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Intolerância

Artigo | Não é novidade o viés racista do futebol

Desde o nascedouro do esporte essa violência existe e o acompanha até os dias atuais

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
O rascimo é perverso e violento, nos retira a humanidade, nos objetifica e nos animaliza. Não foi apenas o Neymar que ele agrediu, mas todos os milhares e milhares de negros do mundo. - Foto: Divulgação

O esporte é um dos espaços mais almejados para ascensão no imaginário da juventude brasileira, no entanto, é também um espaço perverso e violento para quem é negro num país estruturado pelo racismo. Paira nesse imaginário a ilusão do esporte como a única forma de crescimento e inclusão do jovem negro da periferia na sociedade. Uma armadilha do esporte espetáculo e da mídia, que, muitas vezes, reproduz padrões eurocêntricos e racistas. Nesse caminho, acabamos homogeneizando os indivíduos, a cultura, o conhecimento e o esporte.

Não é de hoje e nem é novidade o viés racista do futebol. Desde seu nascedouro essa violência existe e o acompanha até os dias atuais. Na sua gênese, considerado um esporte nobre, apenas a elite - leia-se: brancos - podia jogar. Os pretos não tinham espaços para aquela prática esportiva. Estamos falando do final do século XIX e início do século XX, pós período de pseudoabolição, no qual outro desafio é colocado para a população negra: o enfrentamento as mazelas sociais urbanas para as quais essa parcela da população não fora preparada. 

Apesar do sentimento de ânimo e uma sensação de liberdade no pós-abolição, a classe dominante não aceitou e não integrou esse alto contingente de negros recém-libertos na sociedade. Ao chegar às zonas urbanas, oss negro não tinham perspectiva. A tentativa de superar as dificuldades pela falta de trabalho, comida e moradia era o mais importante, mas suprir as suas necessidades nem sempre era possível. 

Outro fator a se destacar é que existiu e existe todo um aparato político, social, cultural, educacional e filosófico que estruturou no pensar e no agir que a mulher negra e o homem negro são inferiores. Uma construção social do pensamento brasileiro alicerçado à luz da estrutura racista colonial brasileira, em que o branco é detentor exclusivo de humanidade, ou seja, o outro não é humano. Melhor dizendo, ser negro não é ser humano. E todo mundo deseja ser humano! 

Grada Kilomba nos alerta que “a língua tem uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade”. A partir dessa reflexão, nos afastamos de tudo que significa negrura interpretado como ruim e do entendimento de que o bom é a brancura, na qual,  nos afastamos de tudo aquilo que lembre que somos negros.

Esse intróito se faz necessário para que possamos entender o que reverberou, nas últimas semanas, nas redes e nas mídias sociais, em relação ao racismo sofrido pelo jogador Neymar Jr, chamado de “macaco” pelo zagueiro Álvaro González, na partida do campeonato francês. 

O racismo é o crime perfeito, como nos revela Munanga, porque a própria vítima é lida como responsável pela violência. Quem cometeu a violência não tem nenhum problema. O rascimo é perverso e violento, nos retira a humanidade, nos objetifica e nos animaliza. Não foi apenas o Neymar que ele agrediu, mas todos os milhares e milhares de negros do mundo. 

Vivemos em uma sociedade que  é pensada para o processo de embranquecimento, na qual Neymar e muitos de nós fomos inseridos. Outrora Neymar se afirmou como branco, hoje se afirma como negro, mas quem nunca o fez? Quem nunca pensou em alisar o cabelo para ser aceita? Quem nunca raspou o cabelo para negar sua negritude e se aproximar do padrão? Quem nunca pensou afilar o nariz para tirar as marcas da negrura? Afinal, a eficácia do racismo é essa de não se entender como preto numa estrutura colonial racista. O processo de negação, o autoódio que o racismo constrói em nós, pretos, resulta na não aceitação e em não querer ser preto.

Neusa Santos Sousa, em seu livro “ Tornar-se negro”, nos alerta: “ser negro não é uma condição dada a priori ser negro é um vir a ser é um tornar-se é um processo de transformação dentro de um realidade social”.

A ascensão social conquistada por meio do esporte nos aproxima do entendido como humano, ou seja, nos deixa mais perto do branco. Quanto mais ascende, menos próximo dos outros negros você vai estar, menos se reconhece positivamente na negrura, pois a estrutura racista colonial brasileira impossibilita você ser negro e humano ao mesmo tempo. Ou um ou outro. Então eu me afasto de ser negro. 

Neymar não foge desse caminho atravessado por leituras subliminares do que é o desejo desse lugar de humanidade, dessa identidade que precisa ser alcançada para chegar à branquitude, uma verdadeira violência da nossa subjetividade.

Outrossim, o zagueiro Álvaro Gonzalez, não enxerga Neymar, enxerga um corpo preto que precisa ser depreciado e animalizado. Esse olho do racismo e do colonizador viu ali um corpo preto não identificado como humano. Não é a pessoalização de Neymar que queremos discutir, mas a causa de um povo no despertar para o racismo. Essa é a dimensão que precisamos entender. Como nossa subjetividade é violentada cotidianamente nessa estrutura racista, que é brutalizada no campo das palavras.

Começar a se perceber enquanto preto é um processo, uma construção e Neymar chega a esse processo que deveria ser acolhedor e não questionador. Afinal, a tomada de consciência do Neymar se deu a partir da percepção da violência que sempre nos acompanha e que faz questão de nos alertar que aquele não é o seu lugar.

Finalizo com essa grande ancestral, Neusa Sousa Santos, que diz que ser negro é um eterno vir a ser, não basta apenas se identificar. E o que muda na realidade concreta? Você se percebe como negro/ a partir de que matriz cultural. Precisa de uma localização e de um epicentro para que se construa um consciencia racial positivada, das nossas próprias narrativas, que se encontra com a nossa subjetividade. Seja bem-vindo, meu irmão!

*Professora IFCE Campus Jaguaribe e Coordenadora do Neabi Campus Jaguaribe

Edição: Monyse Ravena