Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Centralidade dos Direitos Humanos diante da pandemia

O governo Bolsonaro já foi alvo de várias denúncias na Comissão Interamericana de Direitos Humanos durante a pandemia

Brasil de Fato | Porto Alegre |
É importante reforçar a centralidade dos direitos humanos e seus mecanismos internacionais de garantias e proteção, sobretudo dos direitos de grupos mais vulneráveis - Reprodução

Já se convivia com violações de direitos humanos antes da pandemia da covid-19. Há tempos, a realidade latino-americana e brasileira, composta de desigualdades econômicas, por si só já produzem vulnerabilidade, exclusão, extrema pobreza e altos índices de violência estrutural generalizada. Essas e muitas outras mazelas sociais ficaram ainda mais evidenciadas diante a da crise sanitária provocada pelo novo coronavírus. Ainda assim – ao mesmo tempo que a pandemia tem o potencial de impactar mais gravemente a vida das populações em situação de maior vulnerabilidade e de afetar a plena vigência dos seus direitos –, faz-se necessário acentuar a importância da observância e do acesso aos sistemas internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Nos diversos contextos provocados pela pandemia, os governos dos Estados devem adotar medidas de atenção e contenção urgentes e necessárias para proteger efetivamente suas populações sempre de conformidade com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Nessa trilha, além de todo o seu aparato legal interno, aos 35 Estados partes integrantes da OEA, cabe observar os instrumentos e mecanismos de proteção de direitos humanos, aos quais se incluiu a Resolução nº 1/2020. Aprovada pela CIDH, esta Resolução faz 85 recomendações para que os governos dos Estados, ao implementar medidas de combate à covid-19, passem, por exemplo, a:

- Adotar um enfoque de direitos humanos em todas as estratégias, políticas e medidas estatais dirigidas a enfrentar a pandemia e suas consequências, inclusive os planos para a recuperação social e econômica já formulados;

- Assegurar a formulação de um plano de atuação que guie os procedimentos para a prevenção, detecção, tratamento, controle e acompanhamento da pandemia com base nas melhores evidências científicas e no direito humano à saúde, sendo isso feito de modo transparente, independente, participativo, claro e inclusivo;

- Garantir que as medidas adotadas para enfrentar a pandemia e suas consequências incorporem de maneira prioritária o conteúdo do direito humano à saúde e seus determinantes básicos e sociais, que se relacionam com o conteúdo de outros direitos humanos, como os econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA), tais como acesso a água potável, acesso a alimentação nutritiva, acesso a meios de limpeza, moradia adequada, cooperação comunitária, suporte em saúde mental e integração de serviços públicos de saúde, bem como respostas para a prevenção e atenção da violência, assegurando efetiva proteção social, inclusive com a concessão de apoio econômico como a renda básica.

E, para além dessas recomendações, no âmbito da CIDH, abriram-se espaços específicos para acompanhar o impacto nos direitos humanos de populações e grupos em situação de vulnerabilidade frente ao novo coronavírus. Com esse fim foi criada e instalada a Sala de Coordenação e Resposta Oportuna e Integrada à crise em relação à pandemia (Sacroi Covid-19), a qual visa entre outras ações: coletar evidências sobre seu impacto, monitorar ações de respostas adotadas pelos governos dos Estados, intensificar a articulação e o diálogo de suas relatorias especializadas e as organizações da sociedade civil e identificar casos urgentes dentro do sistema de petições e de medidas cautelares.

É na Sacroi que ocorreu, recentemente, uma rodada de fóruns com representantes das organizações da sociedade brasileira, apresentando-se relatórios dando conta das violações que o governo do presidente Bolsonaro vem cometendo contra a sociedade brasileira. Em particular, contra as populações mais pobres e vulneráveis no contexto da pandemia, bem como dos impactos da omissão, da desinformação e do negacionismo em relação à gravidade da covid-19; somada a incapacidade do governo federal de cumprir seu papel na coordenação de ações estratégicas.

Além disso, foi encaminhada para a relatora especial sobre Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais, Soledad García Muñoz, e para o presidente da CIDH e relator para o Brasil, Joel Hernández, uma denúncia acerca da incapacidade do governo Bolsonaro em executar o orçamento aprovado no Ministério da Saúde para o combate à covid-19. Apresentada pela Articulação para o Monitoramento dos Direitos Humanos no Brasil (AMDH), pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), pelo Fórum Ecumênico ACT Brasil, pelo Processo de Articulação e Diálogo (PAD) e pelo Centro de Educação e Assessoramento Popular (CEAP), a denúncia traz apontamentos demonstrando que o governo Bolsonaro adota atitude irresponsável e criminosa, ao se evidenciar que – embora haja disponibilidade de recursos – não os aplica, evidenciado-se o nexo causal entre a indisponibilidade de condições suficientes para o enfrentamento da pandemia e o alto número de infectados e mortes.

Essas escutas e denúncias que estão sendo apresentadas à CIDH, estão sendo devidamente analisadas e, entre os procedimentos adotados, estão a emissão de comunicados ao governo do Estado. Após, se comprovadamente não atendidas, poderão ser encaminhadas para julgamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, podendo resultar em sanção ao governo federal.

Nota-se que, ante as circunstâncias e consequências atuais da pandemia, os governos dos Estados têm a obrigação reforçada de pleno respeito aos direitos humanos ao empreender seus esforços internos de enfrentamento dos desafios expostos pela crise sanitária. Razão pela qual organismos como a CIDH emitem tais orientações, focadas nos padrões interamericanos e internacionais, acerca da universalidade, interdependência, indivisibilidade e transversalidade dos Direitos Humanos, particularmente, dos Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DESCA). E, ainda, garante espaços para que a sociedade civil, qualquer cidadão ou cidadã, possam reclamar e denunciar seu governo nacional por violações aos direitos mais básicos por ação ou omissão no combate à pandemia do novo coronavírus.

Daí a importância de, neste momento, reforçar a centralidade dos direitos humanos e seus mecanismos internacionais de garantias e proteção, sobretudo, dos direitos das pessoas e grupos em situação de maior vulnerabilidade. Aliás, lembre-se que foi a partir da denúncia e da atuação da CIDH, no caso Maria da Penha X Brasil, que resultaram as medidas administrativas, legais e judiciarias de combate à violência doméstica no Brasil.

* Gilnei J. O. da Silva é mestre em Direito, sócio-fundador do Instituto Dakini e integrante do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH)

Edição: Marcelo Ferreira