Rio Grande do Sul

RESISTÊNCIA

União de Vilas desperta o poder popular para encarar o coronavírus na periferia

Comunidades de Porto Alegre fazem mutirões, distribuem refeições e reavivam o protagonismo do movimento comunitário

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em meio à pandemia, organização leva dignidade e conscientização reconstruindo laços de solidariedade e cidadania - Divulgação

O coronavírus chegou ao Brasil de avião, trazido pelos viajantes retornados do exterior e atacou primeiramente as chamadas “áreas nobres” das grandes cidades, infectando a alta classe média. Num segundo momento, porém, deslocou-se para os subúrbios, onde as condições de isolamento são precárias, a proteção menor e os moradores precisam, todos os dias, sair para trabalhar. Hoje, a maioria das vítimas vêm dos bairros pobres. Diante do perigo e da omissão dos governos, a periferia decidiu ajudar a si mesma. É o que a União das Vilas da Cruzeiro está fazendo em Porto Alegre.

Na capital gaúcha, o avanço na periferia está comprovado na mudança do perfil de hospitais com casos graves internados em UTIs. Inicialmente, a maioria deles se concentrava em hospitais particulares como o Moinhos de Vento e o Mãe de Deus. Passados três meses, julho adentro, quase metade dos pacientes graves em UTIs estão no Hospital de Clínicas e no Conceição, instituições públicas de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) que atendem a capital e outras regiões do estado.

Auto-organização para combater a fome


Imagem aérea de parte da Grande Cruzeiro, na Zona Sul de Porto Alegre / Foto: Luciano Lanes/PMPA

Quando a prefeitura lançou o mapa online, que registra o número de pacientes infectados por regiões e territórios de saúde, em 22 de maio, os três bairros com maior número de contaminados eram de classe alta: Petrópolis, com 43 casos, em seguida Bela Vista, com 38 e Rio Branco, com 29. Atualmente, Petrópolis segue liderando, com 144 casos, seguido por dois dos maiores bairros periféricos da cidade: Sarandi, com 129 casos, e Lomba do Pinheiro, com 110.

Com políticas públicas insuficientes para garantir o isolamento social da população, que vê sua renda minguando em meio à crise e ao alto desemprego, e com um auxílio emergencial que se não fosse através da pressão teria sido ainda mais baixo, as comunidades resistem a partir da auto-organização para combater a fome e a contaminação da covid-19. Dessa realidade desafiadora, como muitas vezes já fez o povo brasileiro excluído das instâncias de poder, fortificam-se a resistência e a solidariedade.

Refeições, cestas e informação


Contra a fome, centenas de marmitas são distribuídas semanalmente nas vilas da Grande Cruzeiro / Divulgação

Uma dessas experiências é o trabalho realizado pela União de Vilas da Cruzeiro, entidade que atualmente congrega 36 comunidades da Grande Cruzeiro, na zona sul de Porto Alegre, além de outros 10 núcleos em organização.

Desde o início da pandemia, o movimento comunitário tem feito aquilo que a prefeitura e os governos estadual e federal têm dificuldades de fazer: entender a realidade das famílias vulneráveis e pensar estratégias a partir daí, com protagonismo dos envolvidos. A organização está distribuindo refeições, cestas básicas, produtos de higiene, levando informação de como se proteger da covid, revitalizando espaços públicos, organizando protestos contra o fechamento de unidades de saúde e escolas, entre outras ações potencializadas pelo trabalho voluntário e uma rede de parcerias.

Marmitas educativas

“Estamos num momento de criação e expansão do movimento comunitário. Retomamos a União de Vilas, que é uma federação das associações dos moradores que existia ali há muitos anos, através de construção de assembleias de moradores e construção de referência dessas assembleias para se juntarem nessa federação com outras lideranças que já estavam na ativa”, explica uma de suas lideranças, Ronaldo Souza.

“Contraditoriamente, é uma coisa que está acontecendo, uma situação de aumento de diversos problemas como a fome crescendo, pessoas nas ruas, famílias inteiras morando nas ruas, em casebres, aumento da violência”, observa. “Tem toda essa problemática, mas a organização, em função dessa crise, ela também está crescendo”, comenta.


Junto das marmitas são distribuídos materiais informativos de prevenção à covid-19 / Divulgação

O esforço do movimento comunitário na Grande Cruzeiro consiste em agrupar lideranças a partir de ações de solidariedade. Iniciou com o fortalecimento de núcleos e referências comunitárias nas vilas, a partir de 2018, com a inserção da Brigada do Congresso do Povo, iniciativa fomentada por movimentos sociais para potencializar ações de base em territórios periféricos. Depois, em plena pandemia, conforme relata Ronaldo Souza, “passou a um momento de solidificação, com construção de tarefas coletivas, como as Marmitas Educativas, que é a distribuição de marmita com material informativo, panfletos, e também com máscaras, sabão e álcool gel, para trabalhar na comunidade a educação sobre a questão do vírus”.

