Rio Grande do Sul

DEFESA DA AUTONOMIA

Saúde Coletiva da UFRGS repudia manifestações de intolerância à comunidade acadêmica

Universidade foi vítima de ataques nas redes sociais após lançamento da cartilha “Coronavírus e Profissionais do Sexo”

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Programa de Pós-Graduação lançou uma carta em defesa da autonomia e da função social da universidade - Reprodução

Após manifestações de intolerância e violência dirigidas à comunidade acadêmica a respeito da cartilha “Coronavírus e Profissionais do Sexo”, lançada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da UFRGS lançou uma carta em defesa da autonomia e da função social da universidade. A cartilha traz uma série de recomendações para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, tendo como base evidências de vulnerabilidade aumentadas desse grupo social no período da pandemia.

O fato ocorreu no dia 27 de julho, nas redes sociais do UFRGSNOTICIA. Conforme a carta, entre as manifestações, “observa-se claramente a naturalização da violência e da opressão a que estas, em sua maioria, mulheres sofrem dentro de uma estrutura social machista, racista e classista que repete cotidianamente que suas vidas pouco importam. Foram desqualificações, ameaças e acusações falsas e violentas de diversas ordens. Além de questionar o quão inadequado era a universidade estar a serviço de tal público, também houve o objetivo claro de constranger a iniciativa e assediar os professores, alunos e técnicos envolvidos na sua elaboração”.

O PPG em Saúde Coletiva ressalta que a universidade é da sociedade brasileira e lugar de diversidade e manifesta repúdio a tais atos, embasado nos princípios de construção de uma sociedade livre, justa, solidária e com igualdade, definidos na Constituição brasileira de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. “A intolerância, a violência, os preconceitos de toda natureza e o totalitarismo não podem prosperar na universidade, exceto como objeto de estudo e de combate. E em momentos de crise civilizatória e humanitária como estamos vivendo, a universidade também não é lugar para o silêncio e a omissão cúmplices”.

Afirma ainda que seguirá “em frente e de cabeça erguida e que, embora respeite a todas as opiniões, também exigirá respeito e a responsabilização daqueles que proferem o discurso de ódio”. Confira a carta na íntegra:

CARTA A COMUNIDADE ACADÊMICA DA UFRGS EM DEFESA DA AUTONOMIA E DA FUNÇÃO SOCIAL DA UNIVERSIDADE

Primeiro levaram os negros.

Mas não me importei com isso.

Eu não era negro.

Em seguida levaram alguns operários.

Mas não me importei com isso.

Eu também não era operário (...)

Agora estão me levando. Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém.

Ninguém se importa comigo.

[Intertexto, Bertold Brecht (1898-1956)]

O Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGCOL), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), vem a público, mais uma vez, manifestar seu repúdio a atos de intolerância e violência dirigidos a sua comunidade acadêmica. A menos de um mês uma de nossas professoras foi vítima de um ataque racista, em março vimos um colega ter sua integridade física e sua vida ameaçada. Ontem, a intolerância e a violência, tiveram como alvo a produção de tecnologias de proteção aos profissionais do sexo durante a pandemia de COVID-19, que compõem o conjunto de iniciativas que a Universidade vem, intensivamente, produzindo para contribuir com o enfrentamento das consequências diretas e indiretas da pandemia no cumprimento de sua função social.

O fato ocorreu, no dia 27 de julho de 2020 nas redes sociais do UFRGSNOTICIA que noticiou a publicação da cartilha intitulada “Coronavírus e Profissionais do Sexo”. A coordenação do Projeto é do Prof. Matheus Neves, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da UFRGS (PPGCOL), com envolvimento de estudantes e profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS). A cartilha possui uma série de recomendações para evitar a contaminação pelo novo coronavírus e é voltada aos profissionais do sexo, tendo como base evidências de vulnerabilidade aumentadas desse grupo social no período da pandemia.

Focando na prevenção e na preservação das vidas destas e destes profissionais, o material apresenta sugestões de formas alternativas de trabalho para o período de distanciamento social, orientações para diminuir o risco de contaminação em casos de atendimento presencial e ainda informações sobre o acesso ao auxílio emergencial do Governo Federal, além de abordar cuidados diários que devem ser colocados em prática por todas as pessoas para evitar a Covid-19. Uma abordagem necessária e pertinente construída através de uma parceria com a Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul. Não há qualquer juízo de valor colocado na produção, que preza pela estrita observância de orientações para a preservação da saúde e pelo acesso à informações importantes para a proteção a um público que em sua maioria poucas oportunidades e acesso a cuidado e informação recebe ao longo de vidas que são marcadas por sucessivas situações de opressão, negligência e violência. Entre as manifestações que a notícia produziu, observa-se claramente a naturalização da violência e da opressão a que estas, em sua maioria, mulheres sofrem dentro de uma estrutura social machista, racista e classista que repete cotidianamente que suas vidas pouco importam. Foram desqualificações, ameaças e acusações falsas e violentas de diversas ordens. Além de questionar o quão inadequado era a universidade estar a serviço de tal público, também houve o objetivo claro de constranger a iniciativa e assediar os professores, alunos e técnicos envolvidos na sua elaboração.

