Paraná

Entrevista

"Não nasci no corpo errado, nasci na sociedade errada"

Letícia Lanz, candidata do PSOL à prefeitura de Curitiba, fala de planejamento da cidade, conservadorismo e preconceito

Curitiba (PR) |
Lanz foi a primeira convidada na série de entrevistas do Brasil de Fato Paraná com candidatos à prefeitura de Curitiba - Divulgação

Letícia Lanz (PSOL) foi a primeira entrevistada da série de conversas que o Brasil de Fato Paraná está fazendo com candidatas e candidatos à prefeitura de Curitiba. Ela tem 68 anos, é psicanalista, mestre em Sociologia e Economista com curso de Mestrado em Administração. Trabalhou por 30 anos como Consultora Empresarial na área de Planejamento, Recursos Humanos e Formação Gerencial. É poeta, pensadora e autora de diversos livros, entre eles "O corpo da roupa", o primeiro manual, compêndio ou livro introdutório sobre Estudos Transgêneros escrito originalmente em língua portuguesa.

Sobre a cidade, Lanz fala do planejamento feito há 50 anos, que é usado até hoje numa realidade completamente diferente. Defende o socialismo, que, segundo ela, é criticado por quem nem sabe o que isso significa. Única candidata transgênero concorrendo à prefeitura de uma capital no Brasil, Lanz fala também sobre os preconceitos enfrentados na política e sobre conservadorismo e o modo reacionário no qual entrou parte da população brasileira.

A íntegra da entrevista está no canal do Brasil de Fato Paraná.

Leia os principais trechos abaixo:

Brasil de Fato Paraná – Em pesquisa divulgada recentemente sobre as eleições para a prefeitura de Curitiba, o atual prefeito, Rafael Greca, tem 47% das intenções de voto. No campo progressista, o candidato Goura foi o que apareceu melhor, com 5%. A senhora não pontuou, mas teve índice de rejeição de 4%. Eu gostaria que a senhora analisasse isso.

Letícia Lanz – Olha, não é surpresa nenhuma para mim. Lido com isso de janeiro a dezembro, a vida inteira, mentiras, estatísticas e coisa e tal... Nas últimas eleições, é bom lembrar que quem hoje ocupa o cargo de presidente da República era um dos últimos colocados. Havia gente muito melhor que ele, e hoje ele se encontra lá. Duvido muito dessas pesquisas feitas assim, em que uma pessoa não tem nenhuma predileção e ainda tem rejeição. Ninguém me conhece. Pouca gente me conhece na cidade. Essa rejeição, só se for pela minha condição de travesti. Porque, politicamente, ninguém sabe das minhas ideias. Pode ser também uma rejeição ao PSOL, que por estar na esquerda também é amaldiçoado. Isso é uma característica do Brasil contemporâneo. Nem sabe o que é esquerda e amaldiçoa tudo o que está à esquerda. O que eu posso comentar é que é uma pesquisa que revela uma tendência e nessa tendência eu saio com 4% negativos. Se eu conseguir conquistar pelo menos esses 4%, vou deixar de ser negativa e passo a ter 0% limpo, né?

BDF – Curitiba nas últimas eleições teve um voto conservador, com mais de 70% votando no atual presidente. E com todos os problemas que a gente vê na Prefeitura, o atual prefeito tem a possibilidade de ser eleito no primeiro turno. Por que há tanto conservadorismo?

Letícia – Primeiro, do ponto de vista sociológico, isso não é conservadorismo, são posições reacionárias.  Conservador é o indivíduo que tem alguns princípios básicos que ele quer conservar. Algumas crenças muito bem fundamentadas, que ele leva adiante e defende com muita propriedade e fundamentação. O que nós temos no Brasil e, especialmente em Curitiba, não são pessoas conservadoras. São pessoas reacionárias, que simplesmente reagem a uma situação sem nem saber sequer o que está acontecendo. Elas confundem socialismo com formas de intervenção que hoje estão acontecendo embaixo do que elas chamam de liberalismo. Socialismo, para quem não sabe, é o contrário de individualismo. É o contrário de egoísmo. Então, socialismo é estar voltado para os interesses da coletividade, essa mesma coletividade que na atual pandemia se revelou necessária. O socialismo é aquele que está defendendo as pessoas, e não o lucro financeiro. Porque o lucro financeiro não se interessa pelas pessoas. As decisões são tomadas hoje no Brasil e, neste município de Curitiba, tendo em vista o interesse das corporações. Os interesses do capital financeiro. Os interesses das pessoas parecem vir em último lugar, quando vêm, e isso se manifesta em todas as ações da Prefeitura.

