Rio Grande do Sul

Opinião

Artigo | Sobre Sinhás

Uma sociedade que não consegue olhar para trás e recuperar aquilo que foi destroçado só pode terminar como catástrofe

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A cruel situação na qual essa grande massa de brasileiros e brasileiras está imersa em meio a pandemia é simplesmente ignorada pelo poder público - Rovena Rosa/Agência Brasil

Escrevo a partir do sul do Rio Grande do Sul, mais especificamente da Campanha Gaúcha, fronteira com o Uruguai, um chão marcado pelas opressões de raça, classe e gênero. Faz frio, muito frio…  O número de pessoas em situação de vulnerabilidade vivendo nas ruas não para de aumentar, algo que não víamos há alguns anos, sendo visível o aumento dessa população nos últimos três anos. Sabe-se que em grandes centros urbanos, como São Paulo, a população de moradores de rua cresceu 53% em quatro anos, chegando a 24 mil pessoas.

O governo do prefeito de São Paulo, Bruno Covas (PSDB), reconhece que há aproximadamente 24.344 pessoas em situação de rua na capital paulista. O último censo foi realizado em 2016 e constatou que haviam 16 mil pessoas nas ruas da cidade. No entanto, coordenadores de organizações que trabalham com a população de rua avaliam que o número está fora da realidade e que isso pode prejudicar o desenvolvimento das políticas públicas para atendimento assistencial, de saúde ou de trabalho. Para o coordenador da Pastoral do Povo da Rua de São Paulo, padre Júlio Lancellotti, o número de levantado de pessoas vivendo nas ruas “não é realista. Muitas pessoas não foram cobertas por que não deixou de realizar ações de ‘rapa’, expulsando as pessoas dos locais antes dos recenseadores passarem. Os serviços já estão sucateados e esse número subestimado vai piorar ainda mais a situação. Logo não vai ter alimentação suficiente nos centros de acolhida, por exemplo, porque a estimativa de atendimento vai estar sempre fora da realidade”, afirma

Uma situação já grave antes da pandemia do coronavírus se torna absolutamente cruel no momento em que a covid ‘empurra’ desempregados para ruas e abrigos. Depois de cinco meses de trabalho sem registro na carteira profissional em uma metalúrgica em Guarulhos, na Grande São Paulo, Diego Souza recebeu a notícia que mais temia no começo da pandemia: a empresa ia demiti-lo. Logo depois, outra má notícia: por atrasar em um mês o aluguel de R$ 500, a proprietária pediu as chaves do quarto onde morava. Sem emprego e sem teto, o torneiro mecânico de 33 anos pensou, em abril, que teria mais chances na capital. Nada melhorou. Ele chegou a viver seis dias na Praça da República, no centro, dormindo sob a marquise do Cine Marabá. Ainda está sem trabalho, mas conseguiu uma vaga para dormir no Centro Temporário de Acolhimento Alcântara Machado, na zona leste.

A cruel situação na qual essa grande massa de brasileiros e brasileiras está imersa em meio a pandemia é simplesmente ignorada pelo poder público que age de maneira irresponsável com relação aos considerados pelo sistema capitalista como improdutivos enquanto lança mão de todos os esforços e recursos para resguardar e proteger os lucros dos bancos e grandes empresas. Tal descalabro da gestão pública ocorre sob a indiferença de uma elite historicamente arrogante, colonialista e escravocrata.

Em artigo publicado no site El País, em 02/07/2020, o filósofo Vladimir Safatle nos diz que “para uma sociedade como a brasileira, fundada no binômio genocídio/esquecimento, sociedade construída sobre os escombros do genocídio indígena e negro, lembrar da força política do luto é uma operação decisiva. Nós fomos formados a partir da fantasia originária da ‘tabula rasa’”. Aqui, não haveria povos com grandes estruturas estatais, como os maias, astecas e incas. Toda tomada de posse seria processo civilizatório tendo em vista retirar essa terra de seus arcaísmos, o arcaísmo das sociedades sem Estado. Por isto, o genocídio indígena não seria genocídio algum, apenas a marcha violenta, porém necessária, do desenvolvimento histórico. No Brasil, “desenvolvimento” significa uma forma de “desaparecimento”, de apagamento. Uma sociedade que começa desta forma sem nunca conseguir olhar para trás e recuperar aquilo que foi destroçado, só pode terminar como catástrofe.

