Rio Grande do Sul

ESCRITORAS NEGRAS

Lilian Rocha: “A gente veio para ficar com nossa literatura e nosso lugar de saber"

Em celebração ao 25 de Julho, a poetisa gaúcha Lilian Rocha abre esse especial de escritoras negras do Brasil de Fato RS

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Mudanças só ocorrem quando há modificação estrutural, então não basta só passeata, há necessidade de mudanças de leis, mudança com relação ao formato como a polícia age" - Arquivo Pessoal

“Meu corpo negro / Esteriotipado, objetificado / Sempre foi resistência / E não será agora / Que será diferente / Olhos mais abertos / ..Nós nos cuidamos/ E seguimos /Pois a bala tem alvo / E na palheta de cores / O gato pardo / É Negro!”*, na poesia Preciso Andar, a escritora, poetisa gaúcha, Lilian Rose Marques da Rocha, fala sobre a saga e resistência do povo negro. 

Natural de Porto Alegre, seu contato com a palavra veio desde muito cedo. Como ela mesma afirma, sua alfabetização começou escrevendo poesias, pequenos contos, pequenas crônicas. Além da literatura, Lilian está na linha de frente do combate à pandemia causada pelo novo coronavírus. Farmacêutica e analista clínica de formação, trabalhando em um hospital, ao refletir sobre os ensinamentos que a pandemia pode trazer, afirma que devemos trabalhar cooperativamente. “A minha vida afeta o outro de alguma forma, e nisso temos que amadurecer e temos que nos dar conta que nossa vida tem que ser com maior equidade”. Ao comentar o papel da literatura no momento atual, reforça que é o que desde sempre faz, auxiliar as pessoas a refletir o momento que estão vivendo no aqui e agora e a partir dessa reflexão poder modificar algumas estruturas. 

Na véspera do dia Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, o Brasil de Fato RS publica a entrevista feita com a escritora e poetisa, estreando uma pequena série de entrevistas com escritoras negras. “Negra / Palavra bendita / Que saiu de tua boca / Como um insulto / E que transcende / Em minha dança / Em minha história/ Em minhas crenças / Em minha luta / Em minha vitória / Que corporifica / Em meu sorriso / De perplexidade / Da tua pobre / Medíocre ignorância!”.

Lilian é autora de livros como “A Vida Pulsa: Poesias e Reflexões”, de 2013 e “Menina de Tranças”, de 2018. É membro da coordenação do Sarau Sopapo Poético, acadêmica da Academia de Letras do Brasil - Seccional-RS e diretora de Organizações Sociais da ALB-RS. Também é conselheira da Associação Negra de Cultura (ANdC), membro da Sociedade Partenon Literário e da International Writers and Artists Association (IWA). Possui formação acadêmica na área de Farmácia e Bioquímica pela UFRGS, com especialização em Homeopatia na ABH

Veja a entrevista completa


"Nossos passos vieram de muito longe, e nós só temos que fortificar cada vez mais na nossa trajetória" / Arquivo Pessoal

Brasil de Fato RS - Gostaria de começar com tu nos contando um pouco da tua trajetória e como foi o encontro com a literatura.

Lilian Rocha - Comecei muito cedo, me alfabetizei escrevendo poesias, pequenos contos, pequenas crônicas. Gostava muito de ler Agatha Christie, então escrevi também alguns romances policiais. Com o passar do tempo fui fazendo, periodicamente, uma coisa ali, não dimensionando muito. No final dos anos 1990, início dos anos 2000 eu participei de um curso de extensão da Unisinos que chamava Africanidades, do Cecune - Centro Ecumênico de Cultura Negra. Ali eu tive contato com vários professores que traziam a história da África, nossa história e outras coisas mais, como política, educação com relação à africanidade no Brasil. A partir dai comecei a escrever mais poemas relacionados com a temática negra. 

Por volta de 2012 comecei a frequentar vários saraus em Porto Alegre, entre eles, o sarau Sopapo Poético, e assim retomei a questão do foco na literatura que eu tinha deixado um pouco para trás. 

