Rio Grande do Sul

Emergência cultural

"São Leopoldo realiza Conferência da Cultura histórica", avaliam participantes

Com mais de 100 pessoas, encontro virtual contou com representações de diversas linguagens artísticas

Brasil de Fato | São Leopoldo |
A conferência contou com a participação da filósofa Márcia Tiburi e do agitador cultural Pablo Capilé - Divulgação

São Leopoldo realizou nesta sexta-feira (14), a 5ª Conferência Municipal de Cultura, um encontro histórico que abre o calendário nacional da Conferência Popular de Cultura. Um processo multicultural, plural e democrático todo voltado para a definição da forma de execução da Lei Aldir Blanc no município.

Para o secretário de Cultura e Relações Internacionais de São Leopoldo, Pedro Vasconcellos, o espírito da Lei Aldir Blanc é garantir que, definitivamente, a cultura entre para a agenda política e para as políticas públicas em nível nacional. “Nós temos um reconhecimento simbólico, mas não temos reconhecimento econômico de acordo com a importância do que a cultura representa para o Brasil”, ressaltou. Ele lembrou ainda que a cultura representa 3% do PIB nacional, num universo de aproximadamente 5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras no Brasil.

O clima foi de emoção e uma ampla diversidade de representações de linguagens artísticas se pronunciou, defendendo pontos importantes para a execução da Lei Aldir Blanc. Uma vitória, em tempos de retrocesso, foi a aprovação da garantia de cotas de 30% para mulheres e 30% para negros e negras.

Vasconcellos avalia que é um desafio gestar uma verba deste valor (R$ 1.553,810 para São Leopoldo) da Lei Aldir Blanc para tantos artistas e trabalhadores da cadeia produtiva da cultura. Mas também elogia a mobilização da sociedade civil, assim como do Conselho de Políticas Culturais e do Comitê Emergencial pela Cultura de São Leopoldo.

Pré-conferências reuniram diferentes setores

O protagonismo leopoldense ficou evidente no processo com 25 pré-conferências virtuais, com setores diferentes de São Leopoldo, sendo que os indígenas tiveram encontro presencial na aldeia Kaingang Por Fi Ga, que conta com 236 integrantes, uma surpresa aos gestores públicos. Os indígenas já tinham proposta pronta. “Estão inteirados sobre a lei, sabendo como poderão se inserir com projetos de artesanato, dança, enfim. O que demonstra o envolvimento e o protagonismo que tomou conta de todos os setores da sociedade.”

O prefeito de São Leopoldo, Ary Vanazzi, declarou-se impactado com a adesão de mais de 100 artistas da cidade ao cadastro para receber kit alimentação neste período de pandemia. “Como que o cidadão que anima nossas noites, que toca em barzinhos, que leva para as escolas a alegria, a alegria que às vezes falta para a sociedade, e com dois meses sem trabalhar, já fica sem condições de se alimentar? Que país é esse que trata desse jeito quem anima a alma da gente?”, questionou ao reforçar a importância de construção de políticas culturais permanentes.

No encontro foram aprovados o decreto municipal de regulamentação da Lei Aldir Blanc no município e a formação um comitê gestor com membros indicados pela Secult e pelo Conselho de Políticas Culturais, garantindo a representatividade da diversidade étnica, racial, cultural, sexual e de gênero do município de São Leopoldo.

A conferência contou com a participação da filósofa Márcia Tiburi e do agitador cultural Pablo Capilé. A seguir alguns trechos da eloquente fala da filósofa, também artista visual:


“Desde a linguagem, tudo que se faz é cultura. Nossa alimentação, nossa forma de morar, nossa educação, nossa arte, tudo é cultura" / Divulgação

“Desde a linguagem, tudo que se faz é cultura. Nossa alimentação, nossa forma de morar, nossa educação, nossa arte, tudo é cultura. A cultura é um campo muito amplo. Usamos a palavra cultura para falar das produções culturais específicas, mas também é um conceito muito amplo. E hoje assume uma dimensão de urgência. Nós precisamos falar cada vez mais de cultura. Porque é justamente ela que traz para nós hoje - no seu significante e seus múltiplos significados - a oposição à barbárie. Cultura é oposto à barbárie. Se transforma numa arma, num instrumento local de combate à barbárie.

