Rio Grande do Sul

Coluna

Crônica de um tempo inesperado

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Como serão as lutas, as mobilizações e a organização popular daqui para frente? Como serão as relações humanas e familiares? Que tipo de vida acontecerá e o futuro nos anuncia? - Divulgação
É preciso afirmar a reflexão do novo e do futuro sob outros ângulos, bem mais profundos

2020 começou trepidante, mesmo nos primeiros meses, em geral dedicados às férias e ao descanso. Nem passava pela cabeça de ninguém o uso cotidiano e obrigatório de máscaras logo ali adiante. Basta ver alguns elementos da minha agenda.

Janeiro: 3, 4 e 5, tradicional Curso Oscar Romero, de teologia, em Santa Maria, RS, com análise de conjuntura e debate sobre a complexidade do mundo das comunicações, a espiritualidade do Bem Viver, a ecologia integral do Papa Francisco, vivência da cultura do encontro, entre outros assuntos. Dias 7 a 12, Encontro da Ampliada Nacional da Pastoral da Juventude, em Erexim, RS, com o tema ‘Te aprochega, reafirmemos a luta e partilhemos o pão! Na diversidade se faz comunhão!’. De 21 a 25, Fórum Social das Resistências (FSR), em Porto Alegre, RS, debatendo ‘Democracia e Direitos dos Povos e do Planeta’.

Fevereiro: 6 a 9, Reunião da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política, em Vitória, ES: análise de conjuntura, planejamento do próximo período, reorganização da Coordenação Nacional, conversa sobre o Encontro Nacional, possivelmente em 2021, no Rio Grande do Sul. 14, reunião de preparação da Campanha da Fraternidade/2020, com o tema ‘Fraternidade e Vida: Dom e Compromisso’ e da Romaria da Terra, no CEPA, Centro de Espiritualidade Pe. Arturo, São Leopoldo. Dia 25, Romaria da Terra, com o tema ‘Bem Viver no Campo e na Cidade’, em Mormaço, RS.

Março: De 2 a 12, tradicionais dias de descanso (e de leitura, escrita e organização política e espiritual do ano, e alguns exercícios físicos e caminhadas), em Florianópolis, Sul da Ilha, SC, praias da Armação e Matadeiro. 12, 13, Encontro Nacional da ANEPS, Articulação Nacional de Educação Popular e Saúde, em Passo Fundo e Pontão, RS: falar sobre a Campanha Latino-americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire, coordenada pelo CEAAL, Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe. 14 de manhã, Assembleia Geral do CAMP, Centro de Assessoria Multiprofissional: análise de conjuntura e organização das atividades de 2020. 14 à noite, tradicional baile do meu Bloco de Carnaval ‘IMMA KNILL – Sempre Bêbado. Quem não bebe não vê o mundo girar’, no Luizão, em Santa Emília, Venâncio Aires.

Nos demais dias disponíveis de janeiro a março, reuniões de preparação do vigésimo Encontro de Sementes Crioulas da Diocese de Santa Cruz do Sul, do CONSEA RS (Conselho Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional), do Conselho Deliberativo do CAMP, da Coordenação do Movimento Fé e Política/RS, da Coordenação do CEAAL Brasil, da Operativa do Igreja em Saída/RS,  da Campanha em Defesa do Legado de Paulo Freire, do Núcleo de Reflexão Política da Lomba do Pinheiro, do Partido dos Trabalhadores de Porto Alegre e Venâncio Aires, escrita de textos e dos artigos semanais, etc., etc., etc.

Todos os indicativos eram de um 2020 tri difícil, com ‘trocentas’ mil atividades, lutas e mobilizações em defesa dos direitos e da democracia, de resistência contra a fome, a miséria e o desemprego, de debates sobre o Fora Bolsonaro. Reuniões para cima e para baixo, articulações mil para tudo que é lado, viagens, Encontros. 2020 prometia!

Lembro da chegada em Passo Fundo, vindo de Florianópolis, 12 de março: reencontro com dezenas de educadoras e educadores populares de todo o Brasil, muitos debates, Campanha em Defesa do Legado de Paulo Freire na pauta. E da Assembleia do CAMP em Porto Alegre dia 14. E da chegada no baile do IMMA Knill. Umas e uns se abraçavam, se beijavam se cumprimentavam normalmente, outras/os se olhavam desconfiadas/os, na dúvida, e só tocavam cotovelos ou braços. Mas em meio a muita brincadeira, sem maiores preocupações ou cuidados.

