Rio Grande do Sul

Causa Indígena

Lideranças e entidades denunciam desmantelamento de setor indígena no governo do RS

Funcionários que há 20 anos lidavam diretamente com as comunidades indígenas foram afastados pela Secretaria

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Lideranças indígenas entregaram, na última quinta-feira (20), uma carta solicitando a manutenção da equipe existente - Arquivo Pessoal

“Durante essa pandemia, alguns políticos, algumas autoridades tiram proveito disso de fazer a transição de funcionários e nessa transição as nossas comunidades acabam perdendo muito. No momento a gente percebe que estão fazendo troca de funcionários que há anos trabalham junto às aldeias por algumas pessoas que não têm o mínimo conhecimento da questão indígena”. 

A afirmação é da liderança kaingang Eli Fidelis, vice-coordenador do Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), referente a remoção de dois funcionários da Divisão de Quilombolas e Indígenas, da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (SEAPDR). Os funcionários afastados na semana passada, Ignácio Kunkel e Márcia Londero, têm formação em ciências humanas e sociais, e vinham há anos trabalhando junto às comunidades indígenas. 

Diante disso, lideranças indígenas guarani e kaingang entregaram, na semana passada, uma carta sobre a situação. No documento as lideranças solicitam a necessária manutenção da equipe existente na Divisão Indígena e também a ampliação e qualificação da mesma, dando condições de trabalho e estabilidade de forma permanente e continuada, uma vez que esta qualificação é muito importante para os indígenas que vivem no Rio Grande do Sul.

“A gente veio em forma de protesto pacifico falar a respeito do que está acontecendo nesse setor que é fundamental para as questões indígenas, principalmente das pessoas que dependem da agricultura para sobreviver e do artesanato. Essa instituição e as pessoas as quais faziam um grande trabalho. Muitas coisas estão acontecendo e não deveriam. A pandemia é ruim para todos, mas infelizmente isso está dando pauta para que as pessoas não indígenas comecem a apertar o laço contra os direitos indígenas. Isso está errado, isso vem nos abater muito e nos prejudicar, sendo que o trabalho estava sendo bem feito”, manifesta-se a liderança guarani Zico da Silva. 

O documento foi entregue à Secretaria de Agricultura e ao Ministério Público. “ Esperamos que a secretaria e o Ministério Público Federal tomem as providências. Esse não seria o momento de fazer transição de funcionários. Como as comunidades no momento estão isoladas, as secretarias também estão isoladas para que ninguém corra esse risco. Na questão indígena fazemos esse pedido, que não se mexa em nada dos nossos direitos, que não façam mudança. Vamos espichar isso para frente”, expõe Fidelis. 


De acordo com o documento, a atual de divisão indígena vem trabalhando de forma integrada com as comunidades kaingangs e guaranis há mais de 20 anos / Arquivo Pessoal

Há anos trabalhando junto às comunidades indígenas 

Segundo uma fonte ouvida pelo Brasil de Fato RS, que pediu para não ser identificada, as políticas públicas voltadas aos povos indígenas são desenvolvidas há muitos anos por uma equipe pequena e muito empenhada, com qualificação nas ciências sociais. Esse grupo, com muito esforço, conseguiu construir uma relação de confiança e comprometimento com os povos atendidos e suas lideranças. 

Oriundos da Emater, os dois técnicos afastados foram cedidos para a SEAPDR através de um antigo convênio que envolve diversos outros profissionais. De acordo a fonte, que trabalha na secretaria, vários outros profissionais continuam cedidos pois o convênio está vigente. “Existiam seis cedidos da Emater e só os dois foram mandados embora”, revela. Na divisão agora estão um grupo de agrônomos e veterinários. “O afastamento dos técnicos com essa expertise humana e social vai fazer com que se desqualifique o quadro. Agrônomos e veterinários não vão dar o enfoque humano que precisa para que as políticas públicas sejam efetivas e eficazes”, destaca. 

