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Literatura

A intensidade dos poemas de Alfonsina Storni ganha tradução em português

Primeiro catálogo de livros da nascente Editora Coragem traz ao Brasil uma das maiores poetisas da América Latina

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em um campo dominado por homens, Alfonsina participou de organizações sindicais, movimentos feministas e anarquistas. Suas obras ganham tradução no Brasil - Reprodução

“Sabe Dios qué angustia te acompañó
Qué dolores viejos calló tu voz
Para recostarte arrullada
En el canto de las caracolas marinas
La canción que canta en el fondo oscuro del mar
La caracola
Te vas, Alfonsina, con tu soledad
¿Qué poemas nuevos fuiste a buscar?
Una voz antigua de viento y de sal
Te requiebra el alma y la está llevando
Y te vas hacia allá, como en sueños
Dormida, Alfonsina, vestida de mar”

Ouvintes de Mercedes Sosa ou leitores de Eduardo Galeano alguma vez já escutaram “Alfonsina y el mar”, escrita por Ariel Ramirez e Félix Luna, ou já leram no livro “Mulheres” um conto sobre a poetisa argentina. Mas, mesmo com tamanhas homenagens, Alfonsina Storni (1892-1938) ainda é pouco conhecida no Brasil, e seus livros nunca haviam sido traduzidos para o português até então. Com lançamento neste mês pela Editora Coragem, os livros “Antologia Poética” e “Poemas de Amor” prometem trazer ao público uma parte da vasta obra de uma mulher que ousou escrever poemas no início do século XX, em um contexto marcadamente masculino.

Alfonsina descobre a Argentina aos quatro anos de idade. Nascida "no mar", a bordo de um barco, onde viajavam seus pais, no sul da Suíça, onde a língua falada é o italiano, a poetisa foi para o país sul-americano com seus pais em 1896, em um período marcado pela imigração europeia para as Américas. Com 16 anos, a vida da já pobre família migrante fica ainda mais difícil com a morte do pai de Alfonsina, fazendo que ela tivesse que ir trabalhar no chão de fábrica de indústria de chapéus. Neste momento, ela se depara com aquilo que seria o início de sua vida militante, conhecendo o florescimento de organizações sindicais e feministas da época. “O feminismo é o exercício do pensamento da mulher”, disse certa vez. 

Trabalhou em fábricas e participou de reivindicações sociais, se inserindo no meio anarquista. Foi atriz, atuando em diversas peças na Argentina. Colaborou regularmente nas revistas Mundo Rosarino e Monas y Monadas. Aos dezenove anos, foi vice-presidente do Comitê Feminista de Santa Fé. Alfonsina teve uma importante atuação no sufrágio feminino na Argentina. É nesse contexto marcado pelo modernismo e pela vanguarda hispano-americana com um crescente do discurso feminista que Storni inicia a sua vida literária.

Seus poemas abordam o papel da mulher naquilo que foi o início da tomada do espaço público, do questionamento acerca da mulher como exclusivamente responsável pelo cuidado da prole. Alfonsina traz sua vida para os poemas: os dilemas da mãe que criou o filho sozinha, as dificuldades em ser uma poetisa em meio à tantos homens, os conflitos amorosos. Tudo isso, faz dos poemas de Alfonsina de uma intensidade sem tamanho. É possível sentir o que ela sentia, por vezes uma melancolia diante da vida e por outras uma força arrebatadora, na qual a autora se permite mostrar aquilo que ainda e talvez até hoje seja um tabu, a sensualidade feminina. 

Em 1935, descobriu-se portadora do câncer de mama. Voy a dormir foi o último poema escrito pela escritora e enviado para o jornal La Nacion, poucas horas antes de sua morte. Um ano e meio depois do suicídio de seu grande amigo Horácio Quiroga, aos 46 anos, Alfonsina se vestiu de mar.

Antologia Poética e Poemas de Amor


Antologia poética / Divulgação

A publicação de “Antologia Poética” e “Poemas de Amor” faz parte do primeiro catálogo de livros da nascente Editora Coragem, iniciativa de Thomás Vieira que, no meio da pandemia, se viu sem emprego e pensou ser um bom momento para reunir os amigos na construção do projeto. Fã de Mercedes Sosa, foi através da música que Thomás conheceu Alfonsina: “ela é uma das vozes femininas mais relevantes da América Latina, aborda uma reflexão social de gênero, que é a cara que queremos dar pra editora. Percebemos que o legado literário dela é estudado nos países de língua espanhola, mas quase nenhum material é encontrado em português. Nós cobrimos essa lacuna”.

Em “Antologia Poética”, os poemas foram selecionados e traduzidos por Ezequiela Scapini, que se preocupou em trazer ao leitor um pouco de cada obra de Alfonsina. O livro, portanto, percorre toda a produção da poetisa, com poemas extraídos de La inquietud del rosal, El dulce daño, Irremediablemente, Languidez, Ocre e Mundo de siete pozos. O livro ainda conta com prefácio do sociólogo Sérgio Miceli, especialista em sociologia da cultura e na vanguarda literária do século XX na América Latina. 

Eu sou como a loba
Rompi com o rebanho
e me fui à montanha
Cansada do campo.

Eu tenho um filho fruto do amor, de amor sem lei,
Que eu não pude ser como as outras, casta de gado
Com jugo no pescoço; ergo livre minha cabeça"

(poema La Loba)


Poemas de amor / Divulgação

O livro “Poemas de Amor”, traduzido por Pedro Gediel, ganha tradução própria pela editora. Pouco conhecida até mesmo na Argentina, na obra Alfonsina escreve poemas em prosa, diferentemente de suas publicações anteriores. O prefácio é da linguista Nildicéia Rocha que já havia analisado a profundidade da obra em suas pesquisas. 

Quem quiser adquirir os livros pode contribuir na campanha de construção da editora. No financiamento coletivo encontramos os livros de Alfonsina Storni e ainda mais três livros que integram o primeiro catálogo da Editora Coragem. 

Para acessar a campanha https://www.catarse.me/editoracoragem.

 

Edição: Marcelo Ferreira