Rio Grande do Sul

CORONAVÍRUS

Governo do estado ignorou avisos sobre riscos de afrouxar isolamento

Novas restrições em Porto Alegre e “ajustes” do governo estadual colocam interesses econômicos acima da vida

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Desde que começou o distanciamento controlado até 12 de junho (33 dias), o número de casos no território gaúcho passou de 4.043 para 14.627 - Marcelo Camargo/Agência Brasil/ Fotos Públicas

Novo decreto de restrição da prefeitura de Porto Alegre e “ajustes” do governo do estado no distanciamento controlado são a prova de que atender interesses econômicos colocam em risco as vidas dos gaúchos na pandemia do coronavírus.

Dois dos mais notórios gestores públicos da crise do coronavírus no Rio Grande do Sul deram um passo atrás no isolamento social que iniciaram no mês de março. O prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Jr., anunciou nesta segunda-feira (15), um novo decreto de restrição de aglomerações.

Se o prefeito da cidade de Porto Alegre anuncia medidas racionais sem reconhecer o erro de ter mandado a vida comercial praticamente voltar ao normal há cerca de um mês, o mesmo não ocorre com o governador do estado. Eduardo Leite, do mesmo partido do prefeito, o PSDB, precisa manter as aparências e continuar negando o erro do desenho de seu distanciamento controlado.

Ambos os políticos neoliberais estão pressionados pelos erros que cometeram num espaço de 30 dias. O primeiro quando mandou abrir academias, shoppings centers, restaurantes em Porto Alegre. O segundo ao confiar nos dados do coronavírus e não ouvir entidades e especialistas que deram sinal de que não seria possível controlar o vírus com bandeiras coloridas.

Até 29 de abril, havia 1.350 casos de infecção por coronavírus diagnosticados por testes em todo o estado. A segunda fase da pesquisa coordenada pela Universidade de Pelotas (UFPel) indicava que o número de casos poderia estar subnotificado à razão de 12 para um. Nesta segunda fase, a UFPel avisava que poderia haver 15 mil pessoas infectadas desde 29 de fevereiro, data do caso de paciente zero do Rio Grande do Sul.

Quer dizer, desde a divulgação do resultado da primeira fase do projeto, a dispersão dos casos de contaminação por coronavírus duplicava a cada duas semanas. No início daquele mês de abril, a primeira fase do projeto havia estimado 5,6 mil casos de covid-19 em todo o estado. Os sinais estavam dados.

Pesquisa indica necessidade de medidas duras

A segunda fase da pesquisa indicava que medidas duras de isolamento e contenção de aglomerações precisavam ser tomadas e/ou mantidas no estado. E tinham sido tomadas desde os últimos 10 dias de março, quando a Prefeitura de Porto Alegre proibiu até mesmo cultos em igrejas e decretou atendimento parcial em agências bancárias, fechou shoppings, proibiu cultos religiosos e o comércio.

Porém, o segundo alerta de crescimento da UFPel não foi ouvido pelo governo estadual. Apenas 11 dias depois, em 10 de maio, o governador Eduardo Leite publicou no Diário Oficial do Estado Decreto 55.240, impondo o uso de máscaras e passando a responsabilidade para os municípios. As cores estavam instituídas, do amarelo ao preto, a indicar a necessidade de medidas mais duras ou mais flexíveis conforme a região ou município.

As medidas mais eficientes como uma retomada do isolamento social em todo o estado e o controle da mobilidade nunca vieram. Na quinta-feira (11), pressionado pelo crescimento do número de mortes repentino e pelo maior volume de ocupação de leitos por doenças pulmonares, Leite optou por mitigar erros.

Em vez de enfrentar a pressão da indústria e do comércio e continuar achatando a curva de crescimento da doença quando o pico nem ainda chegou a um platô no RS, o governo do estado quer mexer nos dados. Leite anunciou uma revisão do modelo que aplica quando deveria apoiar o isolamento social e, quem sabe até a quarentena ou lockdown.

Não há maior controle de deslocamentos. Não se fala em ampliar o número de testes, mas de dar uma leve guinada na forma como se compila dados. O “conjunto de ajustes” como o governo do estado chama leva em consideração mudanças no “ponto de corte” de sete indicadores, “alteração em indicadores” e “modificação e adoção de dois gatilhos de segurança”.

