Rio Grande do Sul

Mulheres na Política

“Nós, mulheres, sempre estivemos presentes e atuantes em todos os momentos do MST”

Salete Carollo, dirigente nacional do MST, iniciou sua militância nas Comunidades Eclesiais de Base

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Quanto ao futuro pós-pandemia, Salete acredita que não seremos os mesmos: "Nossa relação com a natureza não pode mais continuar a mesma de exploração e destruição" - Foto: Guilherme Santos/Sul21

As mulheres sempre estiveram presentes nas lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). E em março deste ano, um pouco antes do início do isolamento devido à pandemia do coronavírus, realizaram o 1º Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra.

Mulheres em Luta, Semeando Resistência foi o lema. Salete Carollo, dirigente nacional do MST pelo Rio Grande do Sul, ressalta que esse lema representa a importância das mulheres na luta por terra, educação, saúde, e na conquista de seus direitos. “Nós somos fruto de uma luta. Por isso que nós temos a identidade de mulheres camponesas lutadoras”, pontua.

Nesta entrevista ao Especial Mulheres na Política, Salete nos conta sua trajetória no movimento que iniciou lá no acampamento da Fazenda Annoni. Também fala das dificuldades enfrentadas pelas mulheres e as campanhas defendidas pelo movimento. Entre elas, há mais de uma década, está o basta de violência.

“Não é somente a violência física que é o ápice, é o óbito, mas também a violência por parte do Estado. Várias formas de violência que acontecem e que nesse momento no Brasil aprofundam-se quando temos uma pessoa que dirige o país e que faz a gestão do Estado, desmontando todos aqueles pequenos direitos que nós fomos conquistando, seja no trabalho, na aposentadoria [reforma da Previdência], ou na implantação de megaprojetos como da mineração, que nos retira daquele território”, destaca.

Já quanto ao futuro, pós pandemia, acredita que não seremos os mesmos. “Pelo menos esperamos que tenhamos tido um grande aprendizado. Há necessidade de pensarmos a vida em sociedade sob novos paradigmas. Nossa relação com a natureza não pode mais continuar a mesma de exploração e destruição. A crise é sistêmica, portanto, haveremos de criar novas formas de produzir, forjar uma convivência harmônica entre todos os seres do PLANETA. Considerar a TERRA como a nossa MÃE TERRA, que não se vende, não se comercializa e sim LUGAR em QUE SE HABITA.”

Confira a íntegra da entrevista.

Brasil de Fato RS - Gostaria que tu nos falasse um pouco da tua trajetória?

Salete Carollo - Sou Salete Maria Carollo, filha de agricultores Sem Terra do Município de São Domingos do Sul (RS). Minha militância surgiu desde cedo, através da organização das Comunidades Eclesiais de Base. Minha integração ao MST ocorreu como simpatizante no Acampamento na Fazenda Annoni, no Norte do RS. Como estudante passava os finais de semana levando doações de alimentos e roupas que eram recolhidas na escola durante a semana.

Em 1992 ingressei de forma mais orgânica, atuando na secretaria da Cooperativa Central dos Assentamentos do RS (Coceargs). Logo em seguida fui acampar e hoje estou assentada no Assentamento Hugo Chávez – Lagoa do Junco – Tapes (RS), sócia da Cooperativa Agropecuária dos Assentados de Tapes (COOPAT), berço da produção de arroz orgânico e produção agroecológica. Nestes 28 anos de MST tive oportunidade de atuar em diversos setores: Projetos, Saúde, Produção, Gênero, o que me possibilitou conhecer muitos trabalhos e experiências no Brasil e no exterior. Atualmente, estou na Direção Nacional do MST pelo estado do RS.


Sua trajetória no movimento iniciou no acampamento da Fazenda Annoni / Leandro Molina

BdFRS - Como tu avalias a participação das mulheres no MST? E qual a importância da participação das mulheres nos movimentos sociais e principalmente nos movimentos camponeses?

