Rio Grande do Sul

DEBATE

Mortalidade juvenil e genocídio do povo negro, realidade a ser combatida

Investimento público em educação é uma das únicas saídas para o racismo estrutural que mata a juventude brasileira

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Tema foi debatido em live da Rede Soberania e Brasil de Fato RS - Reprodução

O assassinato de João Pedro, estudante negro de 14 anos atingido na barriga enquanto brincava no quintal de sua casa durante uma operação da Polícia Federal e da Coordenadoria de Recursos Especiais em São Gonçalo (RJ), na última segunda-feira (18), de longe é um caso isolado.

O Atlas da Violência de 2007 mostra que 35.783 jovens de 15 a 29 anos foram assassinados naquele ano. Mostram também que 75% das vítimas de homicídio no Brasil são negras. As informações trazem a tona o histórico problema brasileiro da alta taxa de mortalidade da juventude, principalmente quando se fala de jovens negros.

Realidade dos morros cariocas e outras comunidades Brasil afora há muitos anos, não é muito diferente do que se passa na periferia de Porto Alegre. A questão foi tema de debate virtual na Rede Soberania, realizado nesta segunda-feira (25), que contou com a participação de Giovane Scherer, professor de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), David Mantalof, educador social no Serviço de Medidas Socioeducativas de Porto Alegre e Carlos Alberto (Carlinhos), da coordenação nacional do Levante Popular da Juventude.

Negro e militante da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil em Porto Alegre, David destaca a dinâmica do racismo estrutural que constrói esse genocídio, que se dá com outras mortes antes da física. “Existe uma morte social da população negra que é constante. Anterior a esses episódios, a construção da identidade e subjetividade da população negra, o projeto de vida que se consegue construir é muito cruel. Muitas vezes o negro não consegue se ver em certos espaços como no ensino superior”, afirma, destacando a construção da imagem do negro enquanto sujeito perigoso.

“Por que da construção desse medo sobre nossos corpos?”, questiona. E aponta que, quando a questão é de segurança pública, não é questão de medo. “Não se pergunta antes, se atira direto, e vamos ver a morte de jovens como a Ágata, com 8 anos, recentemente o João Pedro. É a morte de famílias e não se fala da dor de mães negras. As mulheres negras são as que mais sofrem. Então tem esse debate a se fazer, como o genocídio acontece antes, com mortes sociais, e na adolescência acaba sendo físico e nosso sangue é derramado mais uma vez”, afirma.

“Antes do assassinato físico, a juventude negra sofre outros assassinatos. É o assassinato dos sonhos da juventude, quando tu sufoca as perspectivas da juventude negra”, concorda Carlinhos. Negro e morador da Cruzeiro em Porto Alegre, o coordenador do Levante considera os dados do Atlas da Violência chocantes. “Eu ando na rua com medo de ser parado pela polícia porque minha fisionomia bate direto com o que é construído na cabeça, na formação desses policiais, como suspeito, jovem vivendo em periferia”.

“Não é a toa que a juventude negra é uma das mais assassinadas. Há toda uma narrativa construída em torno do povo negro, narrativa que é construída há muitos anos e se consolida nas estatísticas de mortes pela polícia. Não é a toa que a polícia militar é uma das que mais mata no mundo”, afirma. O estigma social fica claro quando se olha uma notícia sobre um jovem branco e um jovem negro preso por tráfico, reflete. Enquanto o branco é tratado como “jovem pego vendendo drogas”, o negro é taxado de “traficante, criminoso e vagabundo”.

Ele destaca que o povo negro, na história do Brasil, sempre teve sua perspectiva de vida reduzida, mas também sempre teve luta. “A partir dos anos 1990, com a organização do povo negro, começou a se construir bandeiras que dariam projeção ao povo negro, uma delas foi o acesso ao Ensino Superior”, ressalta. E citou que em 2019, pela primeira vez na história, os negros são maioria no ensino superior, sendo a maioria da sociedade brasileira ha muitos anos.

Giovane Scherer, que também é militante da Frente de Enfrentamento à Mortalidade Juvenil em Porto Alegre, destaca o racismo estrutural, a estigmatização dos moradores das periferias e a falta de políticas públicas de enfrentamento à mortalidade juvenil. “Quando mortes ocorrem em território violento, não são violentos, são violentados por uma dinâmica estrutural que retira políticas públicas fundamentais”, aponta, lembrando que o solo brasileiro é repleto de sangue, “tem uma história do genocídio, como foi com os povos indígenas”.

Ele destaca a construção do discurso que cria vilões, sujeitos inimigos, que tiram o foco dessa violência estrutural de abandono produzida pela sociedade capitalista. “Esse vilão na sociedade brasileira é construído a partir da ideia do jovem pobre negro de periferia, sobre esses sujeitos recai a lógica da fúria desse Estado, que na atualidade é mínimo para investimento social, mas é máximo para a questão penal, para prender”, afirma.

O professor lembra que “o perfil selecionado pela justiça para ser encarcerado é o que mais morre” a partir do paradigma da guerra às drogas copiado dos Estados Unidos. “Na verdade é uma cortina de fumaça, é uma guerra a pessoas, às mais pobres. Esse paradigma não vai se aplicar numa rave, por exemplo, numa zona nobre, com ingresso caríssimo, em que as pessoas consomem droga. Essa ideia de guerra às drogas é uma forma de validar essa ideia de Estado que vai intervir pela lógica da violência nas comunidades periféricas”, avalia, recordando que nada é feito em outros níveis do tráfico, apenas no varejo, onde “se pune e mata sob aplausos da sociedade”.

Para Giovane, a redução do índice de mortalidade juvenil só será combatida com investimento público, “principalmente em políticas públicas de educação. Não é pela bala que se vai reduzir a drogadição ou mortalidade juvenil, mas sim políticas públicas pensadas de forma intersetorial”, conclui.

Resistência

“Nossas vidas já são a própria resistência, crianças que ocupam locais de música, lazer, teatro, o slam, vêm com força denunciar isso, da mesma forma que a capoeira, historicamente marginalizada, foi forma de luta e resistência da população negra”, afirma David. Para ele, não se pode esquecer a forma que os jovens negros enxergam o mundo, “nosso olhar tem que ser levado em conta, é muito importante, somos um povo que canta, que dança, que por vezes esteve em extrema vulnerabilidade, mas não deixávamos de cantar um grito por luta de liberdade”. Para ele, essa luta se atualiza hoje, “porque as mesmas leis que nos barravam nas portas da universidade tentam voltar, leis que nos colocavam no presídio tentam voltar, constantemente".

Carlinhos lembra ainda que, em tempos de pandemia do novo coronavírus, os negros são os que mais vivem em condições subumanas e que esse fator é essencial para pensar uma estratégia de defesa do povo para que não fique desamparado.

Ao final de live, os convidados fizeram um convite para a participação do debate "Por que falar em Mortalidade Juvenil?”, promovida pela Frente de Enfrentamento a Mortalidade Juvenil. A live ocorre nesta quarta-feira (27), às 19h, no Instagram @Femjuv, com transmissão pela Rede Soberania.

A seguir, assista ao debate completo promovido pela Rede Soberania e Brasil de Fato RS:

Edição: Katia Marko