Recuperação de áreas de lazer

Também são realizados mutirões de limpeza de mato, limpeza de lixo e revitalização de espaços coletivos. “É a reconstrução da dignidade dos espaços de convivência, áreas de lazer, reconstrução do espaço geográfico, ressignificação dele a partir desses grupos organizados”, diz. Nessas ações, núcleos nascentes passaram a se organizar, enfrentando a ameaça do coronavírus, sempre com o máximo de proteção. “Temos observado o crescimento do vírus na região, isso é bem forte. Ao mesmo tempo, estamos trabalhando muito com a questão educativa, comunicação, utilizando carro de som, redes sociais, para trabalharmos isso e identificando casos”, aponta o líder comunitário.


Limpeza e revitalização de espaços coletivos traz dignidade / Divulgação

Luana Corrêa de Farias é liderança na vila Pedreira há dois anos. Segundo ela, a realidade da comunidade “é de recicladores, menores sem nenhuma atividade, sendo levados ao caminho errado, com pessoas vivendo na miséria”. Além da fome, com famílias grandes dividindo pequenos espaços e saneamento básico insuficiente, ela destaca que não é possível ter todos os cuidados e medidas de isolamento para combater a covid-19.

Entendendo os seus direitos

“Juntamente com a União de Vilas, estamos fazendo um trabalho de conscientização na comunidade. Estamos distribuindo um informativo educacional junto de produtos de higienização, máscaras e marmitas solidárias”, conta Luana. Ela nota que a Pedreira integrou a União no início do ano, quando então o núcleo comunitário voltou à ativa. “Aprendemos a trabalhar com cada um nas suas dificuldades, sendo tanto no alimento quanto na infraestrutura e acolhimento aos moradores. Somente com a União de Vilas isto está sendo possível”, afirma.

Na sua avaliação, o movimento comunitário é a chave para a cidadania, já que realiza um trabalho de base entre os seus e promove consciência coletiva. “Penso que o povo tem que entender seus direitos, porque muitos não sabem, por isso que deixamos os governantes fazerem o que querem.”

“A Fome Tem Pressa”

Desde abril, pelo menos uma vez por semana, com apoio do projeto A Fome Tem Pressa, a União de Vilas está distribuindo refeições em diversas comunidades da Grande Cruzeiro. É a Marmita Educativa. Uma delas aconteceu na Vila Barracão onde, no dia 14 de junho, o núcleo comunitário local, junto da União, distribuiu cerca de 100 marmitas e realizou a limpeza na praça local. No mesmo dia, na Vila União, os moradores se organizaram para roçar o mato do acesso à comunidade. Também houve mutirão de limpeza no campinho, na parte de cima da vila. Que ganhou bancos e avisos sobre os cuidados com o lixo. Ao fim da ação, foram entregues as marmitas.

Outra vila que recebeu a Marmita Educativa foi a Mulheres de Anita. Ocorreu no dia 27 de junho, com a distribuição de 200 marmitas e muito diálogo com os moradores a respeito dos cuidados frente à pandemia e também sobre seus direitos e a importância da união popular.

“Pobre tem direito de morar na avenida também”


Núcleo reunido na Vila Mulheres de Anita / Divulgação

Conforme a liderança local, Rosaura Duarte, a comunidade tem uma história de 16 anos. Formou-se quando dez famílias ocuparam uma área ao lado do Arroio Cavalhada, na Avenida Campos Velho. “Quando viemos pra cá, a gente viu a possibilidade de ficar com essa área porque pobre tem direito de morar em avenida também, e começamos a botar mais pessoas. Hoje somos 60 famílias, duzentas e poucas pessoas”, relata. Graças à organização, hoje a comunidade tem uma cooperativa habitacional e luta para regularizar as moradias.

Rogério Dalo, secretário da Confederação Latino-americana de Cooperativas e Mutuais de Trabalhadores (COLACOT) e membro da articulação A Fome Tem Pressa, explica que o projeto nasceu logo após o golpe que retirou Dilma Rousseff da presidência, em 2016. Foi quando “começou a agudização da exclusão pela retração dos projetos sociais e de distribuição de renda e foi aparecendo aquilo que não se via, gente faminta nas ruas”. A partir da articulação de voluntários oriundos dos movimentos populares, sindical e político-partidário, iniciou-se a estratégia de distribuição de alimentos.

“Para a fome não tem que discutir”

Atualmente, a iniciativa está articulada em Porto Alegre, Viamão, Gravataí e Guaíba, onde já distribuiu mais de duas mil cestas básicas, além de agasalhos e marmitas. Os alimentos são adquiridos da cadeia de economia solidária e agroecológica ligada à Rede Ecofort, através de uma parceria com a Fundação Banco do Brasil, e outras entidades. A União de Vilas foi uma das 11 organizações beneficiárias do projeto, que ficou responsável pela organização na região da Grande Cruzeiro.

