Rio Grande do Sul

Alimentação Escolar

Governo do RS ignora agricultura familiar em detrimento a atacadão de Gravataí

Reconhecendo erro, executivo anunciou que as próximas aquisições serão de forma descentralizada respeitando a legislação

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Entidades afirmam que seria uma oportunidade muito boa de fomentar a economia gaúcha com o recurso - Reprodução

Em 16 de junho de 2009, foi aprovado a Lei nº 11.947, que determina que no mínimo 30% do valor repassado a estados, municípios e Distrito Federal pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) devem ser utilizados obrigatoriamente na compra de gêneros alimentícios provenientes da agricultura familiar. Contrariando essa norma, o governo Eduardo Leite (PSD) gastou R$ 23,9 milhões com cestas básicas de um único fornecedor, um atacadão de Gravataí, cidade da região metropolitana. Em tempos de pandemia, os kits estão sendo destinados às famílias de estudantes da rede pública estadual como medida de amenizar as consequências da covid-19.

No dia 30 de abril, a União das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária do RS (Unicafes-RS), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do RS (Fetraf) e a Cooperativa Central dos Assentamentos do RS (Coceargs) entraram com uma representação no Ministério Público Estadual solicitando a investigação de cestas básicas pelo governo do Estado. O caso volta à evidência a partir do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS-Sindicato), que destaca que a forma de aquisição e a falta de diálogo com o setor responsável por quase 30% do PIB gaúcho, a agricultura familiar, chocou entidades representativas dos pequenos e médios produtores rurais.

Em nota, divulgada em abril, a Fetraf repudiou a ação do governo, apontando que do valor gasto, R$ 12,7 milhões são recursos do PNAE e R$ 9 milhões são recursos do Governo do Estado. Para a entidade seria uma oportunidade muito boa de fomentar a economia gaúcha, principalmente as pequenas cooperativas e os agricultores familiares. Mas ao contrário, o governo desconsidera toda a produção da agricultura familiar ao comprar de uma empresa atacadista que muito provavelmente tenha produtos que não são produzidos no Rio Grande do Sul.

“A Seduc (Secretaria da Educação) e o governo cometeram uma falha muito grave ao não levar e consideração a possibilidade de fornecermos os alimentos na chamada pública. Temos mais de 50 cooperativas que fazem esse trabalho. Então, não há justificativa. Queremos ter a oportunidade de apresentar os nossos produtos. Temos produção para comercializar 100% da agricultura familiar”, destaca o coordenador geral da FETRAF, Rui Valença.

Além da Fetraf, outras entidades representativas dos pequenos e médios produtores rurais mostraram indignação com a forma de aquisição e a falta de diálogo com o setor. Para o presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do RS (Consea), Juliano de Sá, foi uma compra muito rápida, sem licitação, se aproveitando do cenário de pandemia. “O governo simplesmente fez a opção de gastar tudo em um atacadão de Gravataí”, afirma. 


Para as entidades há falta entendimento por parte do governo estadual sobre o setor. / Reprodução

As entidades afirmam que a aquisição desrespeitou uma série de recomendações e normativas legais, como a utilização do Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE). O Fundo tem como objetivo movimentar a economia local, descentralizar os recursos em um grande número de produtores e assegurar a qualidade dos alimentos. A aquisição dos alimentos juntamente às cooperativas poderia movimentar a economia desse setor, que para além da situação da pandemia foram prejudicados pela seca. 

“Temos mais de cem cooperativas com capacidade de produção e prontas para o pleno atendimento. Os agricultores perderam a produção com a seca, o mercado com o coronavírus e agora também perdem importantes recursos”, lamenta Gervásio Plusinski, diretor técnico da Unicafes-RS.

Cinco quilos de açúcar para dois de feijão

A baixa qualidade dos produtos adquiridos é outro ponto que chama a atenção das instituições. Na relação de itens da cesta, há cinco quilos de açúcar e dois de feijão, bem como alimentos ultraprocessados e de valor nutricional questionável.

“Existe um trabalho forte no ambiente escolar para evitar a obesidade infantil, todo um acúmulo de discussão e avanços que não foram considerados”, observa a nutricionista e vice-presidente do Consea, Lisete Griebler. “Eu sei que é uma situação de emergência, mas não podemos ofertar alimentos ruins. Mais do que nunca precisamos contribuir com a imunidade das pessoas”.

Leudimar Ferrari, da Coceargs, avalia que falta entendimento por parte do governo estadual sobre o setor. “Produzimos arroz, carne, leite, massa. Não há produto que não temos. Há logística e condições de armazenamento. Por isso, não faz sentido fazer uma compra centralizada com esse montante de dinheiro. Como fica a produção que as famílias iam entregar às escolas?”, questiona preocupado.

Priorizar o comércio local é, ainda, uma orientação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) durante a pandemia. “Pesquisadores do mundo todo destacam que isso pode ser uma estratégia para evitar o desabastecimento de alimentos e um empobrecimento ainda maior da população. Aqui no estado o instrumento legal foi criado em 2012, no governo Tarso. A Lei existe, só precisa executar”, observa Sá.

Seduc admite precipitação

Em audiência pública realizada nesta sexta-feira (15), o diretor administrativo da Seduc, Joel Rech, admitiu que o governo pode ter se precipitado. “Talvez a gente tenha se apressado ao montar este processo, mas tenham a certeza de que foi na melhor das intenções, respeitamos a agricultura familiar”, afirmou.

De acordo com o diretor, o governo realizou um levantamento em 2019 para conhecer melhor a realidade da agricultura familiar nas coordenadorias da educação. Em algumas o índice de aquisição chega a 50%. “Em outras é muito baixo. Estamos trabalhando para aumentar esse percentual”, conta.

Na audiência digital, convocada pelas comissões de Educação e Segurança e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa, deputados e entidades se revezaram nas críticas à compra.

O deputado Edegar Pretto (PT) lembrou que o Rio Grande do Sul atravessa uma seca história, com quase meio ano de duração. “E agora perdemos essa oportunidade ímpar de colocar R$ 23 milhões na agricultura familiar. Estamos falando de uma legislação de 2019. Que critérios foram usados para não obedecer a lei?”

Edson Brum (MDB) frisou que parte dos produtos não têm origem no estado. “Um diretor de escola me informou que muitos produtos adquiridos sequer foram fabricados no Rio Grande do Sul. Estamos fazendo campanha para retomar a questão financeira e aí o governo compra produtos de fora do estado? Fica muito ruim o discurso ser um e a prática outra”, contestou.

Os deputados petistas Zé Nunes, Sofia Cavedon e Jeferson Fernandes também participaram da reunião.

Após os erros da primeira aquisição, o governo já anunciou que as próximas aquisições serão realizadas de forma descentralizada, respeitando a legislação. Mas Juliano Sá reforça: “disseram que vão resolver, mas não sabemos quanto, nem quando e nem como ocorrerá.”

Veja aqui a nota completa da FETRAF - RS. 

* Com informações do CPERS Sindicato

Edição: Marcelo Ferreira