Bom, então vamos a análise das concepções bolsonaristas.
1) “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!”
Uma frase bíblica, mas que poderia também ser iluminista; é só mudar a verdade revelada pela verdade da razão, e bem que caberia na boca de Voltaire. O problema, aqui, é que Bolsonaro não apresenta qualquer fundamento para esta “Verdade”; aliás, ele diz qualquer coisa como verdade sem precisar apresentar fundamento algum.
A última foi: “a imprensa mundial é de esquerda!”. Glup! Como assim? O Financial Times, o The Economist, as organizações Globo?
Parece que o único fundamento para as suas verdades é ele mesmo e o seu próprio poder (ou, claro, a citação de uma fonte confiável, como Olavo de Carvalho). É como se a verdade pudesse, nos dias de hoje, ser instituída pelo poder, como no Ministério da Verdade do George Orwell.
Ora, não é da Verdade que ele fala, verdade esta que teria de ter um fundamento lógico, provas factuais, reconhecimento histórico, ou uma senhora autoridade por trás, validando-a. Ele fala que seremos libertos quando aceitarmos a visão enviesada, torta e quase invertida de mundo que ele mesmo tem. “A imprensa mundial é de esquerda, o Nazismo é de esquerda, a ditadura salvou a democracia brasileira, vivemos uma ameaça comunista iminente, a covid-19 é uma gripezinha, brasileiro não pega nada, o coronavírus foi criado pelos chineses para dominar o mundo”, etc. Nenhuma cogitação sobre os fatos ou a lógica permitem chegar a estas “verdades”, logo, elas não passam de dogmas dele, dos bolsonaristas e sua turma, mas que hoje reclamam a sua instituição de Verdade por meio do poder do cargo que Bolsonaro ocupa, como quem diz: nós ganhamos a eleição, logo nossa visão de mundo é a verdadeira.
Bah, que uso mais repugnante para uma frase de origem tão bela.
2) “Eu quero todo mundo armado, porque povo armado jamais será escravizado”.
O mote desta frase é que, na sua visão, só um povo armado evitará uma ditadura. Ele disse isso na tal reunião ministerial, e sabe a que ele se referia como ditadura? Às medidas para o distanciamento social no combate a covid-19, da parte de governadores e prefeitos.
Mas que estranho, Benito Mussolini disse quase a mesma coisa em 1937: “quando um povo não quer sujeitar-se a utilizar-se de suas armas, acaba sendo obrigado a aceitar as imposições de qualquer outro”. Será que ele ainda não era um ditador à época, ou pretendia armar o povo contra si mesmo? E você sabia que os neonazistas e os supremacistas brancos estão entre os principais armamentistas americanos?
Na verdade, então, nesta corrida armamentista bolsonarista, só quem está comprando arsenais de armas e munições são os seguidores do próprio Bolsonaro, logo, ele espera que seus apoiadores, armados, protejam a ele e seu grupo, não a democracia. Ele se sente ameaçado pelas instituições democráticas e espera que as milícias armadas de apoiadores protejam o seu mandato e o seu poder, por isso ele se apressou em aumentar de 200 por ano para 500 munições por mês o limite de compras por pessoa, e impediu que se fizesse rastreabilidade em armas e munições no Brasil. Em plena pandemia.
Já imaginou feministas, grupos LGBT, ativistas de direitos humanos, pacifistas, ambientalistas, camponeses, quilombolas ou grupos indígenas comprando metralhadoras, fuzis e 500 munições por mês como ele recentemente liberou? Não, mas você certamente já deve ter imaginado estas hordas militaristas que o cercam fazendo isso, não é mesmo? Aliás, no acampamento dos 300 do Brasil em Brasília está cheio de armas, e a própria organização admite isso, segundo eles, porque lá tem atiradores, colecionadores de armas e caçadores. São estes os apoiadores do Bolsonaro.
Então, a bem da verdade, que "povo" é este que o Bolsonaro quer ver armado? E para defender o que e a quem?
Estivesse mesmo preocupado com a defesa da democracia, deveria reforçar as instituições democráticas e a Constituição, porque a via institucional/constitucional é única alternativa de defesa democrática da própria democracia.
3) “A liberdade é mais importante que a vida”
Nossa, esta frase é de doer na boca do Bolsonaro, porque é muito cara para tantos que morreram lutando contra os canhões e os porões da opressão mundo afora. Lembro daquela cena final do filme Coração Valente, quando Willian Wallace, que liderou uma luta pela independência da Escócia, é confrontado pelo seu carrasco na hora da morte, que pede que ele diga “misericórdia” e salve sua vida, e ele, quase sem conseguir falar em função das sessões de tortura, grita: “LIBERDAAAAADE!”.