Através das redes sociais as pessoas perguntavam onde podiam encontrar os meus trabalhos, até que um dia encontrei uma pessoa que me falou, “olha, trabalho em uma editora, se tu quiseres junta o teu material e vamos publicar tuas poesias”, isso em 2013. Em dezembro daquele ano lancei meu primeiro livro. A partir dai surgiram muitas oportunidades. A literatura virou algo muito importante para mim, comecei a fazer parte de muitos saraus, dando palestras, oficinas, apresentações, e ai foram surgindo os livros. 

O primeiro livro veio em 2013, A vida pulsa, poesia e reflexões; em 2016, veio Negra Soul; 2018, Menina de tranças. Nesse meio tempo ajudei a organizar a Antologia Poética do Sarau Sopapo Poético, que se chama Pretessência. Em 2018 foi lançado também um livro em conjunto com meus dois irmãos, a Maria Aparecida e o Kléber, chamado Leli da Silva - Memórias: Importância da História Oral, história da nossa mãe que tem 86 anos. 

BdFRS - Como você definiria o que é ser uma mulher negra no mundo?

Lilian - Ser uma mulher negra no mundo é ser ao mesmo tempo uma grandeza, pelo fato de resistirmos a tantas pressões. Temos dois setoriais ai, a questão de raça e de gênero. Ser mulher no mundo já não é muito fácil, pela questão do machismo, das questões misóginas, ser mulher negra então, ainda é mais difícil, pelo fato do racismo, mas estamos ai. A mulher negra não é só resistente. Geralmente, quando falam de nós, colocam ou com o esteriótipo da gostosa ou da mulher resistente, de luta, não, somos como qualquer outro ser humano, com nossos defeitos, qualidades, mas que tem essa questão que nos desfavorece, em alguns momentos, pelo fato de termos essas duas interseccionalidades, de raça e de gênero. Mas como grandes filósofas negras falam, se não fosse o movimento de mulheres negras o mundo estaria estagnado. Quando nós nos movimentamos, como diz a Ângela Davis, o mundo se movimenta. 

É difícil, mas encaramos isso com muito amor, dignidade, e seguimos adiante, porque eu, pelo menos, tenho a grata história, a trajetória de saber o quanto nós mulheres negras temos uma história muito linda. Nossos passos vieram de muito longe e nós só temos que fortificar cada vez mais na nossa trajetória.

BdFRS - Como a pandemia afetou sua rotina? Ela está influenciando sua obra? De que forma?

Lilian - Sou escritora, mas atuo na área da saúde. Trabalho em um hospital e com relação aos cuidados, são muito maiores. Em relação à literatura afetou todos os projetos presenciais que estávamos realizando, saraus, oficinas. Várias apresentações, vários debates, oficinas que eu iria realizar, foram todos cancelados. Vários lançamentos que estavam programados de coletâneas foram impactados, o lançamento de um novo livro ficará para o ano que vem. Afetou nessa parte presencial, mas ao mesmo tempo trouxe toda uma criatividade de realizar atividades através da internet, das lives, enfim, a possibilidade de estar presente em um grupo diferenciado, na noção do trabalho, em um outro formato. 

Todo processo de lives e saraus através das redes têm possibilitado estar presente com as pessoas. Apesar de eu ser uma escritora, sou ao mesmo tempo declamadora, e o corpo faz muita falta, é algo que eu sinto bastante, a questão da presença. Para suprir isso eu tenho feito vídeos nas redes sociais. 

A pandemia fez também com que mudássemos a temática. É claro que não podemos deixar de falar desse momento das questões que surgem com relação à pandemia, a própria solidão, a falta de esperança, a situação política do nosso país, os casos de racismo que têm surgido, o próprio fato das questões em relação à aproximação das pessoas, como será o futuro. 

BdFRS - Qual o papel da literatura nesse contexto? 

Lilian - A função da literatura, pelo menos naquela que eu acredito, é poder fazer com que as pessoas parem um pouco, façam uma reflexão e a partir dessa reflexão possam se movimentar, agir. A literatura tem essa possibilidade. Claro, ela também pode ser entretenimento, uma distração, uma possibilidade de trazer criatividade, imaginação para as pessoas, alegria, mas ela também tem esse papel de fazer com que as pessoas reflitam o momento que estão vivendo no aqui e agora e a partir dessa reflexão possam modificar algumas estruturas. 