Por certo, essas modificações “científicas” podem tornar os dados e a leitura destes mais precisa e fazer a mão do operador levantar as bandeiras de forma mais rápida. Mas como é possível deter mortes e casos de covid-19 tendo uma confiança muito grande em dados que não são totalmente confiáveis? E, claro, há críticas de que os parâmetros foram cuidadosamente desenhados para que fosse mais difícil levantar as bandeiras vermelha e preta.

Faltam dados para uma política pública segura

O geógrafo e demógrafo Ricardo Dagnino, professor do Campus Litoral Norte da UFRGS, acompanha dados e atualiza o Sistema de Informações Geográficas (SIG) da UFRGS quanto ao coronavírus. Ele já diz há algum tempo que os números gerados nos municípios não são confiáveis o suficiente para servir de base ao desenho de uma política pública precisa e segura.

Na cidade em que mora, Osório, Dagnino diz acompanhar com atenção os dados. Sua tese é que, se não se controla o deslocamento, a mobilidade das pessoas, os números constroem uma realidade imprecisa. Em resumo, não se controla o coronavírus. Em Osório, conta o professor, havia até a quinta-feira (11), notícias de três mortes por covid-19.

Duas dessas mortes seriam de moradores de outras cidades. Num primeiro momento, a Secretaria Municipal de Saúde de Osório registrou esses três óbitos como de moradores da cidade. Num segundo momento, após investigações, constatou-se que dois eram moradores de Porto Alegre.

Então, o foco de contaminação pode não ser Osório, mas a capital gaúcha. Talvez por alguns dias, Osório poderia figurar como um dos locais com mortes por habitantes acima da realidade. E a política pública nesta situação pode ficar distorcida ou com eficiência reduzida. “Muita gente tem dupla residência. Ainda mais em Osório que é uma cidade perto de uma zona turística. Avisar outro município de que um morador morreu na sua cidade pode demorar muitos dias”, diz Dagnino.

Distorções podem estar ocorrendo na Serra Gaúcha

Os casos são autoexplicativos quanto à atenção que o gestor público dá ao volume de testes realizados e ao número de casos confirmados. Por exemplo, o município de Caxias do Sul tem 510.906 habitantes, segundo projeção do IBGE para 2019. Como se pode explicar que ocupe a 10ª colocação entre todos os municípios gaúchos, com 305 casos confirmados e seis óbitos?

Bento Gonçalves, com um quarto da população de Caixas do Sul, tem cerca de 120 mil habitantes e é o quarto município em número de casos no RS, com 753 confirmados e 23 óbitos. Como um município vizinho de Caixas, quatro vezes menor pode ter mais do que o dobro de casos confirmados e quase quatro vezes o número de óbitos?


Fonte: SES RS

“Estamos trabalhando com dados do passado. Essa comunicação dos casos de Osório para Porto Alegre pode levar uma semana. Como é possível que Caxias do Sul com 500 mil habitantes tenha menos casos do que Garibaldi, Farroupilha e Bento Gonçalves? Não sei exatamente. Bento tem bastante caso por que as pessoas estão doentes ou por que tem maior interesse em testar e diagnosticar?”, questiona o professor Ricardo Dagnino.

São respostas que os números não conseguem responder. Somando a população de Bento Gonçalves, Garibaldi e Farroupilha, temos 227 mil habitantes. Isso daria cerca de 54% dos moradores de Caxias do Sul. Como se explica que a soma de casos desses municípios seja cinco vezes maior (1.523) do que aqueles registrados por Caxias (305), segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde, atualizados no domingo (14)?

Definitivamente, fica difícil confiar nos números para definir cor de bandeira a ser levantada pelas mãos do governo do estado.

Avisos aos gestores públicos não faltaram

Avisos ao governo do estado e à prefeitura de Porto Alegre não faltaram sobre os riscos e efeitos da opção pelo distanciamento controlado a partir do Decreto 55.240, de 10 de maio.

