Rio Grande do Sul

Ensino

Alunos carentes e sem acesso à internet são excluídos de aula em Porto alegre

Aplicativo criado pelo governo Marchezan desconsidera realidade dos alunos,

Sul 21 | Porto Alegre |
Sem saber quando voltarão as aulas presenciais, educadores reclamam que a Prefeitura ficou meses sem apresentar um plano de educação durante a pandemia - Guilherme Santos/Sul21

A diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) José Loureiro da Silva reconhece o desconforto por ter sido informada, via imprensa, da implementação do aplicativo Córtex na rede pública de ensino. A plataforma foi lançada pelo Prefeito Nelson Marchezan Júnior  (PSDB) durante transmissão pelo Facebook, no dia 2 de junho, acompanhado do secretário municipal de Educação, Adriano Naves de Brito. Antes disso, ao longo de todo o mês de abril e maio, a diretora Vivian Nakata já pedia orientação sobre como a escola deveria agir durante a paralisação causada pelo novo coronavírus. Os pedidos, todavia, foram em vão.

Compreensiva, a diretora diz que, durante um tempo, até entendia a dificuldade da Secretaria Municipal de Educação (SMED) em dar respostas diante da situação inédita causada pela doença. Enquanto isso, a escola por ela dirigida tratou de manter contato com a comunidade escolar da forma que foi possível, por rede social e por meio de ações de solidariedade.

Quando Marchezan anunciou o lançamento do aplicativo, depois de dois meses da Prefeitura não abordar o tema com as escolas, veio a decepção. Vivian diz que gostaria de ter feito parte das discussões que definiram o modo como a escola atuará durante a pandemia. O sentimento, diz ela, é generalizado entre os diretores das 58 escolas municipais. “Poderíamos ter contribuído, mas fomos pegos de sobreaviso, com essa plataforma privada”, lamenta a diretora. “Não quero diálogo à posteriori, depois que as coisas já foram feitas. Não existe essa interlocução da Prefeitura com o ‘pé da fábrica’, como digo. A gente quer fazer parte. Eles dizem que dialogam, mas é depois, antes o que fazem é só comunicar”, afirma.

A diretora da EMEF José Loureiro da Silva destaca conhecer a comunidade onde a escola está inserida. Por isso, não vê com bons olhos o modelo de ensino à distância que exige acesso à internet e a posse de computador ou telefone celular de famílias muitas vezes carentes em necessidades básicas. Durante os meses de paralisação, conta Vivian, as famílias dos alunos estão mais preocupadas em ter o que comer do que com os estudos dos filhos.

A EMEF José Loureiro da Silva tem cerca de mil alunos e, destes, apenas 200 solicitaram à escola o acesso ao aplicativo, uma adesão de somente 20%. O problema foi contado à Secretaria Municipal de Educação (SMED) em reuniões realizadas em junho. Há relatos de celulares que simplesmente não comportam o aplicativo Córtex. Segundo Vivian, a Prefeitura tem adotado uma postura irredutível no que se refere ao uso da plataforma, e diz que é preciso “dar um jeito”, como entregar os livros e atividades ou chamar os alunos para irem na escola e se cadastrar no aplicativo. A rede de internet wi-fi na escola dirigida por Vivian, só alcança a área administrativa. 

“Temos várias realidades na rede pública municipal, cada escola tem a sua. Isso tudo serviu para botar na janela as desigualdades com a escola pública. Está na hora do poder público olhar para quais são as necessidades do povo. Tem gente que não tem nem saneamento básico”, afirma a diretora da EMEF José Loureiro da Silva.

Vivian Nakata também não compreende a orientação da Prefeitura para que os alunos marquem horário na escola para baixar o aplicativo, visto que o contágio pelo coronavírus tem aumentado na cidade. O crescimento de novos casos e de mortes levou o Prefeito Marchezan, inclusive, a retomar medidas mais duras de restrição da atividade econômica. “Não consigo perceber a entrega física de material nesse momento da pandemia, não queremos gerar aglomeração na escola.”

