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GIRO PELO MUNDO

Gaúcha que vive na Irlanda conta como está o país que começou seu desconfinamento

Após lockdown, estatização de hospitais privados e renda de 1.400 euros a desempregados, retomada é gradual

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Com 24 mil casos de covid-19 e 1.583 óbitos, país europeu registrou pico da doença em abril - PAUL FAITH/AFP

Após quase dois meses de lockdown, o modelo de isolamento social mais restrito, a Irlanda iniciou nesta semana a retomada gradual de suas atividades. Desde o início da pandemia, o país europeu registrou mais de 24 mil casos de covid-19, e já somou 1.583 óbitos. O pico da crise foi em abril, quando chegaram a ser registradas 220 mortes em um único dia. Mas as medidas de isolamento surtiram efeitos e, na semana passada, a média de mortes foi de 12 ao dia.

De acordo com a gaúcha Natalia Tonollier, cientista da computação que vive há dez anos na capital Dublin, desde a chegada da pandemia no país, quando a situação começava a se agravar na Itália, a população irlandesa já se mostrava ciente da necessidade dos cuidados. Tão logo começaram as mortes, o governo implementou medidas de isolamento, a fim de não sobrecarregar os hospitais.

“O sentimento geral era de que estávamos todos juntos nessa situação, incluindo o governo, e que se cada um fizesse a sua parte salvaríamos vidas”, afirma Natália. O primeiro-ministro, Leo Varadkar, é formado em medicina e, desde o começo, demonstrou seriedade frente à situação. No pico da pandemia, demonstrou sensibilidade ao anunciar que se dedicaria, um dia por semana, ao trabalho como profissional da saúde.

Outra medida que merece destaque é a estatização do sistema de saúde privado no país durante a pandemia, a exemplo do ocorrido na Espanha. Após pressão social, o primeiro-ministro, que é membro do partido Fine Gael, o partido democrata-cristão irlandês, anunciou a medida. O que permitiu o atendimento dos hospitais particulares ao público em geral. “O papel dos governos agora é entrar com recursos para garantir que todos tenham condições de se proteger. A importância da saúde pública ficou ainda mais clara durante essa pandemia”, afirma Natalia, destacando a importância do SUS no Brasil.

Ela cita ainda como importante medida o auxílio dado pelo governo às pessoas atingidas economicamente, destacando que mais de 400 mil pessoas perderam seus empregos com a crise. Diferente do Brasil, que precisou de uma forte mobilização para conseguir um auxílio de R$ 600,00, a Irlanda concede a quem perdeu seu emprego uma ajuda de €1.400 por mês, equivalente a cerca de R$ 8.500. Há também apoio para empresas que perderam renda, onde o governo paga até 85% dó salário dos trabalhadores. Aluguéis foram congelados e expulsões proibidas.

A rotina de Natalia está sendo em quarentena. Iniciou no seu atual trabalho, na área da computação, no dia 1º de abril, logo no começo do isolamento. “Estou trabalhando remoto, o que tem sido uma experiência diferente tanto pra mim quanto para a empresa, e imagino que a situação não vá mudar por mais alguns meses. Tirando a restrição de movimento, o coronavírus não me afetou diretamente, mas sei que minha posição é privilegiada. Moro com o meu namorado Mark que também passou a trabalhar remoto, e acho que nos adaptamos bem nessa nova rotina”, conta.

Segundo ela, a situação toda está sendo um aprendizado. Tem passado grande parte do tempo se aventurando na cozinha e em seu novo projeto, cuidar do jardim, “que estou adorando e aprendendo bastante”. Vivendo em um país de inverno rigoroso, conhecido por não ter muito sol, ela conta que agora, em plena primavera, tem feito dias ensolarados e “em tempos normais os parques e canais estariam lotados de gente bebendo e aproveitando, acho que de momentos assim que sinto mais falta”.

