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Melhores ou piores?

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Como dizia Pedro Casaldáliga, "saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite esperar” - Divulgação
A sociedade está doente. E não é apenas pela pandemia. É muito mais profundo

Manchete da Folha do Mate em 20 de agosto de 2020: ‘Venâncio Aires terá escola cívico-militar’. “Decreto muda nome da EMEF Cidade Nova para Escola Municipal Cívico-militar. Dois militares da reserva contratados pela Prefeitura vão atuar na gestão administrativa e de conduta. A contratação dos profissionais ficará a cargo da Prefeitura. ‘Assim como as despesas de uniformes, quando forem instituídos’, diz a secretária de Educação. Segundo a diretora da Escola, ‘fizemos abaixo-assinado. Lutamos desde o início, pois esse era um desejo da comunidade escolar. Vai trazer mais segurança, disciplina e regras’.”

A manchete e a notícia circularam e as conversas começaram a acontecer. Pessoas com quem conversei ficaram felizes, senão entusiasmadas, com a iniciativa do governo municipal. Imagina uma Escola cívico-militar em Venâncio Aires! Dizem e argumentam: “Ninguém aguenta mais. Se um aluno pede dez vezes para ir ao banheiro, a professora ou o professor têm que deixar ele ir. Senão tem um pai na escola no dia seguinte reclamando. Se um professor levanta a voz com um aluno, leva bronca da família. Que fazer então? É preciso disciplina, hierarquia, ordem e respeito, que se perderam em algum lugar do passado.”

Tento argumentar. A escola cívico-militar não é apenas isso. E mesmo se fosse só isso, já seria demais. ‘Por que uma escola municipal de ensino fundamental precisa de disciplina, hierarquia, ordem, regras e respeito militares?’ Digo: ‘Ela traz consigo muito mais. São valores, são formas de comportamento e convivência, são visões de mundo, são projetos de vida que vêm junto. Mas pouco ou nada adiantam meus argumentos. As opiniões e os juízos não mudam.

A sociedade está doente. E não é apenas pela pandemia. Esta apenas veio agravar a situação. É muito mais profundo. Basta ver a quantidade de assassinatos, os feminicídios, os assassinatos de jovens negros, a violência, a insensatez das polícias e das milícias, e assim por diante. Ou ouvir entristecido o desabafo do governador Flávio Dino: “Após perder o pai, Dino sofre ataques: que tipo de ‘gente’ é capaz de agredir uma família em luto” (Brasil 247, 27.08.2020).

A sociedade não será melhor, passada a pandemia. O problema ou os problemas vão muito além do Sistema de Justiça que está podre e dominado pelo capital, do crescimento acelerado da riqueza dos bilionários brasileiros. A sociedade não sairá dessa jornada melhor. Quando muito, igual ao que era antes.

Há um longo caminho pela frente a ser percorrido. O coronavírus pode, sim, estar desnudando parte das chagas e mazelas do capitalismo e da sociedade. Mas isso não é suficiente.  Não sou nada otimista no curto prazo. Por que muitas pessoas não usam máscara, sabendo que a vida está em perigo? Por que os governos, muitos governos, a começar pelo federal, preocupam-se mais com a economia e o lucro, que beneficia alguns poucos, do que com a vida? Por que a solução são escolas cívico-militares?    

Quando Escolas cívico-militares são tratadas como solução por parte expressiva da população, é porque a democracia está sendo ameaçada, os direitos humanos de qualquer cidadão estão sob risco, as leis que organizam a vida em sociedade não valem mais nada, a convivência civilizada perdeu sentido, a força bruta e armada está vencendo. Na sequência, vale o ‘bandido bom é bandido morto’, a proposta, benvinda para muita gente, de que todo mundo tem que estar armado, tem que saber atirar e poder matar sem nenhum drama de consciência.

A manchete no blog do Luís Nassif é esclarecedora: “Para onde vai a liberação de armas de Bolsonaro? (25.08). As investigações concluíram que a maior parte dos roubos é patrocinada por traficantes de drogas e milicianos.”  

Sou um eterno otimista, como sabe quem convive mais de perto comigo. Mas olho ao redor, vejo e ouço as pessoas, inclusive próximas, e suas opiniões, vasculho redes sociais. A tristeza e o desconforto se aprofundam. Como falou a Pastora Nancy Cardoso em 2019, “eles estão destruindo a vida em comunidade”. É o ultraneoliberalismo em estado bruto, é a violência naturalizada, o ódio e a intolerância em grau máximo. Os valores da vida em comunidade estão em frangalhos, assim como as possibilidades de uma economia solidária, o respeito ao diferente, o cuidado com a Casa Comum.

Isso não quer dizer perder a esperança em dias melhores em algum momento da história. A ditadura militar durou longos 21 anos. A sociedade brasileira, neste caso, soube encontrar caminhos de lutar pela democracia e fazer seu reencontro com a paz e a liberdade. Como disse Leonardo Boff numa ‘live’ dias atrás sobre ‘Espiritualidade na Ação’: “O que nos faz caminhar é a luta contra o sofrimento, é a responsabilidade coletiva, é a capacidade de união na dor e na alegria.” Ou nas palavras de Marcelo Barros, “a espiritualidade começa quando a gente cuida do outro. E como dizia Pedro Casaldáliga, saber esperar, sabendo, ao mesmo tempo, forçar as horas daquela urgência que não permite esperar.”

Edição: Katia Marko