Em 28 de maio, o Conselho Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul (CES/RS), instância colegiada do SUS com funções legais deliberativas, normativas e fiscalizadoras sobre a política estadual de saúde, divulgou nota em que classificava o modelo de distanciamento controlado como "ilegal e temerário".

Segundo o CES/RS, o governo do estado liberar o comércio e a indústria a voltarem à normalidade foi um ato sem “embasamentos técnicos e científicos”.

Os próprios dados da Secretaria Estadual de Saúde confirmam as preocupações. De 20 de março a 10 de abril, período do decreto de estado de calamidade do RS (veja gráfico), o RS somou 572 casos de infecção por coronavírus. Entre 10 de abril, dia do decreto que liberou restaurantes, lancherias e salões de beleza, e 10 de maio, começo do “distanciamento controlado” o número de casos aumentou em 3.335.


Fonte: SES RS

Desde que começou o distanciamento controlado até 12 de junho (33 dias), o número de casos no território gaúcho passou de 4.043 para 14.627. Ou seja, o número de casos confirmados de infecção por coronavírus cresceu em 10.584.

Não por acaso, o Brasil de Fato RS e a Rede Soberania realizaram uma live na quarta-feira (10) sob o título “Saúde e Manipulação dos Números da Covid-19”. O debate apontou questões básicas desconsideradas pelo governo do estado que agora os dados confirmam.

Basta cruzar os números com os estudos e depoimentos de especialistas para perceber que o distanciamento controlado foi mal desenhado.

A falta que os testes fazem

A ex-secretária de Saúde do Estado Sandra Fagundes defendeu durante a transmissão que os gestores públicos deveriam pensar em evitar cada uma das mortes. “Sem teste não tem como abrir. Uma coisa é a realidade do Hemisfério Norte e a outra é a daqui. Cada vez que se reduz o número de linhas de ônibus, eu ficava desesperada. Tem que ter mais ônibus para ter menos aglomeração nos ônibus”, avaliou Sandra.

O presidente do Conselho Estadual de Saúde, Claudio Augustin, na mesma transmissão ao vivo, lembrou dos casos de quarentena do Uruguai e da Argentina, do volume maior de testes e do efeito positivo que salvar vidas tem sobre a economia. “A Argentina está testando e instituindo imposto sobre grandes fortunas. E a popularidade do presidente [Alberto Fernandez] está alta. Tem saídas concretas e nós estamos discutindo sobre esconder a doença. O grave de tudo é que quem está morrendo são as pessoas de classes populares. São as mulheres, os negros, os pobres. Quem defende a vida, defende a economia”, diz Augustin.

Talvez, os Estados Unidos ainda estejam liderando o número de casos e mortes por covid-19 porque apostaram mais no número de testes, além do fator Donald Trump e suas trapalhadas políticas. Especialistas estimam que os estadunidenses realizaram cerca de 15 milhões de testes para detectar 2,08 milhões de casos até o domingo (14).

O Brasil teria feito em torno de 1 milhão de testes. Até o domingo, são 850,5 mil casos. Diz-se, de forma geral, que, para que tenhamos um número mais preciso, dependendo da região, do estado e do Município, devemos multiplicar o número de casos no Brasil por 10 a 20. São 42.720 mortes no território nacional.

Se serve de exemplo, a Argentina registrou 30.295 casos até o domingo (14) e 819 mortes. O Uruguai tem ainda menos: 847 casos e 23 mortes. Talvez passe por aí o ainda baixo volume de casos do Rio Grande do Sul na comparação com outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Amazonas e Ceará. Mas até quando?

O RS chegou a 14.627 casos. São 344 óbitos. Exatas uma semana antes, o RS tinha 286 óbitos. Em sete dias, ocorreram mais 58 casos. Quer dizer, em uma semana, o volume de casos cresceu 20,3%. Nem depois disso, as políticas públicas de contenção do novo coronavírus foram realinhadas ou mesmo redesenhadas.

O crescimento do número de mortes confirma o que a falta de testes, os avisos de autoridades em saúde, a precariedade dos dados e o fim do isolamento social expõem àqueles que colocam a economia acima das vidas. A covid-19 e o coronavírus não perdoam hesitações e covardias. A obrigação dos gestores públicos é optar pela vida.

Edição: Katia Marko