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Hora de escolher entre a rachadinha e a história

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No dia 4 de setembro de 1970, o médico Salvador Allende ganhou as eleições diretas para presidente no Chile, com uma maioria de 36,2% dos votos - Reprodução
As eleições municipais já dão indícios que poderão ser tornar mais um episódio deste tortuoso dilema

Neste 4 de setembro de 2020 registrou-se os 50 anos da vitória de Salvador Allende nas eleições presidenciais do Chile de 1970. Esta vitória foi confirmada, em segundo turno, no dia 24 de outubro do mesmo ano.

Pela primeira vez na América Latina, um candidato e um programa de esquerda foram eleitos pelo voto da população. Esse processo somente viria a se repetir no Continente décadas depois, já no século XXI, com as vitórias de alguns candidatos populares e progressistas como Lula em 2002.

Três anos depois da eleição, em 11 de setembro de 1973, um golpe liderado por um facínora e corrupto derrubou o governo da Unidade Popular e assassinou Salvador Allende em plena sede do governo, o Palácio La Moneda.

Passados estas cinco décadas, o protagonista do golpe, General Augusto Pinochet, tem sua memória guardada dentro de um saco preto no mundo da memória conhecido como a “lata de lixo da história”, muito bem sistematizada e representada por Roberto Schwarz. Nesta lata, a memória de Pinochet habita perpetuamente com as memórias sobre outros genocidas, torturadores, corruptos e facínoras.

Ao contrário, Allende, morto como indivíduo, vive como símbolo da boa esperança na memória das ideias generosas de liberdade, democracia e igualdade. Allende, ao ser assassinado por ordem de Pinochet, assim como sentenciou sobre si Getúlio Vargas em sua “Carta Testamento”, deixou a vida para entrar na história. Pinochet e os seus não imaginavam que aquelas bombas em La Moneda, naquele 1973, retiraram Allende da vida para colocar-lhe na história.

Esse é um dilema que persegue a humanidade, em especial a humanidade moderna. Um dilema que abstratamente parece simples de dissolver, mas que nas relações duras da economia, da guerra, da ética, da política e das utopias demonstra-se complexo e tortuoso. Tão tortuoso que, em não raros casos, as elites abdicam do caminho virtuoso do progresso civilizatório para escolherem o caminho da imposição, da segregação, da exploração, da violência, da hierarquia e da desigualdade. Foi assim, neste processo político, que se fizeram o nazi fascismo na Europa, o colonialismo sobre a África, as ditaduras sobre a América Latina.

O Brasil está imerso nesse dilema desde a ascensão do reacionarismo que levou à vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. Esta vitória organizou o bloco reacionário que restaurou uma política de segregação racial, de exploração do trabalho, do ódio como conteúdo. Uma simbiose entre o neoliberalismo radicalizado e autoritário com um neofascismo restaurador do atraso.

Esta emergência da extrema-direita e do neoliberalismo não se fez sem contestação, porém. A vitória de Bolsonaro nas eleições deu sobrevida à hierarquia do Século XX no Brasil, mas a defesa de um país democrático existe, se organiza, resiste.

Todas esses movimentos de contestação ao neofascismo e ao neoliberalismo, ainda que derrotados episodicamente, se tornaram referência para uma disposição de construir um movimento de contra fluxo. O movimento contra o golpe do impeachment de Dilma, o “ele não” - movimento das mulheres de contestação a Bolsonaro durante as eleições -, o desmascaramento da armação realizada pela “Lava Jato”; se pareceram ser murros em ponta de faca em algum momento, hoje se mostram episódios de um processo maior e continuado de construção possível de uma reviravolta no país.

Estas eleições municipais começam a dar indícios que poderão ser tornar mais um episódio deste tortuoso dilema. Se apresentarão as candidaturas ancoradas no bolsonarismo e, com eles, a defesa dos valores mais autoritários e reacionários que não poderíamos imaginar estivessem vivos neste século, como a discriminação racial, a coisificação da mulher, a hiper exploração do trabalhador, a desdemocratização e a guerra de todos contra todos em um individualismo radicalizado onde o vitorioso já está estabelecido, os muito ricos do capital rentista. De outro, começam a se erguer candidaturas antifascistas e antineoliberais com força e respondendo às melhores conquistas realizadas neste país desde a derrota do Regime Autoritário de 1964.

O dilema está posto portanto. Como expressão da dominação e da hegemonia neoliberal, grandes parcelas dos trabalhadores pobres do país ainda são a base de sustentação das explicações conservadores e retrógradas, negacionista, anti-iluminista. A constância e a existência de alternativas, entretanto, pode fazer erodir esta sustentação.

As candidaturas de esquerda, democráticas e civilizatórias, que se apresentam em especial nas capitais têm um grande papel a cumprir. Estas alternativas permitirão contrapor projetos, entre o passado e o futuro. Entre a afirmação da sociedade hierarquizada e autoritária e o ideário igualitarista.

A contestação social demonstra que o axioma neoliberal do fim da história não passa de desejo, de propaganda ideológica. A história está em curso. Alguns de seus protagonistas estarão ao lado de Allende, outros no mesmo lugar de Pinochet.

Edição: Katia Marko