Por exemplo, nessa ação de deixarem quebrar os pequenos negócios na periferia, mas injetarem 200 milhões de reais nas empresas de transporte urbano. Então você vê claramente a opção que foi feita. Desinteresse pelas pessoas, que se revela agora também nessa loucura de reabrir as escolas municipais. O que vai estimular todas as outras escolas particulares a quererem abrir. Desinteresse pelas pessoas que você vê na atitude de manter shoppings abertos em véspera de datas que geram muito lucro.

Existe claramente uma opção que não é pelas pessoas, especialmente pelas pessoas mais esquecidas e marginalizadas da nossa sociedade curitibana. População essa que cresce a olhos vistos todos os dias. Passe por uma das grandes vias de Curitiba e veja embaixo de todas as marquises, todas as noites há um verdadeiro hotel a céu aberto. Que pessoas são essas? Não são os moradores tradicionais de rua, que toda a cidade tem. Esses não, foram expulsos do mercado de trabalho, perderam moradia, perderam a renda, perderam a fé na vida, perderam os horizontes. E de que forma eles são tratados? O que é feito por eles com um programa sério? Não é paliativo nem esmola não. Um programa consistente, que vise atender à população, e não como se faz neste país quando apertam as coisas.

BDF – A senhora tocou no tema do transporte coletivo, no seu programa de governo fala-se de “tarifa zero”. Esse programa fala que Curitiba tem uma das maiores tarifas do Brasil, e é de conhecimento público que este é um setor para o qual o atual prefeito tem uma atenção especial, como a senhora mesmo mencionou com esse aporte para “salvar as empresas de ônibus”. Propor a tarifa zero é “comprar briga” com esse empresariado. É possível fazer isso?

Letícia – Comprar briga é um termo muito primitivo. Quando a gente fala de um planejamento sério, de construir uma cidade séria, essa conversa de comprar briga parece coisa de comadre discutindo na cerca. Não se trata disso. Se trata de planejar uma cidade. Há 50 anos, Curitiba tornou-se exemplo da cidade planejada no Brasil e no mundo. Tornou-se referência de uma nova perspectiva urbana. Acontece que isso foi há 50 anos, e você vê o mundo de 50 anos atrás e o de hoje, não tem praticamente nada a ver um com o outro. A cidade então mudou por completo, e todas as crises que nós temos hoje, precipitadas pela pandemia, vão fazer com que essa cidade se modifique mais ainda. Há 50 anos o transporte urbano era essencial porque transportava pessoas de um bairro para o outro, e o volume desse transporte era aceitável na época, não era essa coisa extraordinária que é hoje. A cidade estava em geral concentrada no centro e em pequenas pequenos núcleos em volta desse centro, as periferias eram remotas. Ao longo de 50 anos o que aconteceu? A maior parte da cidade hoje existe na periferia, e o transporte urbano serve para quê? Para pegar gente periférica para colocar na zona central para trabalhar e colocar de volta lá na periferia no final do dia. Então por que não deixa essas pessoas lá? Por que não encontrar emprego e colocação para elas lá? Por que não pensar em cidades menores dentro da cidade grande. Curitiba tem um potencial extraordinário para isso, porque as periferias que foram se formando em torno do núcleo central são periferias fortes, que têm vida própria, negócios próprios, são bem equipadas. Não são como o Centro, não têm dinheiro, mas se em vez de injetar dinheiro em grandes corporações, você injetar nesses núcleos, eu garanto que a coisa vai mudar. E aí transporte vai cair do galho.

Na França, agora na última eleição, a vedete foi a cidade de 15 minutos. Uma cidade onde você chega em qualquer lugar a pé ou de bicicleta em 15 minutos. Essa é a vedete. Imagina que há 50 anos a vedete era falar em metrô. Metrô, hoje, é uma coisa totalmente superada, cidades grandes que têm metrô estão querendo se livrar dele. E ainda tem gente aqui pensando em pôr metrô. O que nós temos que fazer é repensar a cidade, e não arrumar soluções do tipo vai desapropriar... Não tem nada disso, você simplesmente planeja, implementa. Sabe o que faz acabar com qualquer coisa é ela se tornar superada, não precisar mais dela. É a maneira mais prática que você tem de lidar com alguma coisa. Periferia aqui não ganha nada. Pensa-se a cidade como há 50 anos, e essa cidade não existe mais. As escolas têm que estar polarizadas onde os alunos se encontram, e não nós ficarmos sempre pensando num sistema de transportes.

BDF – A senhora é a única candidata a prefeita transgênero nestas eleições. Você atribui esses 4% de rejeição ao fato de ser transgênero? Há muito preconceito?