Uau!
Che Guevara, Emiliano Zapata e José Martí teriam dito quase a mesma coisa: “prefiro morrer em pé do que viver ajoelhado”; ou “mais vale um minuto em pé do que uma vida ajoelhado”.
Bolsonaro disse quase isto. Mas esta frase, para todos aqueles que lutaram e morreram para garantir os direitos democráticos e humanos que temos hoje, inclusive a liberdade, tem um sentido um pouco mais heroico: “se preciso for eu dou a minha vida na luta pela liberdade”. Ou seja, é frase de quem dá a vida pela libertação do seu povo.
Só que – e aí está o busílis da questão – na fala de Bolsonaro, o sentido de "vida" e "liberdade" são completamente outros, quase o inverso disso. O que ele fala é mais ou menos assim: eu devo ter liberdade para colocar a minha e a sua vida em risco pelo meu prazer. Ou seja, não venha defender o seu direito de viver às custas da minha liberdade de fazer o que eu quero!
Exatamente como fez aquele rapaz que entrou na farmácia sem usar máscara dizendo que estava exercendo a sua liberdade, mesmo colocando a vida dos demais em risco; e como fez o próprio Bolsonaro quando relaxou o uso da cadeirinha infantil e o limite de velocidade nas rodovias, porque, nas suas palavras, os pardais atrapalhavam o “prazer de dirigir”. Mesmo que salvassem vidas, a do motorista, a das crianças da cadeirinha, a dos passageiros e a dos demais que cruzassem com ele na estrada.
Então, quando ele fala em "liberdade", fala no uso hedonista de ser livre: ser livre para maximizar o prazer, para poder fazer o que quiser, doa a quem doer, custe o que custar. Mesmo que custe a vida, mesmo que esta vida não seja a minha. E quando ele fala em "vida", vê a responsabilidade pela sua preservação como um obstáculo à livre realização do prazer.
Então, ele não fala em liberdade como direito fundamental, como aquilo que nos iguala e nos faz humanos, nos faz humanidade. Como nos humanistas e existencialistas, e como aquilo pelo que tantos lutaram e deram a própria vida.
Neste sentido ancestral, que era revolucionário, republicano, democrático e iluminista, liberdade nunca vinha sozinha: ela vinha acompanhada de igualdade, como em Rousseau e Kant: todos somos iguais porque somos livres; vinha acompanhada de justiça social, como nos marxistas; vinha acompanhada da angústia pela responsabilidade da escolha, como em Heidegger e Sartre; ou vinha acompanhada de fraternidade, como no lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Ou seja, a liberdade civilizatória vem acompanhada de responsabilidade, de ética, de compromissos coletivos. Ela nunca foi um valor em si, assim, sozinha, isolada do resto que nos faz humanos.
A liberdade dos humanos não é a mesma dos pássaros ou dos insetos, que são totalmente livres de qualquer compromisso ético, mas ao mesmo tempo são escravos dos próprios instintos e do próprio destino. Como as aranhas viúvas negras, machos que sem poder escolher, morrem por uma cópula para viabilizar a reprodução da espécie; ou as fêmeas, que também não escolhem comer as carcaças dos machos depois, mas o fazem. Os animais só seguem seus programas, os humanos fazem escolhas: escolhas éticas, escolhas morais, escolhas políticas. Esta é a diferença, então, a liberdade humana se inscreve aí.
E se pensarmos bem, só assim se é mesmo livre, ao menos humanamente falando, porque, afinal, se ser livre fosse só seguir os próprios desejos de prazer, como não temos controle algum sobre o que desejamos, na verdade seríamos escravos dos nossos próprios desejos, e isto não seria liberdade. Nem seria humano. Ao contrário, isto é autodestrutivo.
Aliás, não é assim que nós educamos nossos filhos na passagem da infância para a vida adulta, não é mesmo? Nós os educamos para a responsabilidade: liberdade com responsabilidade. Quanto mais autônomos, quanto mais responsáveis, quanto mais comprometidos, quanto mais maduros, tanto mais livres. Pessoas que crescem só expandindo a liberdade sem assumir as responsabilidades da vida adulta, na verdade nunca “cresceram”, e nós identificamos claramente estes tipos por aí. Eles nunca saem da casa dos pais.
Então, liberdade sem responsabilidade, liberdade sem respeito ao próximo, liberdade sem ser até onde começa a do outro, liberdade sem vida, só cabe a tiranos, ou a meninos mimados.
* Professor da UFSM, do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural.
Edição: Katia Marko