Projeção

65 milhões de brasileiros podem estar com alimentação insuficiente

Em conferência do MST, especialistas apontam agroecologia como caminho para a produção de alimentos saudáveis

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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"Esse país não pode ser o celeiro do mundo, como tanto se anuncia", diz Maria Emília Pacheco, ex-presidente do Consea - Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Segundo Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o Brasil voltou ao Mapa da Fome. Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018 havia 10 milhões de pessoas passando fome e aproximadamente 40 milhões privadas de pelo menos alguma refeição das três necessárias durante um dia. Quem traz os dados é José Graziano da Silva, agrônomo, professor e ex-presidente da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) da Organização das Nações Unidas (ONU), para quem atualmente o número deve ser “assustadoramente” maior, devido à crise econômica intensificada pela pandemia de covid-19 que aprofundou e escancarou as desigualdades sociais, estampadas na fome, por exemplo. 

Pelas projeções temos 65 milhões de brasileiros que não comem o suficiente, é um número assutador

 “As projeções mostram que devemos estar em um número hoje, em 2020, no começo da pandemia, com 15 milhões de pessoas passando fome e 30% da população brasileira não comendo o suficiente, o que levaria a um número assustador de 65 milhões de pessoas. É mais do que nós enfrentamos no começo do governo Lula, quando nós estimávamos 44 milhões de pessoas que não comiam o suficiente”, afirmou Graziano durante a conferência “Reflexões sobre o Brasil em Tempos de Pandemia”, promovido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), na quinta-feira (15).

Não comer o suficiente significa não ingerir o mínimo necessário para ter uma dieta básica de energia, diversificada, atendendo ao mínimo de nutrientes, com 400 gramas, pelo menos, de frutas, legumes e verduras por dia. “Nós temos um número perto de 65 milhões de brasileiros que não podem comer de forma saudável. Não porque não tem alimento, mas porque não tem demanda, não tem poder aquisitivo, as pessoas perdem emprego, têm salário muito baixo”, lamenta Graziano.

Sustentabilidade e agroecologia

O ex-presidente da FAO também explica que uma dieta saudável e diversificada teria impacto não só na saúde da população, mas na sustentabilidade do planeta. Segundo Graziano, cerca de 75% dos gases de efeito estufa podem ser mitigados apenas com a mudança de dieta. A informação consta do Observatório do Clima de 2018, ano em que o agronegócio brasileiro foi responsável por 71% das emissões, sendo o maior emissor do mundo.

A mudança na alimentação ainda pode levar a uma economia de 97%ndos gastos com saúde, afirma Graziano. Conforme um levantamento da Agência Pública, entre 2014 e 2017, 27 pesticidas foram encontrados na água de um quarto dos municípios brasileiros. Desses, 16 são classificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como extremamente ou altamente tóxicos, enquanto 11 estão associados ao desenvolvimento de doenças como câncer, malformação fetal, disfunções hormonais e reprodutivas. “Não se negocia com a saúde, não se negocia com a alimentação saudável”, declara Graziano.

Como afirmou Bela Gil, culinarista e apresentadora de televisão, que também participou da Conferência do MST, esses dados dizem ao mundo que não basta a alimentação fazer bem para a saúde da população, mas “também precisa respeitar a terra, o solo, os biomas, as matas, as plantas, a natureza”, ou seja, tudo o que representa a agroecologia. 

É papel do consumidor entender que a comida orgânica é melhor para todos

Nesse sentido, “quando eu consumo um alimento orgânico, agroecológico, local, obviamente estou pensando na minha saúde, mas, para além disso, também estou pensando nessa saúde mais global. Esse é o papel do consumidor: quando entende que a comida orgânica é melhor para tudo e para todos e deve consumir. É uma responsabilidade social”, afirma Gil, que entende o ato de comer, assim como qualquer outro ato de consumo, como um ato político. 

Do outro lado, daquele de quem produz o alimento, João Pedro Stedile, da Coordenação Nacional do MST, entende que a função social do camponês e dos movimentos que lutam por reforma agrária não é apenas garantir um pedaço de terra, mas a produção de alimentos que garantam o respeito à terra. “O centro da reforma agrária tem de ser a produção de alimentos saudáveis”, afirma.

O centro da reforma agrária tem de ser a produção de alimentos saudáveis

Segundo Stedile, essa visão coloca por água abaixo a mercantilização dos alimentos, que levou o preço do arroz a disparar no segundo semestre de 2020. O arroz acumula alta no ano de 19,2%, sendo que o pacote de cinco quilos chegou a custar R$40. Um dos fatores que explicam a alta do preço no mercado é o dólar elevado, em torno de  R$5,30. Isso faz com que os produtores brasileiros do agronegócio optem por vender o arroz no exterior, em dólar e, por conseguinte, recebendo mais por isso. Essa lógica, no entanto, não acontece nas produções familiares e agroecológicas do MST: a mesma quantidade de arroz, da marca “Terra Livre”, orgânico do MST, custa R$ 29,90, cerca de 25% a menos do que o arroz do agronegócio.

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Governo brasileiro no caminho contrário

Ainda no primeiro dia como presidente, Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), tido como uma das ferramentas mais importantes no combate à fome e insegurança alimentar no país, criado ainda no governo de Itamar Franco (1992-1995), extinto por Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) e retomado no governo Lula (2003-2010). 

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Segundo Maria Emília Pacheco, antropóloga e ex-presidenta do Consea, no âmbito do conselho foram construídas importantes políticas públicas que tinham um significado mais amplo do que o combate à fome, mas de soberania alimentar, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003, no primeiro ano do governo Lula, que garante a compra de alimentos de agricultura familiar para a merenda escolar. 

Questões ambiental, agrária e alimentar estão associadas

Em 2012, no primeiro mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff, o recurso destinado ao PAA chegou a R$ 1,2 bilhão. Em 2018, foram apenas R$ 253 milhões e, em 2019, já no governo Bolsonaro, R$ 188 milhões, evidenciando um desmonte da política pública. 

Para Pacheco, medidas de desmonte de políticas como essas de soberania alimentar associadas ao estímulo ao agronegócio e exportação de commodities, como historicamente se vê no Brasil levam à necessidade de  “tratar de forma indissociada as questões ambiental, agrária e alimentar". E conclui: "Essa tríade se constitui em algo fundamental para a sociedade compreender que esse país não pode ser o celeiro do mundo, como tanto se anuncia, ou o agro não é tech, pop, porque um país que tem de forma crescente a fome, a destruição da natureza, a negação da existência social dos seus povos, não é uma sociedade que tem futuro”.

Edição: Rogério Jordão