BdFRS - Ao falarmos de literatura, como tu avalias a literatura feita por mulheres, em especial, mulheres negras, público, disseminação? Como democratizar mais a literatura feita por mulheres negras? 

Lilian - Com relação à escrituras feitas por mulheres negras, parece-me que nos últimos anos, aqui no Brasil, houve um foco de luz, valorização. Em primeiro lugar porque nós exigimos isso, e segundo lugar porque não dava mais para esconder que existiam escritoras bem importantes, que tinham uma obra literária a ser considerada. Uma Conceição Evaristo com seus 71 anos, quando há dois anos atrás foi convidada para a Feira Literária de Paraty, a Flip, uma mulher que já tinha sido traduzida na França e outros lugares, considerado seu trabalho em outros lugares, no Brasil, praticamente ainda era desconhecida. Há um foco com relação a essas escritoras negras, o que a gente coloca é que viemos para ficar. Estamos ai com nossa literatura, com nosso lugar de saber e acreditamos nisso. 

Importante ressaltar que o mercado editorial, e sabemos muito bem, é dominado e tem a predominância do homem branco, da classe média, eixo Rio/São Paulo. A grande maioria dos livros é publicado com esse padrão. 

Como democratizar, divulgar? Acho que as redes sociais têm ajudado bastante, as escritoras, e as escritoras negras jovens têm conseguido muita visibilidade através das redes sociais e essa literatura tem sido mais conhecida. Mas não basta, ainda parece como se fosse moda, ‘vamos dar espaço para elas’, não queremos o espaço nosso, queremos realizar a literatura que temos conhecimento, que sabemos e fazemos de boa qualidade. 

Agora, ainda, de que forma encarar esse mercado editorial, que muitas vezes é fechado, e fazer esse livro chegar onde tem que chegar, não só na comunidade negra, esse é um desafio, queremos que os brancos também nos leiam, tenham curiosidade de, pelo menos, conhecer o que está sendo tratado. Se lemos escritores brancos, por que eles não podem ler escritoras negras?

Muitas escritoras negras têm se juntado em editoras com a filosofia de publicação de escritores negros. Só isso não basta porque há que se trabalhar com a questão da divulgação, esses escritos têm que chegar nas mulheres, nas mulheres periféricas. Como disseminar esse produto livro que, às vezes, é tão caro para essas comunidades? Como fazer para que essas pessoas sejam mais conhecidas? Ainda tem um longo caminho a percorrer. Acho que muita coisa melhorou nesses últimos três, quatro anos, mas ainda falta popularizar mais o livro, que as pessoas tenham um maior alcance desse material que é tão importante para disseminação de cultura. 

BdFRS - O que a pandemia pode nos ensinar? E que mundo, ou sociedade teremos pós pandemia? Continuaremos os mesmos?

Lilian - Ela nos ensina que somos mortais e como tal devemos trabalhar cooperativamente. O mundo vai ser completamente diferente com relação ao passar dessa pandemia, sem falar no fato dos estragos econômicos, e a gente sabe que a população pobre, negra, periférica vai sofrer muito com isso. Vai ter uma onda muito grande de desemprego, de desesperança, pessoas com medo, encurraladas, sem emprego, com fome, e temos que pensar nisso, em relação a viver em cooperação. Ou seja, a minha vida afeta o outro de alguma forma, e nisso temos que amadurecer, e temos que nos dar conta que nossa vida tem que ser com maior equidade.

Vamos continuar sendo aqueles que têm os seus privilégios e que vão viver de uma forma individual, ou vamos nos dar conta que para a gente poder sobreviver e ter uma vida adequada perante a sociedade, precisamos cooperar uns com os outros? Vai depender desse ser humano se dar conta que é necessário, nesse momento pós pandemia que haja equidade entre todos, porque senão, não teremos uma sociedade justa. 


"Os racistas sempre existiram, mas eles tinham vergonha de falar" / Arquivo Pessoal

BdFRS - No Brasil, assim como em outros países, depois do que aconteceu nos Estados Unidos, tem crescido os atos antirracistas juntamente com os antifascistas. Como avalias esses protestos e que mudanças podem trazer? 

