Rio Grande do Sul

Coluna

O Banco Mundial, o FMI, a OMC, a América Latina e a fome

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Queda do PIB no continente trará em 2020 um aumento da extrema pobreza de 16 milhões de pessoas em relação ao ano anterior, totalizando 83,4 milhões - Leonardo de França
Cerca de duzentas empresas transnacionais controlam um quarto dos recursos produtivos mundiais

O estudo do Banco Mundial “Como evitar que a crise da Covid-19 se transforme em uma crise alimentar: Ações urgentes contra a fome na América Latina e no Caribe” denuncia o crescimento significativo dos níveis de fome na região e argumenta que, pela primeira vez, haverá um impacto conjunto na educação, saúde e renda, com quedas drásticas no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Segundo o relatório elaborado pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) e pela CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), após sete anos de crescimento lento, a América Latina e o Caribe poderão ver a maior queda do PIB regional em um século (-5,3%), o que trará em 2020 um aumento da extrema pobreza de 16 milhões de pessoas em relação ao ano anterior, totalizando 83,4 milhões. O impacto na fome será, também, muito significativo, considerando que em 2016-2018 já havia 53,7 milhões de pessoas em grave insegurança alimentar na América Latina.

Segundo o documento, a saída passa pelas escolhas e ferramentas políticas adotadas pelos governantes. Propõe uma série objetiva de ações econômicas para a retomada do crescimento e abastecimento de alimentos, com duas ações mais urgentes. O aumento em 20% dos valores médios de financiamento para os grandes produtores, através de uma linha especial de crédito, a partir de bancos multilaterais e bancos de desenvolvimento, em condições favoráveis, que somariam 5,5 bilhões de dólares. E um kit básico de 250 dólares por unidade camponesa de produção, entregue em uma única parcela, para compra de fertilizantes, sementes e outros insumos, considerando 6,8 milhões de famílias camponesas e totalizando um montante de 1,7 milhões dólares. Além de um Bônus Contra a Fome para a população em insegurança alimentar profunda, materializado através de transferências monetárias, cestas básicas ou cupons de alimentos, com um custo estimado em 23,5 bilhões de dólares.

São medidas que embora venham carregadas de um verniz de boa vontade, merecem ser tratadas com a seriedade que o tema demanda. Em primeiro lugar, a crise econômica agravada pela crise sanitária é um fato concreto. Todavia, os países do sul vinham com crescimento econômico estagnado desde os anos 2008/2009, salvo raras exceções. Em segundo lugar, o estudo não questiona quem controla a cadeia do sistema alimentar globalizado, algo extremamente importante e que a crise da covid-19 questionou. Atualmente, cerca de duzentas empresas transnacionais controlam um quarto dos recursos produtivos mundiais, exercendo um monopólio sobre o conjunto da cadeia alimentar, da produção à distribuição varejista, passando pela indústria da transformação e comercialização. Tal sistema subjuga os camponeses e a agricultura familiar e limita as escolhas dos consumidores.

É esse conglomerado que controla os preços e a distribuição dos alimentos no mundo. Para exemplificar, cerca de 10 desses conglomerados transnacionais do agronegócio controlam um terço do mercado de sementes e 80% do mercado mundial de pesticidas, entre as quais a Monsanto, a Pioneer e a Syngenta. Outras 10 sociedades, entre as quais a Cargill, controlam 57% das vendas dos 30 maiores varejistas do mundo e representam cerca de 37% das receitas das 100 maiores sociedades fabricantes de produtos alimentícios e de bebidas. Segundo Denis Horman, do Grupo de Recherche por Uma Estratégia Econômica Alternativa, “É esse conglomerado que controla os preços e a distribuição dos alimentos no mundo. Para exemplificar, cerca de dez desses conglomerados transnacionais do agronegócio controlam um terço do mercado de sementes e 80% do mercado mundial de pesticidas, entre as quais a Monsanto, a Pioneer e a Syngenta. Dez outras sociedades, entre as quais a Cargill, controlam 57% das vendas dos trinta maiores varejistas do mundo e representam cerca de 37% das receitas das cem maiores sociedades fabricantes de produtos alimentícios e de bebidas.

Segundo Denis Horman, do Grupo de Recherche por Uma Estratégia Econômica Alternativa, seis sociedades controlam cerca de 85% do comércio mundial de cereais; oito dividem cerca de 60% das vendas mundiais de café; três controlam mais de 80% das vendas mundiais de cacau e três dividem entre si 80% do comércio mundial de bananas. São elas que controlam a logística, o seguro e a distribuição dos alimentos. Os preços dos alimentos são fixados por seus operadores nas bolsas de matérias-primas agrícolas, onde commodities como a soja são vendidas mesmo antes de serem plantadas.

Uma parte importante que dá sustentáculo a esse imbricado sistema é constituída por Banco Mundial, FMI e OMC, considerados por Jean Ziegler os três cavaleiros do apocalipse da fome organizada. O FMI e o Banco Mundial nasceram em 1944, em Bretton Woods (coração do sistema financeiro mundial). A OMC nasceu em 1995, sucedendo o GATT (General Agreement on Tariff and Trade), instaurado pelos Estados industriais após fim da Segunda Guerra Mundial para harmonizar e reduzir gradualmente as tarifas aduaneiras. Dentre os três os mais agressivos são a OMC e o FMI. Como afirma Marcel Mazoyer acerca da política adotada pela OMC, “a liberalização do comércio agrícola, reforçando a concorrência entre agriculturas extremamente desiguais, assim como a instabilidade dos preços, não faz mais do que agravar a crise alimentar, a crise econômica e a crise financeira”. Na mesma linha, Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda do Brasil, afirma: “o papel da OMC na liberalização total dos fluxos de mercadorias, de patentes, de capitais e de serviços é o desarmamento unilateral dos países do sul”.           

As ações coordenadas dessas três organizações, perfiladas à estratégia do império norte-americano, têm impacto significativo sobre as políticas adotadas na América Latina e Caribe. Nos últimos dez anos sucessivas ações golpistas despojaram governantes que buscavam adotar medidas econômicas alternativas e corrigir desigualdades históricas no continente: a distribuição de renda e o combate a fome eram as principais. A América Latina como um todo viu-se repentinamente despojada de suas prerrogativas de soberania, voltou a agenda galopante de privatizações, retirada de direitos e desemprego estrutural. Consequentemente, as vítimas da fome e da subnutrição aumentaram vertiginosamente.

Os três cavaleiros do apocalipse estão aí. Preocupados com os bárbaros do sul global, de mãos estendidas para financiar um novo ajustamento estrutural. Vale lembrar que o ajustamento estrutural do FMI nos anos 1990 garroteou a América Latina e nos legou milhões de famélicos. O Brasil era um dos devedores e quem pagou a conta foi vítima da agenda de desestabilização que assola o continente. A fome é sim um problema mundial e deve estar na agenda política e econômica de todos os países, combatida com cooperação e sem ferir a autonomia e a soberania das nações, alicerces dos povos livres.

Edição: Marcelo Ferreira