“Um ponto positivo é que o senso de comunidade entre os bairros parece ter aumentado, muito organizam eventos como shows e exercícios, cada um no seu pátio ou sacada”, ressalta Natalia. Após a pandemia, ela se soma àquelas pessoas que acreditam que alguns valores serão repensados. Em específico, na Irlanda, ela acredita que serão valorizados trabalhos essenciais em serviços na área da saúde, pesquisa, supermercados, limpeza, educação, entre outros. Também espera que se mantenha a medida de restringir carros somente nas calçadas mais largas, numa ideia de “espaço para pessoas e não carros”.


“O sentimento geral era de que estávamos todos juntos nessa situação, incluindo o governo", diz Natalia. Na foto, ela e seu irmão, antes da pandemia. / Arquivo pessoal

A seguir, confira a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Como está viver atualmente em quarentena? Trabalho, escolas, compras, cultura, etc.

Natalia Tonollier - Por mais ou menos dois meses só era permitido sair de casa para comprar comida e se exercitar, mas no dia 18 de maio, a Irlanda entrou no primeiro estágio de relaxamento das medidas de isolamento. Até então tudo estava fechado, com exceção de hospitais e supermercados, que foram obrigados a se ajustar às regras de distanciamento, de dois metros entre as pessoas, e de higiene. A maior parte das empresas se adaptou ao trabalho remoto, o que aqui já fazia parte da realidade de muitos, e o comércio online aumentou bastante.

Um ponto positivo é que o senso de comunidade entre os bairros parece ter aumentado, muito organizam eventos como shows e exercícios, cada um no seu pátio ou sacada.

BdFRS - Qual o sentimento da população em relação à pandemia?

Natalia - Não senti clima de pânico da população em nenhum momento, pelo contrário, sempre houve uma confiança geral no governo, que foi guiado por profissionais de saúde durante todo o processo. Sabíamos que seria um período difícil e que haverá impacto na economia, mas acho que a sensação da população é de que estamos juntos conseguindo controlar o vírus mesmo que uma segunda onda seja possível.

BdFRS - Notícias mostram que as medidas de isolamento foram colocadas em prática cedo na Irlanda, se comparado ao Reino Unido, que apresenta muito mais casos, evitando que o país somasse altas taxas de mortes. Como o início do isolamento foi recebido pela população?

Natalia - Desde que a pandemia se agravou na Itália, a população na Irlanda já estava ciente que o vírus chegaria aqui e que o foco do governo era “achatar a curva” para não sobrecarregar hospitais. Uma preocupação do primeiro-ministro, Leo Varadkar, era que as restrições fossem implementadas no tempo certo, já que medidas precoces poderiam levar a população a se descuidar cedo demais. Mesmo antes das medidas, as pessoas estavam seguindo as recomendações, que eram de limitar os movimentos fora de casa.

O primeiro-ministro fazia anúncios na TV aberta frequentemente, alertando a população que tempos difíceis jamais vistos antes estavam por vir e que a prioridade do governo era a saúde. Disse abertamente que a economia sofreria, que mais uma vez a Irlanda estaria em débito com a União Europeia, mas que gastos não seriam restringidos para que o vírus fosse contido. O sentimento geral era de que estávamos todos juntos nessa situação, incluindo o governo, e que se cada um fizesse a sua parte salvaríamos vidas.

BdFRS - Quais medidas de isolamento foram mudando com o tempo? Ainda estão em vigor? As pessoas estão respeitando?

Natalia - As restrições foram graduais, mas não planejadas com antecedência. A cada dia que os números aumentavam, mais medidas eram anunciadas. Por uns dois meses as restrições foram totais com exceção de serviços essenciais na área da saúde e alimentação. Nesta semana a Irlanda entrou na primeira de cinco fases de relaxamento de medidas. Agora creches estão abertas para filhos de trabalhadores da área da saúde e também estão abertas lojas e serviços ao ar livre. Para quem estiver interessado, o plano pode ser encontrado nesse link (em ingles): https://www.gov.ie/en/press-release/e5e599-government-publishes-roadmap-to-ease-covid-19-restrictions-and-reope/ .