Lilian - Acho bem importante esses protestos que estão acontecendo, mas me parece que as pessoas sempre se mobilizam mais, ou ficam mais comovidas quando acontece nos Estados Unidos, e isso está acontecendo no Brasil todo dia. No Brasil a cada 23 minutos morre um jovem negro, e cadê as passeatas, cadê as faixas? Foi necessário que acontecesse com alguém nos EUA, negro, onde eles têm uma história diferente com relação a isso. Foram processos diferentes do que acontecera aqui no Brasil, não que aqui não tivesse reação do movimento negro em relação ao racismo, mas que com certeza foram histórias um pouco diferentes. Então me causa estranheza quando eu vejo as pessoas tão impressionadas em relação à morte nos EUA, quando aqui acontece a cada 23 minutos. O que mudou é que agora simplesmente eles estão sendo filmados, mas sempre aconteceu, e as pessoas sabem disso. 

É um momento que as pessoas querem sair um pouco mais para rua, não estão aguentando ficar caladas diante esses movimentos fascistas e racistas que têm acontecido não só aqui no Brasil, mas por todo mundo, em que a direita extremista vem tomando conta. Acho que é um momento que as pessoas têm vontade de falar, só que, às vezes, parece-me um pouco falso, em função de que isso sempre existiu. 

Mudanças só ocorrem quando há modificação estrutural, então não basta só passeata, há necessidade de mudanças de leis, mudança com relação ao formato como a polícia age. A gente sabe que ela sai batendo em negro, o negro é o primeiro suspeito. Então enquanto não tiver uma criminalização em relação a isso, não haverá mudança. Enquanto existir uma lei do racismo, onde as pessoas ainda dão cestas básicas para não cumprirem pena, não haverá mudança. É necessário uma mudança estrutural de leis, há que se ter punição para isso, enquanto não tiver punição real as coisas não mudam. 

BdFRS - O que é o racismo para ti?

Lilian - É se achar superior etnicamente a um outro, por existir um padrão universal ocidental que só esse serve como núcleo, como centro, e o outro é subjugado, é inferior àquele padrão universal. É subjugar todo conhecimento, toda cultura de um povo, se achar superior a esse povo por esse povo ser diferente. 

BdFRS - As pessoas perderam o medo de serem racistas publicamente?

Lilian - Os racistas sempre existiram, mas eles tinham vergonha de falar, só que agora lhes foi dada permissão porque existe uma pessoa no poder que oportunizou que essas pessoas racistas pudessem se autodeclarar. Não tem mais vergonha, sempre foram, mas ficavam escondidos naquela democracia racial. Nesse momento que essa onda fascista se apresenta também se apresenta a onda machista, racista, misógina, transfóbica e vem com todo o seu veneno porque não se tem mais vergonha, saíram do armário. Agora eles têm permissão de declarar diretamente o seu racismo. 

Indicação de leituras: 

Leiam Conceição Evaristo, Elisa Lucinda, Cristiane Sobral, Eliane Marques, Cidinha da Silva, Ana dos Santos, Taiasmin Ohnmacht, leiam essas mulheres negras, Djamila Ribeiro, Mel Duarte, Fátima Farias, existem tantas escritoras negras que a gente deve conhecer e que são importantes. Leiam um pouco da história de Lélia Gonzales, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, a gaúcha Maria Helena Varga. 

*“PRECISO ANDAR

No primeiro instante

Uma tristeza profunda

A terra sob os meus pés

Treme

Uma incerteza

Paira no ar

Logo mais

A respiração se estabiliza

O reflexo e a memória

Se dão as mãos

Como assim resistência?

Por acaso em algum momento

Da vida

Deixei de ser resistência?

Meu corpo negro

Esteriotipado, objetificado

Sempre foi resistência

E não será agora

Que será diferente

Olhos mais abertos

Intuição

Audição da alma

Juntos de mãos dadas

Com os meus

Eu te cuido

Tu me cuidas

Nós nos cuidamos

E seguimos

Pois a bala tem alvo

E na palheta de cores

O gato pardo

É Negro!

Edição: Katia Marko