Rio Grande do Sul

Cinema

O racismo e o cinema gaúcho: ‘Essa ingenuidade da branquitude é que nos mata’

“A cultura oficial gaúcha tenta apagar os símbolos indígenas e negros", afirma Mariani

Sul 21 | Porto Alegre |
Cena do filme “O Caso do Homem Errado”, um dos cinco longa-metragens dirigidos por pessoas negras do RS - Divulgação

“Em toda a história do Rio Grande do Sul, apenas cinco longas foram dirigidos por pessoas negras: Um é Pouco, Dois é Bom (1970), de Odilon Lopez, O Porto dos Mortos (2012), de Davi de Oliveira Pinheiro, Central — O Filme (Documentário 2016), de Renato Dornelles, De Boca em Boca (2016), de Wagner Abreu, e O Caso do Homem Errado (2017), de Camila de Moraes. Dos cinco apenas um recebeu financiamento público. Para fazer seu filme, o único longa da carreira, Odilon vendeu seu apartamento. Já Camila contou com uma rede de apoio de financiadores da própria comunidade negra de Porto Alegre, que se mobilizou para ver narrada a história do assassinato covarde do operário Júlio César de Melo Pinto. Davi custeou sua obra com empréstimos e auto-financiamento e Wagner produziu sua obra de forma totalmente independente desde as filmagens até a edição.”

O parágrafo acima é um trecho do manifesto do coletivo Macumba Lab, criado em 2018 após a edição do Festival de Gramado. Naquele ano, o festival, um dos mais importantes do Brasil, foi marcado por protestos pela falta de representação feminina entre os vencedores do cobiçado Kikito. O recorte de gênero, entretanto, precisa ser pensando também a partir de outros atravessamentos. 

“Ao se preocuparem apenas com isso, as mulheres brancas que protestaram seguiram uma lógica semelhante à da história do movimento sufragista nos Estados Unidos, que é muito bem relatado no livro Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis. É acreditar que ser uma mulher branca garante menos privilégios que ser um homem negro, por exemplo”, explica Marina Kerber, artista visual, animadora, diretora e diretora de arte. Ela cita um trecho do livro de Angela Davis para fundamentar o pensamento: “Não eram os direitos das mulheres ou a igualdade política das mulheres que tinham de ser preservados a qualquer custo, e sim a superioridade racial reinante da população branca”.

Como um coletivo de profissionais negros e negras do audiovisual no Rio Grande do Sul, o Macumba Lab pretende ser uma rede de apoio, uma ferramenta para dar visibilidade e acesso ao mercado, com laboratórios de formação para pessoas negras e capaz de democratizar o acesso às técnicas do cinema. “O coletivo também se propõe a questionar e repensar a imagem hegemônica do cinema gaúcho, que é visto como um meio composto apenas de pessoas brancas, descendentes de europeus e que tem como estação do ano principal o inverno”, afirma Marina.

A estação do ano é o título do filme de 1983, uma produção super-8 do cinema gaúcho que foi objeto de debate promovido pela Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS) na sexta-feira passada (3). A live com a presença de Carlos Gerbase, Giba Assis Brasil, Luciene Adami e Mariani Ferreira, mediada por Giordano Gio, foi marcada pela fala racista de Luciana Tomasi. Ao refletir sobre a possível influência francesa do filme e a europeização do cinema gaúcho, ela elencou os sobrenomes de origem europeia dos membros da equipe de Inverno e arrematou: “Não adianta a gente tentar fazer um filme da senzala, entende?”.

Para a diretora de arte, a live da APTC-RS já é um marco importante e está na história do cinema gaúcho. “É muito ruim que uma agressão racista como essa tenha que ter acontecido para que as pessoas brancas prestassem atenção em nós. Mas aconteceu e está registrada para sempre. Os comentários do casal pseudo-europeu não são nem um pouco surpreendentes”, afirma Marina Kerber.

Luciana Tomasi depois se pronunciou e pediu desculpas pela fala “infeliz e racista”.

Marina pondera a dificuldade de denunciar atitudes racistas de pessoas influentes no mercado cinematográfico do Rio Grande do Sul, uma situação que, acredita, pode mudar a partir da organização do coletivo. “Nós somos o Macumba Lab e vamos mostrar que tem preto no sul. E fazendo audiovisual. Falando sobre todos os assuntos pertinentes aos seres humanos. Nossa união nos deixa mais fortes para denunciar esse tipo de coisa e mostrar que cinema gaúcho não é só essa versão branca de sobrenome europeu. Como escrevemos em nossas redes sociais: ‘Não fazemos filme de senzala, fazemos filme de quilombo’.”


“Eu fiz faculdade de cinema, mas eu sou uma exceção entre as pessoas negras. Como em todo o Brasil, a população negra é excluída de espaços de poder”, afirma Marina Kerber / Divulgação

Ela conta que sua experiência no mercado audiovisual “não é das melhores”. No primeiro longa-metragem que participou, como figurinista, foi apelidada de Babuína. Depois, saiu do Rio Grande do Sul, fez mestrado na Universidade de São Paulo (USP) e estudou na Concordia University, em Montreal, Canadá. Dedicou-se à pesquisa sobre animação na National Film Board, estudo que a levou à Ásia para apresentar os resultados do trabalho.