Entre os trabalhos desenvolvidos pelos técnicos estava o fomento à agricultura de subsistência e segurança alimentar, fazendo consulta a todas as lideranças através de um diálogo muito próximo com os caciques e das plenárias do Conselho Estadual dos Povos Indígenas. Esses trabalhos são desenvolvidos em parceria com a FUNAI, SESAI, prefeituras, SEMA E CEPI, ampliando e otimizando os recursos. A equipe elaborava as atividades utilizando recursos de empresas devedoras de Reposição Rlorestal para construir planos territoriais e ambientais de terras indígenas no estado. Além disso, iam até as aldeias estreitar o diálogo, observando a política pública construída com a participação das comunidades, centrado na segurança alimentar e orientação das diferentes culturas indígenas do estado: guarani, kaingang e charrua. Entre os últimos projetos desenvolvidos estavam as agroflorestas. 

Desmantelamento em curso

De acordo com a fonte, o desmantelamento já vem ocorrendo há tempos. “Começou com a diminuição dos recursos que passaram de  R$ 1,7 milhão no governo Tarso para R$ 600 mil no governo Sartori. O desmantelamento se intensificou a partir da extinção da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (SDR) com sua fusão na atual SEAPDR. E nesse governo não teve recurso aplicado no ano passado. Os funcionários cedidos foram proibidos de dirigir, de assinar documentos e de participar de reuniões. Assim como a retirada da representatividade no Conselho Estadual dos Povos Indígena”, revela.

Ainda, segundo a fonte, a qualquer posicionamento cobrado vem a resposta de que a divisão está funcionando e que os técnicos que estão lá vão suprir as necessidades. “Só que eles não vão entrar nesse por menor de que as pessoas que estavam lá eram as únicas que tratavam das políticas indígenas. Os outros da divisão desconhecem completamente o trabalho, não tem nenhum contato com os povos, não conhecem lideranças, não sabem nem falar a língua deles, coisas que os dois sabiam e faziam há muito tempo. E é esse tipo de dessasistência que formalmente no papel parece não existir, mas que vai existir na prática, no desenvolver das políticas públicas”, salienta, ressaltando que essas políticas e a estrutura para desenvolvê-las estão sob ataques generalizados.

“Os povos indígenas sofrem notória e criminosa desassistência do governo federal, mas tambem do governo estadual, em especial da SEAPDR, pois é la onde fica a Divisão de Quilombolas e Indígenas”, finaliza. 


Entre os projetos desenvolvidos está a construção de planos territoriais e ambientais de terras indígenas / Arquivo Pessoal

Posicionamento da Secretaria

Questionada pela reportagem, a secretaria enviou o seguinte esclarecimentos quanto ao questionamento de desmantelamento da Divisão de Indígenas e Quilombolas da SEAPDR:

- O questionamento em tela se deve ao retorno de dois empregados da EMATER/RS que desempenhavam suas funções junto à Divisão de Quilombolas e Indígenas do DDAPA (Departamento de Desenvolvimento Agrário, Pesqueiro, Aquícola, Indígenas e Quilombolas). Restam na Divisão quatro (04) colaboradores e mais uma (01) servidora que está sendo relotada, totalizando cinco (05) profissionais.

- O DDAPA segue articulando e encaminhando as demandas competentes à Pasta, respondendo adequadamente.

- Com relação ao uso de veículos, NUNCA foi impedido uso de veículos para atendimento das demandas da Divisão. Sempre existiu uma avaliação com relação a relevância da demanda de campo recebida e as ações autorizadas eram sempre acompanhadas por um servidor do quadro da SEAPDR que dirigia o veículo, visto que os funcionários da EMATER não tinham autorização para dirigir.

- Quanto ao Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), estamos com processo para atualização da indicação dos representantes, inclusive demandada pelo próprio Conselho, sendo que serão indicados dois servidores do quadro da SEAPDR.

- A devolução de dois técnicos foi uma necessidade da EMATER diante do ajuste de horas técnicas no novo instrumento.

- As ações de fomento agrícola seguem sendo realizadas, sendo as principais listadas abaixo:

- Termo de Colaboração FPE 1982/2018 entre a Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural/RS - Emater/RS e a SEAPDR, para ações de fomento à Aldeias Indígenas (necessidade de ajustes no Plano de Trabalho, em andamento).

- Assistência técnica, extensão rural e social no Contrato vigente com a EMATER.

