Rio Grande do Sul

PANDEMIA

Os bares que mesmo com liberação decidiram manter as portas fechadas em Porto Alegre

Há pouco mais de uma semana, através de decreto, a prefeitura liberou o funcionamento de bares via determinadas regras

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Mesmo com as adversidades causadas pela covid-19, alguns proprietários avaliam ainda não ser o momento de abrir - Fabiana Reinholz

Na Cidade Baixa já não se ouve os tacaneos, a melodia do piano, o som envolvente latino ou se sente o aroma de certos cafés. Já pelo centro da Capital, o acordeon e o trompete não reverberam mais. A pandemia do novo coronavírus atingiu em cheio vários setores econômicos, em especial os pequenos comércios, ligados à cultura. Mesmo com o decreto nº 20.583, de 19 de maio, que liberou a reabertura de bares e restaurantes, com restrições de distanciamento social, por causa da covid-19, muitos cafés e bares de Porto Alegre decidiram manter suas portas fechadas. Entendendo a razão dos que optaram por reabrir, apesar dos impactos econômicos, para os estabelecimentos ouvidos pelo Brasil de Fato ainda não é hora de voltar. 

Um letreiro em neom azul, no centro de histórico de Porto Alegre, que há quase 35 anos se acende na rua General Andrade Neves, desde o dia 15 de março já não reflete mais. Fundado em outubro de 1985, o Odeon Snack Bar, além de ser um clássico botequim, aberto de segunda à sábado, que serve chope e bolinho de bacalhau, oferece também tango, MPB e muito jazz. 

Ao comentar sobre os efeitos da pandemia, Celestino Paz Santana, o Tino, proprietário do botequim, disse que a pandemia trouxe um impactado desastroso. “O bar está completamente fechado, sem renda, as despesas estão vencendo. Estamos tentando fazer um acordo com o senhorio de aluguel”, comenta. 


Botequim Odeon / Arquivo Pessoal

Por ser um espaço pequeno, mais intimista, não é possível fazer o distanciamento, e mesmo se fosse, provavelmente Tino não reabriria nesse momento. “Com a bandeira que nós temos, com o avanço da pandemia, não temos nem como pensar ainda em reabrir. Se analisarmos o funcionamento do bar Odeon e todos os bares como ele, que são baseados em atividade cultural, especialmente com a música, não temos como abrir nesse período. Vamos reabrir quando o contágio estiver resolvido, ou a infecção desse vírus esteja rara”, conclui. 

Um pedaço da Espanha próximo à Redenção e um pouco mais

Uma escola de dança, um tablao (bar) flamenco, uma cozinha com a mais alta gastronomia espanhola, com tele-entrega de paella. Assim é o Tablado Andaluz, localizado na Avenida Venâncio Aires, na Cidade Baixa. O Tablado, que nasceu como escola de dança flamenca, com o tempo se transformou e, para além da escola, há alguns anos é também um espaço de apresentações artísticas e restaurante. Por lá já passaram bailaores e bailaoras renomadas, e em 2013 recebeu a visita de Paco de Lucia. 


Tablado Andaluz / Rafael do Canto

Professora de flamenco há mais de 30 anos, a proprietária do estabelecimento, Andrea Franco, comenta que a crise econômica já existente nos últimos quatro anos, que refletiu no movimento, e a pandemia foram devastadoras. “Estou fechada desde o dia 18 de março, meu faturamento caiu absurdamente, não está dando para pagar as contas, investimentos. Pagamos o básico, água, luz, telefone, internet", conta.

Conforme explica Andrea, com o decreto de março, tanto a escola como o restaurante foram fechados, ficando só com a tele-entrega e aulas on-line. Sendo também um espaço cultural, ela lembra que a cultura tem sido um dos setores mais atacados no governo atual. “De todas as categorias, a dança é uma das artes mais difíceis de se explicar on-line porque ela tem movimento e precisa de outros equipamentos que as escolas ainda não estão equipadas para fazer”, ilustra. 

Assim como acontece com o Odeon, o Tablado também vive de público e, por ser um espaço pequeno, também não tem condições de cumprir todas as necessidades que o decreto impõe (para poder funcionar, entre as exigências está o distanciamento). Na avaliação da Andrea as medidas são paliativas e irreais. 

