública nacional decorrente de pandemia internacional. Ele está aguardando despacho do Presidente da Câmara dos Deputados

De acordo com Rejane, mesmo que os artesãos consigam fazer suas vendas on-line, o rendimento é insuficiente para o sustento das famílias. Ela ressalta também que o artesanato, para além dos artesãos e artesãs, beneficia toda uma cadeia produtiva. 

“Infelizmente, mesmo em tempos de urgência, tudo é muito demorado quando se trata de governo. Nenhuma das propostas, acima citadas, ainda foram resolvidas e continuamos na espera. O auxílio emergencial do governo federal, somente alguns receberam. Outros ainda aguardam a liberação. Precisamos com a maior urgência da aprovação de propostas em defesa da sobrevivência de centenas de famílias que dependem da atividade artesanal em todo estado do Rio Grande do Sul. Nós também somos afetados por essa crise”, salienta Rejane. “Somos 10 milhões cadastrados e mais aqueles sem cadastros. Lutamos pela dignidade do nosso trabalho, do nosso povo, que leva essa cultura, que move o turismo, que gera trabalho e renda e que desenvolve a economia local e a economia nacional”, conclui. 

Edição: Marcelo Ferreira