Paraná

MACHISMO

Precisamos falar da misoginia em núcleos de escritores*

Formas de não “enxergar” o protagonismo feminino se multiplicam. Será que sabemos reconhecer?

Curitiba (PR) |
Texto reflete sobre o machismo dentro dos ambientes literários - Reprodução

Quando você está na fila do metrô e vê um anúncio de [insira qualquer produto aqui] e me vê ao seu lado. Now you see me. Quando eu te peço para falar e você se impõe, porque lidar com o silêncio é demais para você. Now you don’t. Quando eu morro pelo meu marido, meu amante, meu pai, meu irmão, meu vizinho e apareço nos jornais. Now you see me. Quando você compartilha ou ri dos meus nudes desautorizados nos milhares de grupos masculinos. Now you don’t.

Quando você quer escrever um livro e eu sou seu público-alvo.

Now you see me.

Quando estou gritando para que me escute, mas seus ouvidos estão fechados porque você só sabe enxergar a sua própria dor.

Now you don’t.

Ontem não houve nada demais, apenas mais uma treta em um grupo de Whatsapp em que comentários misóginos foram expostos. Nada novo sob o céu. Mas um grupo de mulheres se uniu e estas mulheres vão falar.

Traremos aqui os comentários machistas para refletirmos.

Falaremos de uma dor que desconhecem, mas que queremos te apresentar.

Não é um grito, é um hino.

We’ve been hearing you / Now we talk.

O machismo estrutural se revela quando em um debate de ideias se tenta ocupar o lugar de fala de uma mulher. É a mesma lógica de quando se inicia um diálogo sobre opressões de gênero, raça ou classe e não somos dessas minorias: pratiquemos uma escuta silenciosa e empática.

O lugar de fala reconhece o papel do indivíduo nas lutas, reconhece seu protagonismo. Não é o mesmo que silenciar o contraditório. É justamente o contrário: é deixar avançar as falas que foram sufocadas por séculos.

Não há diálogo sem escuta, e essa também é uma forma comum de machismo vivenciada por nós mulheres em nossas relações interpessoais, familiares e profissionais. É algo tão corriqueiro que, por muitas vezes, não nos damos conta. Pode estar nos menores gestos e se entremeia na vida das mulheres de tal maneira que não apenas machuca e ofende. O machismo mata todos os dias. E a raiz está justamente na normalização do lugar passivo de mulheres nas relações humanas e a falta de disposição para se colocar em seu lugar.

Formas de não “enxergar” o protagonismo feminino se multiplicam. Será que sabemos reconhecer?

Por exemplo quando uma mulher é vítima do “mansplaining”. O termo em inglês vem da junção entre “man” (homem) e “explaining” (explicar). E nada mais é do que quando um homem tenta explicar a uma mulher algo que ela domina, assumindo que ela não entende sobre o assunto — implicitamente, essa atitude subestima a inteligência da mulher.

Ou quando se é interrompida durante uma fala ou “manterrupting” que é quando uma mulher, não consegue concluir o que está sendo dito em meio a tanta obstrução masculina. Isso é muito comum no meio corporativo, onde mulheres seguidamente não conseguem expressar suas opiniões por serem interrompidas por homens ao seu redor.

Ou quando uma mulher tem sua ideia roubada ou “bropriating” que é quase como uma continuidade das duas situações anteriores e se dá quando o homem assume para si a palavra de uma colega silenciada e recebe os créditos por ela.

Ou então ser manipulada emocionalmente conhecido como “gaslighting”, onde a se faz a vítima acreditar que está constantemente enganada ou enlouquecendo pela distorção da realidade. Aquela velha: “Está de TPM?”; “Você sempre dá piti”; “Cadê o seu senso de humor? Era só uma brincadeira”; “Nossa como você é exagerada”; “Para de ser louca”. Frases como essa são muito comuns quando o que está em jogo é o abuso psicológico. Negar fatos gera a banalização dos sentimentos da vítima, retira sua autoridade e autonomia, como se ela fosse menos capaz de julgar o que está sentindo.

Essas práticas são parte do dia a dia das mulheres. São pequenas feridas que se acumulam durante toda a vida e delas escorre o sangue daquelas que sofrem violência física e abusos diversos. São as chagas abertas do machismo estrutural que está por toda parte.

Vai chegar um dia em que todas nós vamos deixar de aceitar elogios sobre qualidades tipicamente masculinas como forma de separar uma mulher do resto da comunidade feminina.

Vai chegar o momento em que vamos todas ver o comentário pelo que ele é: para elogiar uma mulher, eu a aproximo da lógica masculina como se isso a fizesse ser melhor que as outras, como se característica feminina fosse algo para se ter vergonha.