“Não vou abrir provavelmente até o final do ano. Hoje, minha família mora aqui na sede do Tablado e não vou expor eles, os meus clientes e alunos ao contágio. Estou trabalhando no mínimo possível e vou negociar o máximo que eu puder as minhas dívidas, atender com a tele-entrega, com aulas on-line e com alguns alunos particulares, mas com muito cuidado ”, assegura. Ela ressalta que, apesar das dificuldades do pequeno empreendedor, que são absurdas e vão desde a dificuldade de financiamento junto aos bancos a uma difícil negociação com as plataformas on-line, tem conseguido pagar a funcionária do estabelecimento.

Há 8 anos promovendo cultura

Próximo ao Tablado, fica o Café Fon Fon, de propriedade dos músicos Luizinho Santos e Bethy Krieger. Localizado na confluência de dois bairros historicamente ligados à vida cultural de Porto Alegre, o Bom Fim e o Farroupilha, no local são realizadas atividades artístico-culturais regulares e ininterruptamente há oito anos. A casa promove shows musicais dos mais variados gêneros, de quarta à domingo, além de sediar exposições de arte, performances de dança e de teatro. Também possui ponto de venda para comercialização de CDs e uma gastronomia diferenciada, elaborada com produtos orgânicos. 


Café Fonfon / Arquivo Pessoal

Fechados desde o dia 15 de março, por medida de segurança, os músicos têm feito live via Instagram, onde cantam e tocam. Para se manter, Bethy pontua que foram feitas duas campanhas: uma de doação direto na conta e a outra, que é da Heineken, que se chama Brinde do Bem, além de ter investido dinheiro próprio da conta pessoal.  

Mesmo com um espaço grande, Bethy assegura não ser ainda o momento de reabrir, mesmo com a flexibilização. “Achamos um risco muito grande, nesse momento, sem nenhum dado real abrir, trabalhar promovendo a possível contaminação pelo convívio dentro do bar”, afirma. Após a pandemia, a ideia é procurar algum grupo ou alguém para dividir os custos. “Nosso espaço não está sendo totalmente aproveitado e estamos desenvolvendo alguns produtos novos que vão ser vendidos no próprio bar. Tudo com a esperança de que volte em breve, porque não serão muitos meses que poderemos aguentar, são mais de 60 dias sem funcionar e só pagando contas e impostos”, finaliza. 

Espaço para latinidade, MPB e resistência  

“Cultura, Política e Acompanhamentos”, assim recepciona seus clientes o bar Comitê Latino-Americano. Foi idealizado por Roberto Oliveira a partir da  participação em uma Brigada Sul Americana de Apoio à Cuba, em 1997, e uma viagem de 8 meses pela América Latina em 1999, assim como a necessidade de um espaço latino americano de resistência e cultura em Porto Alegre, explica uma das responsáveis pelo espaço, Raquel Marques Ledur. 

Com 10 anos completos no último dia 1 de maio, o Comitê, como todos os demais espaços, tem sofrido as consequências da covid-19. “Fechamos as portas em 17 de março, pouco antes de ser decretado o fechamento pela prefeitura, pois a preocupação com a segurança de todos falou alto. Além dos abraços, das conversas, dos lindos encontros, também ficamos sem ter como pagar nossos fornecedores (todas são pessoas amigas, próximas, que ficaram sem receber), bem como outras contas”, aponta. 


Comitê Latino Americano / Arquivo Pessoal

Para conseguir pagar tanto os fornecedores quanto artistas que já fazem parte do espaço, que também ficaram limitadas nos seus trabalhos, pontua Raquel, e pessoas que trabalham e dependem quase que integralmente do Comitê, optou-se por fazer um financiamento coletivo na plataforma Apoia.se

“O retorno pra quem apoiar é o valor em consumo no Comitê. Esperamos assim conseguir sair dessa pandemia fortalecidos, para seguir defendendo a alegria, a arte e a cultura. Infelizmente, devido ao desgoverno deste país, que subnotifica o número de mortes pela covid-19 no Brasil, desrespeitando vidas, possivelmente não estamos perto do fim dessa crise.” Mesmo entendendo o motivo que levou outros estabelecimentos a reabrir, Raquel diz que posicionar-se é fundamental, principalmente diante desse atual quadro de pandemia e descaso político.

Na Travessa dos Venezianos

“A pandemia de covid-19 e a necessidade da quarentena nos pegou, como a quase todo mundo, de surpresa. Mesmo assim, nos esforçamos para compreender a situação o mais depressa possível e fechamos o espaço antes mesmo que os decretos municipais impusessem isso. Da mesma forma, não reabrimos com o novo decreto que libera parcialmente as atividades, por acreditarmos que ainda não é o momento desse relaxamento, já que a curva da epidemia segue crescendo no Rio Grande do Sul”, afirma Pepe Martini, que juntamente com seu pai, Roni Martini, gerencia o bar Guernica, espaço cultural localizado numa pequena casa centenária da Travessa Venezianos, uma simpática rua de paralelepípedos, no coração da Cidade Baixa. 