“Voltei para Porto Alegre com um currículo impecável, cheio de experiências, tanto teóricas quanto práticas, e achei que poderia me inserir tanto no ambiente acadêmico quanto profissional. Porém, tive muita dificuldade de voltar a trabalhar. O live-action aqui é muito fechado. Na animação, consegui apenas um trabalho desde 2017. A gente chama de ‘panelinha’ o ambiente audiovisual daqui, pois são sempre as mesmas pessoas, em sua maioria brancas e de classe média, que são contratadas para os jobs. Não há muita abertura para outros. É por isso que no resto do Brasil as pessoas costumam achar que não existem pessoas negras ou de qualquer outra cor no Rio Grande do Sul”, analisa a artista visual, animadora, diretora e diretora de arte.

Marina enfatiza que os profissionais negros e negras têm capacidade para produzir obras tão boas ou melhores do que aquelas consideradas importantes na história do cinema gaúcho. E que podem, obviamente, abordar qualquer assunto, não apenas a temática racial.

“Mas as pessoas brancas esquecem disso, somos sempre racializados, como se a visão branca fosse a universal. Branco também é uma categoria racial. Eu fiz faculdade de cinema, mas eu sou uma exceção entre as pessoas negras. Como em todo o Brasil, a população negra é excluída de espaços de poder, tanto por questões de nível sócio-econômico, quanto de racismo”, destaca a diretora e roteirista do curta-metragem de animação Eu prefiro sem sementes

Ela enfatiza ainda como as pessoas negras se sentem nesses espaços. “É horrível ser a única pessoa negra em um set de filmagem. É horrível ser a única pessoa negra em uma live. Ser ‘a única negra’ acaba nos transformando em um token de referência, como se todas as pessoas negras pensassem e agissem igual. Acabamos extremamente cansados, pois a branquitude não tem limites e nos bombardeia com perguntas e dúvidas. Ela esquece que também somos seres humanos.”


Mariani Ferreira diz que a cultura gaúcha “oficial” tenta apagar os símbolos indígenas e negros. “E o cinema gaúcho reflete a negação dessa existência.”  / Divulgação


Resistência, mas não só

Mariani Ferreira estava ali para falar de cinema. Ainda que fosse a única pessoa negra na transmissão da Associação Profissional de Técnicos Cinematográficos do Rio Grande do Sul (APTC-RS), o objetivo era debater o filme Inverno a partir de seu olhar contemporâneo. Dias depois da live, ela reconhece que a fala racista da produtora Luciana Tomasi a chocou, mas não a surpreendeu. Afinal, ela já conhece bem o lugar de privilégio ocupado por pessoas brancas, sem perceber ou reconhecer tal posição. “Essa ingenuidade da branquitude é que nos mata”, define Mariani, roteirista e diretora.

Produtora executiva e roteirista do documentário O Caso do Homem Errado, ela diz que declarações, notas e pedidos de desculpas não são suficientes. É preciso mais. É preciso agir. E, no caso do mercado cinematográfico gaúcho e brasileiro, agir significa criar políticas públicas que permitam o acesso de negros e negras aos cursos de cinema de faculdades públicas e privadas; é haver bolsas de pesquisa para registrar e preservar a memória da produção audiovisual negra no Estado; é ter políticas públicas de formação de profissionais negros em cinema; é realizar atividades de formação de público nas periferias; é haver paridade racial nos comitês de seleção de editais públicos no Rio Grande do Sul e em curadoria e júris de festivais de cinema; agir é também criar cotas ou “indutores raciais” em editais públicos de cultura no Estado. Todas propostas apresentadas pelo coletivo Macumba Lab.

“O Rio Grande do Sul é um estado que, historicamente, tenta nos exterminar”, afirma Mariani. A opinião a leva a citar o massacre dos lanceiros negros na Revolução Farroupilha, o grande fato histórico fundador da cultura gaúcha oficial. “Como somos resistentes, não vamos voltar pra senzala ou pra cozinha. Parece que a cultura gaúcha começou com a imigração italiana e alemã, e se esquece a contribuição dos povos originários na formação do Estado.” Inviabilizar e negar a existência, é a lógica perversa do racismo, avalia a roteirista.    

Não a surpreende que a chamada Geração Super 8 do cinema gaúcho prefira a estética do frio. O frio que remete à Europa. “A cultura oficial gaúcha tenta apagar os símbolos indígenas e negros. E o cinema gaúcho reflete a negação dessa existência”, afirma Mariani. E a resistência, embora firme, também cansa. Nesse aspecto, ter acesso a editais públicos de cultura é fundamental.

“Nos é negado o acesso a esses recursos, mas mesmo dentro dessa lógica, os negros estão trabalhando e não são narrativas de senzala, são de quilombo. É outra lógica. A gente não vai parar de fazer cinema, mas queremos também ter acesso aos recursos e aos espaços que são fechados. Nossa arte é de resistência, mas cansa também. Temos que produzir nossa arte com os mesmos recursos”, reivindica a roteirista e diretora.    

Em outro trecho, o manifesto do coletivo Macumba Lab aponta: “Há de se pensar o porquê dessa escassez de obras produzidas por pessoas negras, o porquê dessa elitização da produção audiovisual. Para desvendar esse enigma não é necessário ir muito longe em nossa história. Há crença de que o Rio Grande do Sul é apenas fruto da imigração alemã e italiana e também de que o acontecimento mais importante da história do estado é a ‘Revolução Farroupilha’. Não por acaso, é a historiografia dos vencedores, repetida e exaltada por uma elite branca”.

Até quando?

Edição: Sul 21