Não é engraçado que o mesmo mundo em que “ser esperta como homem” seja elogio é o mundo em que “ser uma mulherzinha” é uma ofensa? Respondo: Não, não é.

É que este mundo colonizado não nos deixa respirar. E a colonização se inicia no imaginário: para desmanchá-lo, é preciso ocupá-lo. Com discurso, palavras e novas percepções. Por isso, o debate. Por isso, o grito. Perdoa o barulho, a gente devia dizer; mas isso a gente não diz. Isso a gente não diz mais.

Como mulheres e escritoras temos a oportunidade ímpar de mostrar o mundo pela nossa perspectiva. E é daqui que vem também a responsabilidade de discutirmos as questões duras, como o silenciamento de minorias e o feminismo. Faz parte da nossa vivência e, portanto, temos propriedade para relatar as micro agressões que mantêm as mulheres em locais de submissão. E é responsabilidade de todos ter uma escuta empática e entender que todos temos muito a desconstruir e melhorar, mas que isso só será possível se formos capazes de silenciar para ouvir aqueles que sofrem algum tipo de opressão.

Estamos aqui em nome das mulheres que não têm a voz e o privilégio que temos para pedir que enquanto escritores tenhamos maior responsabilidade com as vozes que retratamos em nossas obras. Tenhamos empatia e carinho para ouvir que nem sempre estamos certos sobre tudo e está tudo bem. A única maneira para um homem fazer isso acaba sendo ouvir as mulheres de coração aberto e aceitar que a mudança acontece nas pequenas atitudes do dia a dia. É em nós que começa a revolução.

Queremos propor um minuto de reflexão trazendo abaixo, sem nomes, sem apontamentos, sem definições e não necessariamente em ordem, as falas ditas pelos atores do embate, para que possamos juntos reconhecer em todos nós as muitas (mesmo que mínimas) expressões do machismo que sofremos e que praticamos:

  • Uma interpretação dela que achei meio forçada foi quando ela falou que o garçom, no restaurante, sempre fala diretamente com o homem. Tipo, nunca passa pela cabeça dela que ele talvez esteja querendo demonstrar respeito pelo fato de ela ser compromissada.
  • quer dizer que só porque uma mulher tem a palavra direcionada ela tá sendo cortejada?
  • Se uma mulher falar que o marido não pode tirar a barba, isso significa que ele é propriedade dela? Não.
  • Já me ocorreu 765 vezes sair de balada, algum cabra chegar em mim, dizer que to com namorado e o cara pedir desculpa pra quem? Pro namorado. Não pra mim.
  • Tem muita mulher que se sente desvalorizada só porque o cara não pagou a conta kkkkkkkk
  • Eh triste ver q o “tenho namorado” eh um recurso p afastar caras insistentes q o pior d tudo eh q funciona
  • A velha história da mulher ter que se fazer de difícil, senão não é respeitada, porque tem a mulher pra casar e a pra se divertir.
  • O fato é o seguinte: mulher é levada menos a sério quando tenta ser firme, do mesmo jeito que homem é levado menos a sério em situação de vulnerabilidade.
  • Por exemplo, homens cumprem uma pena maior pelo mesmo crime cometido.
  • Problema é que mulher precisa se masculinizar pra ser respeitada. Tudo que se aproxima do feminino é inferior.
  • Homens são 95% das mortes por mercado de trabalho, e nem por isso eu acho que auxílio nessa área deva ser negada às 5% de mulheres que morrem.

O feminismo nasceu para que mulheres decidam o que é ser mulher. O papel do homem nessa causa é dar espaço para que elas decidam sobre sua própria luta e amplificar suas vozes para falarem de suas próprias opressões. Mulheres são diferentes de homens, em diversos aspectos, mas o que está em jogo aqui é estabelecer igualdades de direitos, oportunidades, equidade.

Utilizar argumentos como “homens cumprem uma pena maior pelo mesmo crime cometido” para calar lutas igualitárias como o contraste de salários, o índice de feminicídios e violência de gênero dentro e fora de casa não só não é produtivo para a discussão, mas desvia a atenção da nossa pauta e nos responsabiliza por algo que sequer foi nossa escolha.

Que fique claro: o feminismo não criou as penas mais longas para homens, o feminismo não criou o serviço militar obrigatório para homens, inclusive porque o feminismo sequer teve participação nas guerras territoriais ou na forma como o sistema militar foi organizado. Então qual é o sentido de nos colocar no meio da discussão?

Perceba a diferença: o que estamos denunciando são violências e formas de silenciamento que homens incutem sobre mulheres, o que foi denunciado por vocês nas reclamações foram acusações sobre o modo como o próprio sistema patriarcal está construído. Transferir estas acusações no meio de um momento em que as mulheres finalmente estão falando sobre suas questões não é ingênuo, é mais uma forma, seja consciente ou inconsciente, de nos calar.