Guernica / Arquivo Pessoal

O bar existe há pouco mais de um ano, sua estreia foi no outono de 2019. Tem se mantido com as reservas que os proprietários tinham destinadas a intempéries inesperadas como esta. E também iniciaram negociações com a imobiliária, para minimizar os prejuízos com o aluguel. 

“Nossa consciência nos diz que apenas as atividades essenciais devem funcionar neste momento, mas a prefeitura pensa diferente. Entendemos também que nem todos têm condições econômicas de permanecer um longo período em isolamento, o que só reforça a importância de que ele seja feito por quem ainda puder fazê-lo”, ressalta. 

Em relação aos próximos tempos do Guernica, Pepe destaca que reabrirão assim que isso possa ser feito de uma maneira relativamente segura, “atentos às restrições sanitárias e incentivando o público a privilegiar o espaço externo do bar, ou seja, a própria calçada da Travessa Venezianos, onde o tempo parece ter parado, mas a vida flui intensamente”.

Outros estabelecimentos

Atuando na aproximação de clientes e fornecedores locais do estado do RS, o Locals Only CB (Cidade Baixa) iniciou suas atividades em dezembro de 2015. Conforme aponta seu proprietário, Rodrigo Paz, entre cervejas artesanais, gastronomia autoral e bons drinks, o Locals é um reduto da resistência democrática.

Fechado desde o dia 21 de março, o estabelecimento teve que suspender os contratos com seus funcionários. “Entendemos que agora não seja o momento de voltar a atender o público. Voltaremos nas próximas semanas somente nas modalidades de "para levar" e entregas”, explica Rodrigo. Como forma de amenizar a situação financeira, o estabelecimento iniciou um clube de assinatura mensal com entrega de caixas sortidas de horti-fruti, leguminosas, prato congelado, sobremesa, pão rústico. 

Sobre a flexibilização da prefeitura por meio do decreto, opina que ela segue a postura do governo do Estado, que está pela liberação num momento em que provavelmente o vírus volte a circular. “Isso será inevitável, considerando que agora o corona está penetrando nas pequeninas cidades do Interior, o que fará com que retorne à Capital constantemente, pela própria dependência. Vejo as pessoas ignorando totalmente as recomendações, indo aos parques e compartilhando cuias, assando churrascos em grupos num momento em que ainda há circulação do vírus. Se conseguíssemos segurar a onda por mais 15 dias seria muito melhor”, avalia. De acordo com Rodrigo, no momento, abrir com metade das mesas ocupadas e uma série de custos inviabiliza a operação.

“Só reabriremos quando for de fato possível, quando as pessoas se sentirem seguras, quando a comunidade for atendida, não temos pressa, claro que temos anseio de voltar, mas nada de atropelamento”, afirma Rogério Medeiros Soares, proprietário do Café do Avesso, um café intimista, pequeno, familiar, que iniciou suas atividades na Cidade Baixa em 2018. 

Conforme define Rogério, o café tem por missão ser um espaço de acolhimento e que propõe a ideia de que, quem sabe, o avesso não seja o lado certo. “Uma provocação para que as pessoas pensem que é possível sair do que é dito, do que é dado como certo como norma, aceito há tanto tempo, fazer com que as pessoas reflitam sobre essas possibilidades.”

Sobre os impactos que a pandemia causou, Rogério disse que foram significativos e que mudou a rotina radicalmente. Segundo ele compromissos tiveram que ser cancelados, tanto com fornecedores, como o serviço de manutenção do café. “Toda rotina foi quebrada, existem contratos que continuam valendo, aluguel da loja, do equipamento, as dívidas, tudo que é comprado para o café, os alimentos. Fomos, como todo comércio, pegos de surpresa. Nossa sobrevivência financeira não depende única e exclusivamente do café, mas sem dúvida ele é nossa fonte de renda, estamos sem ela, mas temos como nos manter até porque não temos funcionário”, expõe. Para além do fator econômico, acentua a falta e a saudade dos clientes e amigos conquistados nesses dois anos. 

Outros bares e estabelecimentos também mantém a mesma decisão, como pode ser conferido na reportagem dos jornalistas Isadora Jacoby e Mauro Belo Schneider, do Jornal do Comércio, como no site cultural Rua da Margem.

 
 

Edição: Marcelo Ferreira