Menos de 3 meses atrás! Quem iria imaginar o que estava por vir daí para frente? Quem pensava algo diferente do descrito acima? Estamos quase na metade de junho, estou confinado em casa de mamãe desde 15 de março, há 80 dias. Só saio de casa para levar a cuidadora de mamãe para sua casa no final das quartas-feiras e de novo no sábado, quando aproveito para ir à cidade de Venâncio Aires fazer algum pagamento no banco, mais algumas compras, como os jornais do final de semana, para ter o que ler durante a semana e ajudar a passar o tempo.

No mais, dentro de casa, circulação apenas nos arredores de casa - estou na roça, no interior do interior - ir até o fundo da propriedade, até a mata virgem, há mais de 1 quilômetro da moradia, ainda intocada, ver as mudanças, olhar as plantações. Ou buscar laranjas, bergamotas, coquinhos, butiás, bananas, uvas japonesas: comer e saborear gostosuras conhecidas desde sempre. Mal me arrisquei a pegar a bicicleta do meu sobrinho, e andar um pouco, como fazia quando guri.

Quando penso que é hora de ir embora, voltar para a vida normal e o cotidiano de reuniões e tudo mais, as notícias do avanço do coronavírus se avolumam, o medo cresce e o confinamento continua.

Enquanto isso, mesmo à distância, obrigação de contribuir com os esforços de muitas pessoas e comunidades na solidariedade a quem está sofrendo: na Lomba do Pinheiro, no Comitê Popular em Defesa da Vida e contra o coronavírus, articulado em Porto Alegre por centenas de militantes e voluntários de todas as origens, as ações do CONSEA RS no mesmo sentido.

Crescem aceleradamente a articulação e o debate via redes sociais. Aumenta gigantescamente o número de mensagens via WhatsApp, mais de mil, às vezes duas mil por dia. Mais reuniões, debates, encontros, lives via redes sociais, uma, duas, três por dia, quando não duas, três, ou mais, ao mesmo tempo no mesmo horário.

Até 16 de março de 2020, eu nunca tinha participado de nenhuma reunião ou debate virtual. Só, e sempre, presenciais. Basta (re)ver a agenda dos dois e meio primeiros meses do ano. Foi necessário aprender a mexer no ‘notebook’ e no celular. E seus problemas: trinquei uma tela do ‘note’ e duas telas de celular, o qual tive que trocar (perdendo contatos e mensagens). Tudo muito difícil para quem, aos poucos, se aproxima do ocaso da vida e não consegue aprender os procedimentos, as palavras em inglês, como fazer para falar, ser visto e ouvir, ‘fabricar’ novas regras de reuniões, mais expeditas e objetivas. Difícil ‘aguentar’ encontros e reuniões virtuais de mais de duas horas, menos ainda de dia inteiro, ou todo ‘findi’, como já começa a acontecer.

Impossível acompanhar tudo e da forma como está acontecendo. O velho reunionismo parece estar de volta, com mais força que ‘nas antigas’. O cansaço toma conta no final do dia, como se tivesse acompanhado meus irmãos na roça, capinando, plantando verduras, quebrando milho, arando a terra, cortando lenha para o fogão a lenha, necessário em tempos de frio de inverno.

Uma imensa rede de comunicação popular construiu-se em pouco mais de dois meses. Todo mundo fala com todo mundo, todo mundo ‘encontra’ todo mundo.

Como serão as lutas, as mobilizações e a organização popular daqui para frente? Como serão as relações humanas e familiares? Que tipo de vida acontecerá e o futuro nos anuncia?

A presente reflexão é quase lúdica, preliminar, de superfície. Toca no que aparece à primeira vista e está visível no imediato. Mas lança um desafio. É preciso afirmar a reflexão do novo e do futuro sob outros ângulos, bem mais profundos e de muito maior alcance: na economia, no meio ambiente, na ação política, no cuidado com a Casa Comum, na espiritualidade.

E 2020, como terminará? Vai-se saber!

Edição: Katia Marko