E se você, homem, está aí em sua casa lendo esse texto e se perguntando “então o que eu posso fazer?” ou até mesmo “mas eu concordo com tudo isso, eu sou um cara feminista!”, nós só temos um pequeno pedido: não interrompa ou roube nosso protagonismo nessa luta. Se você está presenciando uma cena de misoginia e há uma mulher presente, não roube dela a chance de falar. O mesmo é verdadeiro para situações de racismo, homofobia e xenofobia.

O lugar de fala nunca foi tão importante. Utilizar seus privilégios como homem para ajudar a causa não é falar no lugar de uma mulher, mas sim usar os espaços unicamente masculinos para isso. Seu amigo soltou uma frase machista na mesa de bar com “os parça”? Chame a atenção dele. Você pode ser — e queremos que seja! — nosso aliado, mesmo sem ser o protagonista da luta. Um colega vazou uma foto íntima de uma mulher? Converse com ele e, de preferência, denuncie. Podem parecer atitudes pequenas, insignificantes até. Mas não são. São os locais onde nós não estamos que precisam de você.

Sendo assim, faremos uma breve reiteração. As pautas supracitadas referentes ao gênero masculino são sim importantes, mas devemos lembrar que elas sempre foram e sempre serão prioridades dentro da sociedade. Enquanto que uma gama de questões femininas seguem — em pleno século XXI — sem a mínima visibilidade. Quanto é discutido sobre pobreza menstrual, proteção sexual na relação lésbica e afins? Quanto se pesquisa sobre isso? Quanto é investido? Visto que suas necessidades (e vontades) seguem em disparada a nossa frente, talvez seja de interesse humanitário parar, por vezes, e escutar o que as mulheres têm a dizer e sobre o que.

Mais do que agressões somentes físicas, o machismo deve ser notado em seu caráter estrutural e institucional — os ‘’pequenos’’ fatos e as ‘’pequenas’’ atitudes. Se mulheres se posicionando e falando firmemente passam por agressivas, loucas ou vingativas, há algo de muito errado nas instituições atuais, inclusive nas quais — nós escritores — ocupamos. Falta espaço, falta respeito, falta visibilidade.

E, desse modo, voltamos a questão principal. Não basta nos ver quando lhe é de interesse, falta nos ver quando nossa presença perturba a ‘’normalidade’’ e gera incômodo, quando somos assertivas na fala e inexoráveis quanto a atitudes e posicionamentos. É de bom grado se atentar a nós, porque nós certamente nos atentaremos a vocês.

And we see you.

Now you see me?

Retirado originalmente: https://medium.com/comunidade-writogether/now-you-see-me-now-you-dont-921f48d60b3b

Assinam este texto:

*Carol Façanha, 27, é escritora e doutoranda de literatura de língua inglesa na UERJ. Trabalha ao lado do autor de terror nacional, André Vianco, na WolfPack. Escreve e pesquisa sobre personagens femininos através da Poética Gótica e da Distopia Contemporânea.

Ellen Vitalino, 18, é licencianda de Arte-Teatro na UNESP e escreve nas horas livres. Integrante do movimento LGBTQ+ e do movimento feminista, vem desenvolvendo um trabalho árduo dentro da poesia e da ficção, a partir de um viés mitológico brasileiro.

Patricia Manczak, 42, Psicóloga, Pós-graduada em Psicogerontologia. Membro da União Brasileira de Mulheres — UBM. Pesquisa sobre violência de gênero e apoia coletivos de mulheres com objetivo de empoderar, informar e promover a equidade de gênero na tecnologia.

Hannah Schröer, 27, é estudante de Publicidade e Propaganda e escritora nas horas vagas. Gosta de arte, filmes românticos e temas que envolvem feminismo e os direitos de minorias como LGBT+, mulheres, negros e indígenas.

Nina Paschoal, 26, São Paulo. Mestra em História. Pesquisadora de história da arte, orientalismo e gênero. Técnica em museologia e educadora. Iniciante em marketing digital. Bailarina e professora de Dança do ventre. Amante das artes.

Lia Cavaliera, 22, da misteriosa e esquecida terra paraense, faz Produção Editorial e é amante de arte. Publicou A Casa que Sobra, O Coração que Deseja, O Circo que Ri, e está em antologias, como O Infame Clube Vitoriano das Mulheres Livres (Wish).

Amanda Lomba, 27, Rio de Janeiro. Formada em Letras Português-Inglês pela UFRJ. Lésbica e feminista, escreve livros de ficção com protagonismo LGBTQIA+ e luta pela igualdade e representatividade na literatura e no entretenimento em geral.

 

Edição: Gabriel Carriconde