“Estamos atacando as consequências do problema. Ao mesmo tempo em que fazemos essa ação concreta, nosso trabalho é uma denúncia permanente da falta de políticas públicas e de estado”, afirma Dalo. “É inaceitável no século 21 ter pessoas passando fome. Pobreza e miséria têm causas estruturais, mas para a fome tem que dar comida, não tem que discutir.”

A União de Vilas foi fundada em 1979. Uma liderança histórica e inspiração para o atual grupo que ocupa a coordenação é o “Seu Ézio”, hoje com 79 anos. Ex-coordenador da União de Vilas, ele saúda a juventude retomando a frente do movimento comunitário. “Estou agora aposentado, mas no que puder ajudar eu ajudo. Aqui no Barracão, especialmente, fui um dos que levantou a bandeira de que aqui teria que ser ocupada essa terra, que estava desocupada”, relembra.

“O poder público não olha por ninguém”

Em 2010, como recorda Orlei Maria da Silveira, hoje com 60 anos e liderança da União Santa Teresa, a organização comunitária conquistou uma importante vitória na região da Cruzeiro. “Nessa época, a governadora Yeda Crusius enviou para a Assembleia Legislativa um projeto de lei para vender o Morro Santa Teresa, de portas fechadas, com quatro comunidades em cima. Isso provocou uma reação por parte daqueles que não concordavam. Na época, as comunidades não tinham sequer documentação da sua existência”, conta.

Segundo ela, foi quando apareceram os apoiadores para dar suporte e fazer com que as comunidades existissem. “Entraram vários atores nesta luta, um muito importante foi o MST, com sua estratégia de movimento, também o IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil), o PT, o Senge (Sindicato dos Engenheiros/RS), as ONGs, estudantes do Direito da UFRGS e tantas outras siglas. Assessorados por essa gama de movimentos, tivemos coragem de enfrentar um poder que não vê nas comunidades seres com importância grande no meio público.”

Mas as dificuldades ainda são muitas, assegura. “O poder público continua não olhando por ninguém, somos nós junto com alguns apoiadores que nos ajudam para fazer com que milhares de famílias carentes de tudo não passem fome”.

Tomando sua história de vida como exemplo, ela reconhece o valor do movimento comunitário, “visto que fui uma pessoa que até aquele momento não sabia que tinha tanto essa vontade de lutar por aquilo que acredito. Aprendi muito e continuo aprendendo agora”, afirma, lamentando, porém, que atualmente as coisas “deram uma parada”. Acredita que “o povo perdeu um pouco o interesse por lutas com essa conjuntura que vive o país”.

Saúde desmontada e guerra de territórios


Moradores protestam contra fechamento de posto de saúde / Divulgação

Em 20 de junho, apesar do agravamento da pandemia no Rio Grande do Sul, a prefeitura fechou a Unidade de Saúde Tronco, não sem enfrentar protestos dos moradores, articulados pela União de Vilas. “A saúde está sendo desmontada. Já são três postos dentro da Cruzeiro fechados. Tudo está sendo acumulado no Postão da Cruzeiro, que é uma unidade de pronto atendimento, com seis equipes profissionais completas, mas que está completamente esgoelado, lotado de casos de pessoas com doenças respiratórias graves, que não sabemos se é covid porque não tem nenhum teste”, denuncia Ronaldo Souza, que também é do Conselho Distrital de Saúde da região.

De acordo com o líder comunitário, ao fechar unidades de saúde, a prefeitura desconsidera a realidade de quem vive na periferia, já que a questão territorial é muito forte. “Um dos elementos centrais do desmanche é que, das pessoas que consultam em determinado posto, uma grande parte tem dificuldade de se deslocar para o Postão por causa da guerra de territórios”, acentua. E prossegue: “Mesmo que tu não estejas envolvido nas brigas e na questão das ‘bocas’, a pessoa sendo do território X não pode ir no território A”. Fora a questão do deslocamento dos idosos e o tratamento de doenças crônicas, realizado pelas equipes do programa Saúde da Família, “que estão sendo desmanteladas, estão só fazendo esse atendimento de emergência no Postão”.

Outros problemas enfrentados pelos moradores da Grande Cruzeiro, comuns a outros bairros da capital, é a supressão de linhas de ônibus, a demissão dos funcionários das creches, o fechamento dos Centros de Referência em Assistência Social, constantes faltas d’água e asfalto esburacado.

“Por último, tem aquela obra inacabada da Copa que cria um ambiente de guerra, é caos total”, recorda Souza. Segundo ele, lutar para melhorar a situação de quem vive excluído das prioridades políticas é o que motiva o movimento comunitário. “O que estamos fazendo é construção dessa teia social, laços de solidariedade para que acumulemos força para, no futuro, poder fazer lutas coletivas no território todo”.

Edição: Ayrton Centeno