Rio Grande do Sul

Crítica

Artigo | Destacamento Blood (2020)

Spike Lee preciso e atual, como sempre

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É triste constatar, entretanto, que todos os filmes de Spike que discutem o racismo parecem – e sempre pareceram – atuais - Reprodução

Filmes de guerra tendem sempre a serem, em algum nível, filmes pró-guerra – os hollywoodianos, principalmente, pela comum característica de enaltecerem os seus heróis de guerra, aqueles que se “sacrificaram pela liberdade e pelo sonho americano”. Essa visão costuma partir daquele lado que se declara o vencedor, diferentemente de movimentos como o neorrealismo italiano que, por mostrar o ponto de vista do lado derrotado, gerou filmes anti-guerra. Assim, a Guerra do Vietnã, no contexto norte-americano, sempre foi a que deu origem a mais filmes anti-guerra. Foi um conflito sem vencedores, e obras como Apocalypse Now (1979) e Nascido para Matar (1987) nos mostram isto. Assim também se enquadra Destacamento Blood (2020), nova produção de Spike Lee recentemente lançada pela Netflix.

Há pouco tempo, publicamos um guia sobre a carreira de Spike Lee, e nele comentamos sobre a precisão com que o cineasta analisa temas relacionados à condição do povo negro na América e o talento com que usa seu lugar de fala para gerar debates. Apesar de uma carreira irregular, Spike parece (felizmente) estar vivendo uma ótima fase. Seu último filme, Infiltrado na Klan (2018), lhe rendeu seu primeiro Oscar. Tal como no lançamento de dois anos atrás, Spike volta a mesclar realidade e ficção. Em Destacamento Blood podemos ver imagens de arquivo de Martin Luther King e Malcolm X, por exemplo, se misturando e se fundindo à narrativa do filme.

O roteiro nos apresenta a história de quatro ex-soldados negros veteranos da Guerra do Vietnã que retornam ao país asiático para recuperar os restos mortais de seu antigo líder, enterrado junto a um tesouro em forma de barras de ouro. O filme intercala a narrativa principal, dos amigos que se reencontram em dias atuais para a derradeira missão, e flashbacks da guerra, onde somos apresentado à Norm (Chadwick Boseman), o líder do grupo morto em combate. As transições entre os dois momentos são sempre feitas com um inteligente uso de diferentes aspectos (ou seja, proporções da tela), além do trabalho de fotografia, que consegue distinguir não só as diferentes épocas, com seus tons de cores, mas também as diferentes mentalidades dos personagens em cada contexto.

Aliás, nos personagens se encontra grande parte da força de Destacamento Blood, principalmente em Paul, personagem de Delroy Lindo, que, não à toa, é o que recebe maior destaque. Dos quatro sobreviventes, Paul é o mais psicologicamente afetado pelas memórias do passado de guerra. Sua angústia pelo que vivenciou nos campos de batalha e a decepção por tudo que veio depois, o transformaram em um homem amargurado. Spike usa Paul como um estudo de personagem pela mentalidade de um homem negro que, de tão ferido, não consegue mais se encaixar socialmente e parte para um individualismo frio. Assim, Paul não só é apoiador de Donald Trump, mas também passa a usar um boné MAGA (Make America Great Again) a partir de certo momento do filme.

O boné vermelho, inclusive, é transformado em símbolo para um dos mais belos planos da obra e abre espaço para destacar o belo trabalho do designer de produção Wynn Thomas, colaborador fiel de Spike. A montagem de Adam Gough também faz um bom trabalho em criar momentos de tensão e – em cima deles – ainda nos surpreender. Talvez, as 2 horas e meia de duração sejam um pouco mais do que a narrativa pede, parecendo se arrastar em certos momentos, mas não há dúvidas de que o filme é mais um acerto na carreira de Spike Lee.

Com a nova regra do Oscar (exclusiva para o ano de 2020), que permite a indicação de filmes lançados diretamente para o streaming, Destacamento Blood deve ser presença garantida. Seria um grande absurdo não ver o nome de Delroy Lindo encabeçando a lista de melhores atores. Assim como o de Spike e seu time de roteiristas. 

O timing do lançamento parece perfeito, em um momento em que os Estados Unidos e o mundo vivem grande onda de protestos anti-racismo. É triste constatar, entretanto, que todos os filmes de Spike que discutem o racismo parecem – e sempre pareceram – atuais. Em Faça a Coisa Certa, por exemplo, um personagem chamado Radio Raheem é assassinado por um policial de forma similar a de George Floyd, há menos de um mês. Faça a Coisa Certa foi lançado há mais de 30 anos.

#VidasNegrasImportam

* Lucas Maranhão é jornalista, designer e apaixonado por cinema.

Edição: Notícias Gerais