Para Safatle essa indiferença bruta do esquecimento é um verdadeiro projeto de governo. Governar é gerir circuitos de afetos. Só assim é possível definir o que é visível e invisível, sensível e insensível, perceptível e imperceptível. E controlar os regimes de sensibilidade, de visibilidade e percepção é controlar o fundamento daquilo que pode afetar a vida social. É definir a velocidade das urgências, a determinação do tolerável, estabelecer quais conflitos deverão ser reconhecidos e quais não deverão. Neste sentido, este cozinhar os afetos sociais no fogo brando da indiferença é a base de toda uma engenharia social. E não há fundamento mais forte da produção da indiferença do que a indiferença à morte. Lembremos das condições libidinais para que a tese da banalização do mal pudesse funcionar. Era necessário que os carrascos nazistas fossem capazes de naturalizar a desafecção. Só assim o assassinato em massa poderia se transformar em um problema de logística. Só assim ele poderia se tornar um problema de como os trens chegarão aos fornos, em quanto tempo, com quanto custo, estejam eles transportando pessoas a serem eliminadas ou mercadorias a serem entregues.

A banalização do mal citada por Vladimir Safatle e cunhada por Hannah Arendt pode ser exemplificada pelas Sinhás, como Sari Corte Real, Bia Dória, Val Marchiori e Luciana Tomasi. Vamos aos fatos: Sarí Gaspar Corte Real não responde automaticamente por ter deixado que a porta do elevador do edifício em que mora, no Recife, se fechasse com o menino Miguel Otávio Santana da Silva, filho de sua empregada doméstica, dentro. Afinal, não existe responsabilidade objetiva em Direito Penal. E Sarí não pode ser responsabilizada pela morte do garoto após queda do nono andar, pois não agiu com dolo nem culpa . Bia Dória, a primeira-dama de São Paulo, afirmou em conversa com Val Marchiori, que "a pessoa tem que se conscientizar de que ela tem que sair da rua" e muitos não querem assumir "responsabilidades".

Luciana Tomasi, cineasta gaúcha, em uma "live" produzida pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos (APTC-RS), na última sexta-feira (3/7), gerou polêmica nas redes sociais e chacoalhou a comunidade cultural do Rio Grande do Sul, após as declarações racistas e preconceituosas. Ela é atriz e produtora, esposa de Carlos Gerbase, diretor do filme gaúcho Inverno (1983), longa-metragem que estava sendo discutido em uma transmissão ao vivo pela internet. Luciana quando questionada sobre as influências estéticas de Inverno, que lembravam o cinema francês, citou os sobrenomes dos profissionais como justificativa. "Tu tá falando com um Schünemann, com uma Tomasi, uma Adami, um Gerbase... Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende? Não seria o nosso melhor. Então cada um tem que mostrar o que curtia e como é que veio. Então eu acho que eu tava totalmente ambientada. Inclusive eu tenho sangue francês também, não adianta, então cada um faz da sua história. É um filme roots, total", disse atriz. 

O que essas quatro mulheres têm em comum? São Brancas, aristocratas, ostentam sobrenomes de linhagem europeia e um total desprezo por pobres. São as sinhás contemporâneas. Essas mulheres, a partir de suas futilidades e discursos preconceituosos, auxiliam seus pares na sustentação as estruturas racistas que permite no poder um genocida como Jair Bolsonaro, provendo uma limpeza étnica com o objetivo de varrer da Amazônia os povos das florestas, das calçadas os moradores de rua e finalmente finalizar a proposta eugenista iniciada no pós-abolição e fazer do Brasil um país de “Schünemann, com uma Tomasi, uma Adami, um Gerbase...”.

Safatle demonstra preocupação em lembrar do passado genocida brasileiro e expor a indiferença frente ao genocídio em curso. Acredita que recordar isto é necessário porque o verdadeiro projeto político com força transformadora, aquilo que deveria nos unir, é a luta por uma mutação de afetos que passe pela compreensão da desafeição como base de nossa verdadeira miséria. Temos, até o momento, mais de 65 mil pessoas mortas pela pandemia, isto se acreditarmos em números subnotificados. Mas o principal esforço até agora não consistiu em mobilizar os esforços e riquezas do país para evitar as mortes. O principal esforço consistiu em banalizá-las. Afinal, não é verdade que morre todo o ano mais de 60.000 pessoas por violência neste país? Qual a razão então para todo esse alarmismo? Como se os números da violência não fossem por si alarmantes, nos provocando indignação a todo momento. Números estes, diga-se de passagem, que descrevem, principalmente, a violência policial: peça maior da gestão social desse país.

* Michele Corrêa é feminista negra, graduanda em Filosofia na UFPel, assessora da Pastoral da Juventude (PJ) e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

Edição: Marcelo Ferreira