- Ações de fomento à produção de alimentos com a compra de sementes e pó de rocha. Processos em andamento (recurso tesouro 2020).

- Entrega de calcário para recuperação do solo. Processo em andamento, adesão à Ata de registro de preços (recurso tesouro 2020).

- Ações do Programa de Fomento às Atividades Produtivas Rurais, recursos do Ministério da Cidadania, executadas pela EMATER.

- Programa Cidadão Rural, com recursos do Fundo AMPARA, em elaboração (todos os públicos do DDAPA).

- Ações conjuntas com outras secretarias:

SJCDH: Diversas ações com o CEPI (que deve ser o protagonista): articulação na distribuição de cestas básicas, regularização fundiária, entre outras.

SEPLAG: auxílio na regularização de algumas áreas estaduais com ocupação/assentamento indígena.

SEMA: Doação de madeira para construção de casas e recuperação florestal de áreas degradadas através de compensações ambientais, entre outras.

Vozes de apoio às denúncias de precarização das políticas públicas 

Frente ao que que aconteceu, acadêmicos, instituições de ensino superior e organizações da sociedade civil que defendem os diretos e a cultura das populações tradicionais do estado se manifestaram publicamente sobre o caso. Para eles a descontinuidade do trabalho dos técnicos representa o aniquilamento das atividades e da interlocução que ambos estabeleceram com as aldeias indígenas, há mais de 20 anos.

Entre as entidades está o Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica do Rio Grande do Sul (CERBMA/RS), vinculado ao Conselho Nacional da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (CN-RBMA), que entregou ofício à secretária. No documento a instituição afirma que a atuação do Estado na implementação das políticas públicas nestas áreas exige, além de profissionais que tenham perfil específico, respaldo das lideranças internas das comunidades envolvidas, o que só é obtido pela trajetória de atuação destes técnicos ao longo das diversas gestões governamentais. 

Assim como o Comitê, o Círculo de Referência em Agroecologia, Sociobiodiversidade, Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (ASSSAN Círculo), ligado à UFRGS, ressalta que afastar esses profissionais pode significar a descontinuidade de políticas voltadas à agricultura e à segurança alimentar e nutricional, desenhadas coletivamente com o protagonismo indígena. "Esses técnicos estão a frente desse trabalho há décadas e  acompanharam a constituição do Conselho Estadual dos Povos Indígenas, criado em 2003, um dos principais espaços de interlocução dos indígenas com o estado, no qual as diretrizes para a implementação das políticas nas aldeias são estabelecidas",  reforça a coordenadora da ASSAN, Gabriela Coelho. 

Ainda segundo Grabriela, na Conferência Temática de Assistência Técnica e Extensão Rural Guarani, ocorrida em 2015 na aldeia Pindoty, a ação priorizada foi a ampliação e continuidade dos espaços de interlocução dos grupos com o estado. 

De acordo com a presidente da Sociedade Latino-americana de Etnobiologia, Rumi Kubo, nesse processo há uma construção de muitas pessoas que ficam na linha de frente, escutando e acompanhando os grupos e buscando compatibilizar ou fazer dialogar com as lógicas de funcionamento do Estado. “Parece-nos que destituir ou desmontar abruptamente algumas construções que foram coletivamente construídas não somente exclui grupos que já eram desfavorecidos, mas principalmente prejudica a sociedade", frisa. 

O posicionamento também é compartilhado pelos seguintes grupos: Conselho Estadual dos Povos Indígenas; Comitê Estadual da Reserva da Biosfera da Mata Atlântica; Pan Lagoas do Sul; Associação de Estudos e Projetos com Povos Indígenas e Minoritários (AEPIM); Conselho Indigenista Missionário (CIMI-SUL); Comissão Guarani Yvyrupa; Conselho de Articulação do Povo Guarani do Rio Grande do Sul (CAPG); Núcleo de estudo em agroecologia e produção orgânica da UERGS - Unidade Tapes; Ação Nascente Maquiné (ANAMA); Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpin-Sul); Fundação Luterana de Diaconia e Conselho de Missão entre Povos e Indígenas (FLD-COMIN) e Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS.

*Com informações da assessoria da ASSSAN Círculo

Edição: Marcelo Ferreira