Letícia – Olha, ainda não apareceu com a intensidade que pode aparecer. Sabe, porque quando eu transacionei, eu transacionei muito tarde. Eu tive de começar a trabalhar muito cedo e, apesar de toda minha identificação desde cedo com o mundo feminino, demorei para entender que além de me identificar com o mundo feminino também queria ficar com as mulheres. Era uma pessoa transgênero e lésbica, o que até dentro do gueto, quando eu transacionei, eles disseram que eu era uma “coisa”, uma perversão elevada ao quadrado. Porque além de querer ser mulher eu queria ficar com as mulheres. Então quer dizer, realmente essa coisa de sofrer assédio moral, receber críticas desse tipo... Eu me lembro quando eu era pequena, por exemplo, quando eles queriam me xingar me chamavam de “mulherzinha”. Hoje se me chamar de “mulherzinha”, eu vou me orgulhar muito. Mesmo porque eu pertenço à categoria que está mudando o mundo sem dar um tiro. Se fossem os homens a conseguir o que as mulheres conseguiram durante o século 20, em termos de evolução, se fossem os homens nessa empreitada, eles teriam destruído o planeta umas cinco vezes. E a mulher conseguiu tudo o que conseguiu sem dar um tiro e, pior de tudo, limpando  bunda  de criança e cozinhando para o marido. E ainda tem gente que crítica o feminismo... Só para a gente rir um pouco.

Então a minha condição de pessoa transgênero, que é uma pessoa que transgride as normas de gênero, porque eu nasci macho, então tinha que ser enquadrada como homem...  Eu tinha que ser, mas eu não era. Eu tive que viver assim muito tempo, até que tive um infarto. Aí eu falei: “agora chega, eles que se danem”. Mas quando eu falei “se danem”, perdi todos os meus clientes, todos os serviços que eu tinha. Porque é o tal negócio, vamos invisibilizar essa pessoa. Porque invisibilizando, você inviabiliza a pessoa. Discriminando, você marginaliza, você exclui.  Então transgênero não é uma identidade, é uma condição sociojurídica de transgressão da norma de gênero. Eu gosto muito de uma passagem do apóstolo Paulo, que o povo lê tanto, mas nunca leu essa. “Eu pequei porque tinha a norma, muda norma que eu paro de pecar”. Eu não nasci no corpo errado não, eu nasci na sociedade errada. Por que eu ia escolher ser uma pessoa transgênero? Eu me identifiquei. Só que as pessoas acham que identificação é escolha, e não é. Identificação é você bater o olho numa roupa na vitrine e só interessa aquela. Pode ter 500 em volta, melhores, mais baratas, mas você quer aquela. O que leva uma pessoa a torcer para o Curitiba, e não para o time da Baixada. Isso aí é uma questão tão complexa do ponto de vista psicológico, o que leva uma pessoa a uma escolha? Se fosse escolha, na teoria dos jogos de Von Neumann, claro que a escolha é sempre entre alternativas. E se o cara não é doido, ele vai escolher sempre aquela que vai dar o máximo de benefícios e ter um mínimo de problemas. Você imagina o que o cara escolhe ser travesti? Que através de uma identidade, assim como transexual, transformista... Não, eu quero, sabe por que, porque travesti eles matam, fica na rua sujeita ao tráfico. Ela não arruma emprego, ela é expulsa da escola, mas eu “quero”. Eu “adoro isso”. Na cabeça das pessoas é fácil. Então é doido, porque fez uma escolha desse tipo. Evidente que não é escolha. Porque toda sociedade reporta esse conflito relacionado a gênero.

Então eu acho que na campanha eu tenho oportunidade de falar dessas coisas também. Embora seja uma bandeira que eu carrego a vida inteira, querendo ou não, eu não estou aqui para carregar bandeiras específicas. Você viu que eu estou aqui com o interesse de abrir a cabeça das pessoas e propor debates. Lembrar a elas que só com participação intensa a gente consegue mudar alguma coisa. Esse é mais um dos aspectos que eu tenho que lidar com ele. E estou lidando com muita alegria. No início da campanha um repórter não me tratou com a dignidade que vocês estão me tratando. O que eu posso fazer, né? Eu lembro muito da Dona Beja, lá de Minas. Acho que até hoje o sabonete Araxá tem como símbolo uma bandeja de prata com rosas em cima, que ninguém entende o que é. É porque a Dona Beja, que era uma prostituta, e as senhoras da cidade um dia  mandaram para ela  uma bandeja de prata com estrume de vaca coberta com um paninho. Ela recebeu, limpou, pôs rosas e mandou um bilhete assim: “cada um dá o que tem”, né? Então eu estou acostumada com isso, não me trocaria por quem está me criticando. Nem um pouco, sabe... Como falei, vou ficar muito feliz se pelo menos esses 4% de rejeição não virarem 16%, 20% 50%, e eu ser campeã de rejeição. Vou ficar feliz se acontecer de eu chegar a 0, 0,3, 0,4. Maravilha, comecei com -4, então qualquer coisa que eu subir é lucro.

Edição: Pedro Carrano