Salete - Nós mulheres do MST sempre estivemos presentes e atuantes em todos os momentos da existência da nossa organização, inclusive em tarefas chaves que em muitas situações foram determinantes, sobretudo nos momentos de resistência aos despejos para não ocorrer conflitos mais graves. Desde os núcleos de base nossa atuação veio se fortalecendo, algumas mulheres foram se destacando em tarefas de ordem mais políticas, participando das direções, das negociações, das atividades externas/públicas.

Mas a grande maioria ficou por vários anos como lideranças cuja atuação se limitava ao espaço interno nos acampamentos e assentamentos. Importante lembrar que somos um movimento camponês/misto, daí os grandes desafios para nós mulheres na superação do Machismo, do Patriarcado e de toda forma de relações que dificultam as mulheres ocuparem espaços culturalmente determinados e designados aos homens.

O direito de inclusão do nome da mulher no Documento do INCRA – Concessão de Uso do Lote, nome da mulher no Bloco do Produtor, acesso ao crédito especifico, reconhecimento da profissão de trabalhadoras rurais, todas foram conquistas recentes e que nos exigiram muita consciência, organização e de lutas permanentes e específicas.

Neste sentido, o 8 de Março tem se transformado na mais importante jornada de luta das mulheres camponesas. Temos aprendido a importância e a necessidade desta articulação das mulheres do campo e da cidade. Destaco as campanhas que realizamos conjuntamente: Contra a reforma da Previdência, pela Democracia, contra as Violências com as Mulheres, Ele Não... Hoje nossa grande tarefa está na defesa incondicional da Democracia, da Vida... e para isso nos somamos ao #ForaBolsonaro.


"O 8 de Março tem se transformado na mais importante jornada de luta das mulheres camponesas" / Gabriel Bicho

BdFRS – A violência contra as mulheres em suas mais diversas formas, machismo e discriminação de gênero são pautas fundamentais quando falamos sobre direitos das mulheres. No MST essas situações acontecem? Como são tratadas?

Salete - É fato que a violência acontece e se reproduz em nossas áreas, territórios. Uma análise feita por profissionais de Saúde Mental nos alertam que a violência seja física, verbal ou assédios no meio rural ocorrem associada ao grau de consumo de bebidas alcóolicas e outros vícios derivados. Na sua maioria as ações são exercidas pelos homens sobre as mulheres e jovens. Já a forma de violência pela discriminação por ser mulher, sujeito LGBT ou mesmo jovem faz parte desta cultural machista, patriarcal que no caso do meio rural é mais acentuada.

O MST através do setor de Gênero vem atuando em diversas frentes: com as mulheres, com os homens e LGBTs através de abordagens diretas, muita formação e campanhas como a que estamos fazendo agora durante a pandemia: Mulheres Sem Terra, contra o vírus e as Violências. Há um resultado crescente no nível da consciência para superação deste comportamento, mesmo assim é um desafio permanente, ainda mais com ausência de políticas públicas e os desmontes de todos os programas que tínhamos conquistado nos últimos anos.

Associado a isso, o retrocesso nas políticas para a agricultura camponesa, o fim do PAA e a destruição do PNAE, crédito inadequado, coloca em risco a organização da produção, a comercialização e a renda das famílias, o que acarreta dificuldades ainda maiores para as mulheres. Neste sentido, a produção agroecológica protagonizada na sua maioria pelas mulheres tem mantido e elevado sua autoestima, gerado alimentos saudáveis que combinam satisfação e renda, relação saudável com a natureza e por sua vez novas relações humanas.


"A produção agroecológica protagonizada na sua maioria pelas mulheres tem mantido e elevado sua auto-estima" / Reprodução

BdFRS - Qual a tua análise do movimento ao longo desses anos, principais entraves, desafios, avanços e retrocessos? Em que precisamos avançar?

Salete - O MST nasce com três grandes objetivos: Lutar por Terra, Reforma Agrária e por Transformação Social. Nestes 36 anos conquistamos Terra, criando assentamentos para mais de 500 mil famílias em todo Brasil. Formando comunidades, vivendo em agrovilas, organizadas na produção, na educação, na cultura, na saúde... Atualmente temos mais de 100 mil famílias organizadas em acampamentos lutando por terra.