Nós sabemos, mas é importante que a gente entenda que os inimigos da cultura também sabem para que serve a cultura, e o que ela provoca na vida das pessoas. Precisamos analisar o que a cultura provoca sobre a opressão dos inimigos. Os inimigos da cultura, os populistas da extrema direita, que produzem a política de inimizade, que incluem a cultura como mais uma inimiga. Esses são os defensores do neoliberalismo.

(...) Existe hoje, contra a cultura, uma guerra cultural. Quando a gente vê os gurus, os mistificadores, os agitadores da extrema-direita falando que a esquerda gramsciana, ou qualquer esquerda, lembro de um, aliás, um bem perigoso que falava que as canções dos Beatles, ou seja, a indústria cultural, tinham sido produzidas por Theodor Adorno (...) que é o sujeito que levantou a questão da indústria cultural - que ele seria o autor das músicas dos Beatles. Então esse tipo de mistificação faz parte desta guerra cultural contra a cultura. E essa guerra cultural contra a cultura é a guerra pela qual se faz uma inversão de sentido e a própria barbárie se transforma ela mesma em cultura.

O que eu quero dizer com isso: (...) que é absolutamente essencial que a gente perceba que estamos dentro de uma guerra cultural pela qual os inimigos da cultura fazem uma nova cultura, uma cultura que não é mais da produção, da criatividade, da generosidade, da solidariedade, do amor, da política que faz a gente transcender as nossas vidas, que faz a gente transformar o mundo, mas é uma guerra cultural que produz uma política de destruição e nesse sentido instaura a própria barbárie, a destruição, a matança, a morte, o genocídio, tudo isso que vocês estão vendo hoje, racismo, machismo, todo esse culto da ignorância, esse culto da barbárie, que é o que a gente vê hoje. O efeito dessa guerra cultural.

(...) Hoje nós precisamos sair desse lugar - vamos dizer desse pedestal que não quer se envolver com essas fontes, com essa miséria, nós precisamos enfrentar de maneira radical essas figuras, estes personagens enfadonhos, grotescos. Que se capitalizam justamente pelo seu grotesco, o que é também uma questão cultural, porque é também a estética que afeta a vida política.

(...) Eu entendo que, eu olho pro campo da cultura, a gente pode olhar o Brasil como um espaço de cultura, a gente pode olhar para o Rio Grande do Sul, pra São Leopoldo, ou qualquer outra cidade como um espaço para produção de cultura. Assim como a gente deve olhar pra terra, pro corpo, pra nossa fala, pras nossas expressões, pra linguagem como um todo como um espaço de produção de cultura. Assim como costumamos dizer que tudo é político, é importante perceber que esse todo político é um todo cultural. E nesse sentido, tudo que a gente faz é político e é cultural. Eu acredito que na consciência produzida entre o político e o cultural é que nós somos capazes de encontrar a chave, justamente para a evolução do espírito. Espírito no sentido filosófico. Espírito é o pensamento, a linguagem que aprende compreender a si mesma e avança no tempo.

O espírito da cultura, o espírito da época. Nós precisamos ocupar o espaço do espírito. E essa é a função da coisa que a gente chama cultura. As pessoas que produzem teatro, os festivais literários, que produzem os livros, enfim, que produzem as canções, os shows, essas pessoas que produzem. Essas pessoas, e essa ação, e esse trabalho. Esses produtores culturais são agentes absolutamente fundamentais da construção da esfera pública, enquanto esfera onde se desenvolve o espírito da própria cultura como um todo. E nesse sentido nós precisamos ter consciência de que há, não apenas um trabalho a ser realizado por todos nós, há uma tarefa mais do que um trabalho a ser realizado, que deve ser remunerado, que deve ser cuidado como os agentes políticos estão fazendo hoje, são responsáveis em São Leopoldo e em algumas outras poucas cidades do Brasil.

É preciso tornar essa ação uma tarefa histórica, lutar para que a sociedade brasileira não desapareça nesse fascismo declarado. Nisso, o desafio histórico é avançar em nível hegemônico. Todas as áreas, todos pensadores das diversas áreas, todos artistas, precisamos nos tornar soldados – nessa guerra híbrida contra o ódio e a insensatez. Todos aqueles que têm inteligência, lucidez e capacidade de reconhecer o outro como semelhante. (...) Seguimos. Que façamos da arte a nossa arma.”

* Jornalista e Produtora do grupo de teatro Os Quixotescos, de São Leopoldo

Edição: Katia Marko