Como no poema de Bertold Brecht, não é a pequenez da condição humana em algumas pessoas que nos preocupa. É o uso indevido do direito a liberdade de expressão, que sem dúvida nenhuma precisa ser respeitado, mas que jamais pode ser aceito para manifestação do ódio, para constranger e violentar, como tem se observado em tempos recentes e que fere a existência de pessoas e a autonomia institucional da universidade. É isso o que nos mobiliza. É preciso iniciativas fortes para combater essas práticas criminosas que se voltam à Universidade, mas que são cotidianas nas vidas de tantas pessoas e grupos populacionais. É preciso (re)agir energicamente à violência, como parte da função social da universidade e das demais instituições do poder público, com a função pedagógica de ampliar nossa democracia e a civilidade nas relações sociais.

A universidade é da sociedade brasileira e, como ela, é lugar de diversidade! Da diversidade eticamente sustentada e cientificamente compreendida. A intolerância, a violência, os preconceitos de toda natureza e o totalitarismo não podem prosperar na universidade, exceto como objeto de estudo e de combate. E em momentos de crise civilizatória e humanitária como estamos vivendo, a universidade também não é lugar para o silêncio e a omissão cúmplices. Por isso nos manifestamos em repúdio a tais atos.

Nosso repúdio se embasa no exercício da cidadania que nos é definido constitucionalmente. Diz a Constituição brasileira de 1988 que os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais; a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação1. De acordo com a Constituição brasileira, as universidades têm autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e devem obedecer ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão (Art. 207).

Ademais, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, Lei Federal nº 9,394, de 20/12/19962), o ensino deve ser ministrado com base, entre outros, nos princípios da “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”; “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber”; “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”; “respeito à liberdade e apreço à tolerância”; (...) “valorização da experiência extra-escolar”; “vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais”; “consideração com a diversidade étnico-racial” (Art. 3º).

Para sua implementação, cabe às instituições e estabelecimentos de ensino “promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas”; e “estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas” (Art. 12). Mais do que isso, diz a LDB que, entre as finalidades da educação superior estão o estímulo à criação cultural e ao desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo; a promoção da divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e da comunicação do saber através do ensino, de publicações (...); o estímulo ao conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais, prestar serviços especializados à comunidade e estabelecer com esta uma relação de reciprocidade; e de promover a extensão, aberta à participação da população, visando à difusão das conquistas e benefícios resultantes da criação cultural e da pesquisa científica e tecnológica geradas na instituição (LDB, Art. 43).

A UFRGS, atenta às definições da política nacional de educação, à legislação vigente e zelosa de sua função e relevância social, atualizou seu Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI 2016-2026)3 traçando como um dos Objetivos de Impacto Social a serem desenvolvidos no período “Ampliar e incentivar interações da Universidade com os demais segmentos da sociedade, no campo acadêmico, cultural, social e artístico, promovendo a cultura da paz, o voluntariado, a partilha e a apropriação de saberes, e o respeito aos direitos humanos”.

Nesta perspectiva o PPGCOL, suas pesquisas e em especial o material produzido são resultado do desenvolvimento de pesquisa de excelência, constituídas por parcerias interinstitucionais com secretarias estaduais e municipais de saúde vem construindo tecnologias sociais oportunas, significativas e apropriadas por grupos sociais marginalizados e invisibilizados. Vítimas cotidianas do descaso, da indiferença e tantas vezes do ódio.

Dessa forma, a manifestação de repúdio às postagens violentas, preconceituosas e de intolerância nas redes sociais da universidade, não se restringe ao conteúdo e às autorias de tais atos criminosos. Também se volta às instituições que compõem a institucionalidade democrática definida constitucionalmente, inclusive às instâncias da própria universidade no que se refere às manifestações registradas de alguns dos seus membros, para que os autores de tais atos sejam identificados e devidamente responsabilizados. Trata-se de um dispositivo pedagógico para fazer avançar a educação no Brasil, na direção que a talvez exaustiva revisão feita acima aponta. E o fazemos, como alertou Brecht, porque a hora de agir é o exato momento em que as iniciativas de intimidação da autonomia pedagógica docente, da autonomia institucional da universidade, da função social da universidade, da vida das pessoas é posta a prova por déficits de civilidade e pela convicção de inconsequência de atos criminosos se tornam visíveis. Essa é a hora de agir porque a história já nos mostrou que o silêncio e a omissão sempre custam vidas inocentes e retrocessos civilizatórios significativos. A universidade não pode ser lugar de omissão e de silêncio!

Ademais, é preciso deixar claro, que o Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva seguirá em frente e de cabeça erguida e que, embora respeite a todas as opiniões, também exigirá respeito e a responsabilização daqueles que proferem o discurso de ódio. Seguiremos pesquisando, a serviço da sociedade brasileira e daqueles que seguem a margem em um mundo onde o dinheiro nos impõe que algumas vidas valem mais do que outras. Todas as vidas nos importam e precisam ser respeitadas. Ou todes serão livres ou respeitades dentro desta universidade ou a universidade não será digna de ninguém. Aos destiladores de ódio, nosso aviso, mais uma vez, seguiremos e não nos calaremos!

Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

1 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 3º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

 

Edição: Marcelo Ferreira