O uso de dados da internet é outro problema. No lançamento do aplicativo, Marchezan anunciou que a Prefeitura iria subsidiar o uso dos alunos. A medida entraria em vigor dia 15 de junho. A partir dessa data, as escolas começaram a estimular os estudantes a se conectar e usar o aplicativo. Porém, logo depois veio a informação de que o subsídio passaria a valer dia 29. Na última sexta-feira (26), em reunião com os diretores das escolas, o secretário municipal de Educação, Adriano Naves de Brito, disse não garantir a validade da medida a partir desta segunda-feira (29).

Com isso, os alunos que já usaram o aplicativo acabaram pagando os dados de conexão sem saber. Com a incerteza da Prefeitura de quando irá vigorar o subsídio dos dados de internet, a diretora da EMEF José Loureiro da Silva agora temer haver prejuízo financeiro das famílias. “Não quero colocar os alunos em risco.”

Para todos

Maria José da Silva, a Zezeh, diretora-geral da Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa), diz não ter informações precisas sobre quantos alunos estão usando o aplicativo Córtex, pois a plataforma é privada e a Associação não tem acesso aos dados. O fato da Procempa ter sido deixada de fora no desenvolvimento do aplicativo também causa desconforto.

Acima de tudo, diz Zezeh, é fundamental garantir o acesso de todos os alunos aos estudos. “Temos que partir do princípio de garantir acesso universal à educação, que todos os alunos tenham oportunidade de acessar o conteúdo da escola”, afirma. Ela destaca que os professores não são contra inovações tecnológicas, o problema é a ruptura no acesso à educação. E a falta de diálogo com a gestão do prefeito Marchezan.

A diretora da Atempa reforça a ausência de um plano de educação durante a pandemia até o dia que o governo apresentou o aplicativo, sem nenhum debate prévio com os profissionais da rede de ensino. “Essa alternativa acirra a diferença, a distância no acesso à educação. Tem aluno nosso que não tem água encanada”, pondera.

A alternativa apresentada pela Prefeitura para aqueles alunos que não conseguem usar o aplicativo também não é bem aceita por ela. Indignada, Zezeh diz ser contraditório sugerir plantões nas escolas para entrega de material ao mesmo tempo em que o governo fecha o comércio devido ao aumento das contaminações pelo coronavírus.

“Como se sugere plantão se estamos para controlar a epidemia? Ele está dizendo para a comunidade ir à escola. É muita contradição. Então são questões eleitoreiras, pra dizer que a gestão usa a ferramenta”, critica a diretora-geral da Associação dos Trabalhadores em Educação do Município de Porto Alegre (Atempa). “Pra nós, é um momento muito difícil. É um momento sem diálogo com o prefeito e com o secretário. Fica difícil entender o interesse do prefeito com a educação da cidade”, lamenta Zezeh.

Outro lado

Em nota, a Secretaria Municipal de Educação (SMED) reconhece que, desde a suspensão das atividades presenciais nas escolas da rede municipal, as instituições de ensino vinham desenvolvendo atividades de forma independente.

Sobre o lançamento do aplicativo Córtex, a SMED diz que a plataforma já existia, sendo usada por algumas escolas da rede municipal de ensino e, portanto, não houve “elaboração” da ferramenta. “Foram feitos ajustes levando em conta as particularidades da rede municipal e também a situação criada pela pandemia”, explica a Secretaria.

“A parceria com a plataforma Cortex foi anunciada em 2 de junho, quando começaram as ações de formação junto aos diretores e supervisores de todas as 58 escolas envolvidas (52 municipais de ensino fundamental, incluindo as especiais, e duas comunitárias de educação básica)”, diz trecho da nota.

A Secretaria Municipal de Educação (SMED) não informou quantas, dentre as 58 escolas municipais, já usavam o aplicativo. Sobre o acesso à internet, a Prefeitura reafirma que pagará as empresas de telefonia pelo tráfego de dados na ferramenta. “As turmas que tiverem baixa adesão terão de repor as aulas presencialmente. Quando os pacotes de dados estiverem disponíveis, a prefeitura irá informar a população”, afirma a SMED.     

Edição: Sul 21