BdFRS - Há multa ou penalidade para quem descumpre o isolamento? O governo está controlando quem anda nas ruas?

Natalia - No começo da quarentena haviam mais policiais na rua, hoje em dia nem tanto. Quem é pego desrespeitando as restrições ganha um ‘aviso’ formal, no terceiro a pena é de até seis meses de prisão e/ou multa.

BdFRS - A situação afetou o emprego? Houve medidas do governo para conter as demissões? Há uma ajuda para pessoas em situação de pobreza?

Natalia - Afetou e muito. Grande parte da população da Irlanda, que é de menos de 5 milhões, trabalha na área de hospitalidade, que foi a mais impactada. Mais de 400 mil pessoas perderam o emprego temporariamente ou permanentemente, e o governo estima que o desemprego vai subir de menos de 5% para 22% esse ano.

Todos que perderam emprego depois do dia 13 de março têm direito a €1.400 por mês (cerca de R$ 8.500) até pelo menos 8 de junho e a ajuda vai ser estendida. Empresas que perderam pelo menos 25% da renda podem ter até 85% do salário dos empregados pagos pelo governo para evitar demissões. Os aluguéis foram congelados e expulsões proibidas.

BdFRS - Aqui no Brasil, o governo e grupos da extrema-direita agem de forma negacionista. Existe essa divisão na Irlanda, com grupos que contestam o isolamento?

Natalia - Não vejo nada nas redes sociais e se teve demonstrações nas ruas foram muito pequenas e sem cobertura das mídias. Protestar contra o isolamento dentro do carro? Muito cômodo, quero ver ter que encarar transporte público lotado no meio de uma epidemia. Falta empatia.

BdFRS - Aqui no Brasil existe muita fakenews sobre o tema circulando principalmente no WhatsApp e no Youtube. Isso ocorre na Irlanda?

Natalia - Não vejo quase nada. A população aqui não tem a mesma relação com redes sociais e WhatsApp que os brasileiros têm, consomem muito menos.

BdFRS - No Brasil, temos um presidente que é contra o isolamento, de extrema-direita. Já a Irlanda, o atual primeiro-ministro, Leo Varadkar, é aclamado como modernizador do país. Médico e de um partido de direita, durante a pandemia, estatizou os hospitais irlandeses. Você teria como falar sobre essa comparação e outras medidas importantes na defesa da vida?

Natalia - O mundo ouviu esse discurso contra isolamento com líderes como Trump e Boris Johnson, que foram obrigados a voltar atrás quando confrontados com milhares de mortes e sistema de saúde próximo ao colapso. O papel dos governos agora é entrar com recursos para garantir que todos tenham condições de se proteger. A importância da saúde pública ficou ainda mais clara durante essa pandemia (viva o SUS!). Ninguém em sã consciência diria que tem mais direito de viver que outro, por que então arriscar a vida de quem não tem oportunidade de trabalhar remoto ou priorizar tratamentos para quem tem condições de pagar uma saúde privada? É imoral durante pandemias, é imoral em dias normais.

BdFRS - Como está a questão da testagem dos suspeitos no país? É feita em larga escala ou somente em alguns casos.

Natalia - A capacidade no momento é de 100 mil testes por semana, mas para ser testado só apresentando pelo menos um sintoma e recomendado por um médico.

BdFRS - Você acha que a sociedade irlandesa vai repensar alguns valores a partir dessa pandemia?

Natalia – Acredito, e espero que sim. Alguns pontos possíveis são:

- A importância de trabalhos essenciais em serviços na área da saúde, pesquisa, supermercados, limpeza, educação, etc.;

- Importância da saúde pública;

- Espaços para carros agora vão ser restringidos somente nas calçadas mais largas, espero também que essa ideia de “espaço para pessoas e não carros” fique. Acho que a relação das pessoas com carro vai mudar e o trabalho remoto vai ficar.

 

Edição: Katia Marko