A pauta da Reforma Agrária tem sido descartada nos últimos anos pelos governos golpistas. Hoje com um presidente fascista e um governo genocida se torna ainda mais difícil. E este passa a ser um dos maiores entraves para avançar em qualquer proposta em que tenha sua centralidade a superação da desigualdade e justiça social no campo. Para tanto precisamos avançar na construção de alternativas antifascistas, com organização e força popular para derrubar este energúmeno que ali está. Precisamos mais do que nunca articular nossas bandeiras de luta, buscar a unidade em torno de um projeto popular para nosso país.


Salete em 2019 no evento de aniversário de um ano do Brasil de Fato RS durante a Feicoop, em Santa Maria (RS) / Marcos Corbari

BdFRS - Que impactos a pandemia trouxe para os sem terra? Nos fale das ações de solidariedade que o movimento vem protagonizando em todo o país.

Salete - Sabemos que a origem desta pandemia é parte da crise estrutural do capitalismo no que diz respeito ao tema ambiental. A decorrência do acirramento do capital sobre a natureza será uma constante, epidemias, pandemias, secas, furacões, enchentes, etc. Portanto, a prioridade é o cuidado com a vida, não podemos nos descuidar, o sistema público de saúde está dando sinais de colapso. “Sair vivo”, mais uma vez é a nossa condição, se cuidar e resistir.

Nossos assentamentos são espaços bem melhores do que grande parte das condições de vida da classe trabalhadora, visto o distanciamento, alimentação, moradia e a pertença a uma organização social que garante o acesso à informação e a luta por direitos. Ao mesmo tempo, orientamos nossa base e nos organizamos para acessar e cobrar as políticas públicas.

A dimensão da Solidariedade tem sido uma prática permanente, seja nos nossos assentamentos, com os aliados, e com a população em geral. Concebemos/entendemos solidariedade como: defesa incondicional da vida do povo, da classe trabalhadora, da força de trabalho mais explorada, que reúne a crise da fome e da pandemia.

Nossa tarefa é mais do que entregar comida, é estabelecer um vínculo com as dores das pessoas, e desse laço semear a necessidade da organização popular. Solidários porque indignados com as injustiças. Porque partilhamos o pão, a inteligência, a força e a habilidade em dialogar com a classe explorada. Porque nos metemos em organizações coletivas, na conspiração e arriscamos nossas próprias vidas, para reestabelecer uma ponte com o povo voltada para a construção de outra sociedade que possa repartir o pão, o poder, a beleza e a equidade.

Solidariedade como uma postura que subverte a lógica do mercado, uma atitude que subverte a lógica intencional da violência, como um vigoroso protesto contra o descaso, contra o extermínio dos pobres. A Solidariedade é profundamente humana e política, é geradora de confiança, de reconhecimento, ela inspira a reciprocidade, a alteridade. Porque essa prática se baseia e se nutre na causa da justiça e da esperança concreta em um projeto popular de país.

Mas devemos ter toda a atenção aos cuidados com a saúde da militância e de todas as pessoas envolvidas e seguir os protocolos de segurança. As próximas semanas serão dramáticas e a pandemia já está se interiorizando com muita rapidez.


"A dimensão da Solidariedade tem sido uma prática permanente, seja nos nossos assentamentos, com os aliados, e com a população em geral" / Gabriel Bicho

BdFRS - Que sociedade tu desejas pós-pandemia?

Salete - Acredito que pós pandemia não seremos os mesmos... Pelo menos esperamos que tenhamos tido um grande aprendizado. Há necessidade de pensarmos a vida em sociedade sob novos paradigmas. Nossa relação com a natureza não pode mais continuar a mesma de exploração e destruição. A crise é sistêmica, portanto, haveremos de criar novas formas de produzir, forjar uma convivência harmônica entre todos os seres do PLANETA. Considerar a TERRA como a nossa MÃE TERRA, que não se vende, não se comercializa e sim LUGAR em QUE SE HABITA.

 

Edição: Katia Marko