Rio Grande do Sul

Eleição EUA

Especialistas debatem a eleição nos EUA e suas influências na América Latina

Bdf RS e Rede Soberania convidaram cientistas políticos para dialogar sobre o tema; confira a live e principais pontos

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Professora Céli Pinto e professor Jorge Branco foram convidados do debate - BdF RS e Rede Soberania

O Brasil de Fato RS e a Rede Soberania convidaram a professora Céli Pinto e o professor Jorge Branco para debaterem as eleições presidenciais norte americanas e suas consequências e reflexos para a América Latina. Sendo os Estados Unidos da América o centro do capitalismo global, bem como constituíram um império com influência também global, se faz necessário debater os rumos dos EUA, e suas influências no continente.

A professora Céli Pinto é graduada em licenciatura e bacharelado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestra em Ciência Política por esta mesma universidade. É também doutora em Ciência Política na University of Essex na Inglaterra. É reconhecida academicamente pela sua produção científica, principalmente sobre a teoria da democracia e teoria feminista. Atualmente, é reconhecida como professora emérita da UFRGS, sendo também docente permanente no Programa de Pós Graduação em História da Federal gaúcha.

O professor Jorge Branco é sociólogo, mestre e doutorando em Ciência Política. Atua na UFRGS, onde é membro do Centro de Estudos de Governo e do Instituto Latino Americano de Estudos Avançados. Pesquisa sobre a "nova direita", ondas reacionárias e neoliberalismo.

Confira a live completa e um resumo das ideias dos professores:

Os significados da eleição

Para a professora Céli Pinto, "independente de qualquer coisa, seja nos Estados Unidos ou no país menos importante economicamente do mundo, é muito bom que não se tenha um louco na presidência, já é muito bom para o planeta". Ela afirma que tirar o Trump do poder já é uma grande vantagem para o desenvolvimento global, porém enfatiza o necessário cuidado ao pensar essa transição, de um governo Trump, para um governo Biden:

"Não estamos substituindo a extrema direita pela esquerda, nem mesmo por uma centro-esquerda. Biden é um político democrata muito experiente, décadas de atividade. A situação que vamos enfrentar daqui pra frente deve ser pensada com cautela. Mas a principal vantagem para a América Latina é o simbolismo que a derrota de um neofascista representa".

Para Céli, os Estados Unidos mantém a representação simbólica de ser uma grande democracia, por isso, essa vitória eleitoral em cima de Trump pode ter um significado. A professora também identifica os Estados Unidos como um país imperialista, autocentrado e que interfere de forma negativa por muitas vezes na América Latina e no Oriente Médio, por exemplo, ao mesmo tempo que mantém o simbolismo de ser uma democracia.

"Não estou dizendo que Biden será um democrata, ou que ele é a salvação. Eles irão continuar a intervir em outros países, nós que vivemos as ditaduras sabemos disso, mas a questão é que Biden simbolizou a democracia vencendo o Trump, e esse componente eu considero muito importante nesse momento tão complicado que vivemos", disse.

A professora considera complicada a situação brasileira, onde não vivemos uma democracia plena e temos um presidente limitado enquanto ser humano e que defende os interesses militares e mais conservadores: "Para nós, no Brasil, não vai mudar muita coisa, Biden não irá interferir positivamente a favor dos direitos humanos, por exemplo. Porém, além de nós termos um governo de extrema-direita, temos um presidente totalmente desqualificado". Para ela, o aspecto simbólico do retorno de uma crença na democracia pode ser um fator positivo.

Da mesma forma que a presença da vice Kamala Harris, considerada pela professora como uma novidade, mas não uma mulher de esquerda: "Eu como uma feminista, considero muito importante a presença dela na vice-presidência. É muito importante para as mulheres não brancas, o pais mais poderoso do mundo ter uma mulher negra nessa posição, pode ser um impulso para a participação das mulheres negras na política".

Lembra também que é importante não esquecer que cerca de 70 milhões de pessoas votaram em Trump, mesmo após tudo que aconteceu nesses últimos anos, o que significa que a extrema direita não está derrotada no mundo: "Provavelmente, se não fossem todos os protestos de rua e a economia agravada pela pandemia, Trump teria ganho essa eleição". Lembra do fato do voto nos Estados Unidos não ser obrigatório e que, nestas eleições, houve uma participação da população nas urnas acima da média, e que, mesmo assim, não se confirmou o cenário previsto de uma vitória por uma grande diferença.

Ela considera serem essas as duas premissas iniciais necessárias para tratar do tema das eleições norte-americanas deste ano. Por um lado, um aspecto positivo da novidade política, com a vitória de um aspecto simbólico em que o neofascismo saiu derrotado. De outra forma, também avalia ser importante não considerar que a extrema-direita está derrotada no mundo, havendo de se ter muito cuidado nas análises para as possíveis consequências desse cenário.

O professor Jorge Branco concorda com as duas premissas, e acrescenta: "Primeiro, é uma espécie de vitória da civilização sobre a barbárie, necessitando discutir também que tipo de civilização é essa. Mas todos os governos de extrema-direita se pronunciaram e lamentaram a derrota, foi uma eleição diferente". Chamou a atenção do professor que, nas imagens das comemorações, das pessoas reunidas em praças e ruas, a maioria dos cartazes que as pessoas carregavam eram com frases antirracistas e feministas, por exemplo, havendo poucos cartazes com o nome de Joe Biden. Isso, para ele, representa essa movimentação contra a barbárie.

"Segundo, precisamos de muita cautela para entender o que vai acontecer daqui pra frente", pondera. O professor considera que haverá um efeito imediato sobre o Brasil, que é o isolamento das relações internacionais do atual governo brasileiro, pois as ações internacionais regressivas encampadas pela diplomacia tinham, como principal aliado, o governo Trump. Considera que, ainda que apenas formalmente, o governo Biden irá alterar o discurso sobre as relações internacionais, atenuando a questão dos imigrantes e fortalecendo uma retórica de direitos humanos. Haverá a tendência de não fortalecer os discursos de países com posições obscuras como vinha sendo o Brasil, a Hungria e a Arábia Saudita, por exemplo.

As perspectivas para a América Latina

O professor Jorge Branco considera ainda muito preocupante a presença da extrema direita na política mundial, citando o crescimento de partidos e agrupamentos fascistas e neofascistas em toda a Europa e que estes grupos seguem sendo capazes de protagonizar a política. Considera que isso acontece pois os fatores que propiciaram esse crescimento ainda são presentes, como valores culturais autoritários, a forte crise econômica, uma grande concentração de riqueza e uma movimentação das frações dominantes para garantir a continuidade dessa concentração, no Brasil também e no mundo todo. "No Brasil, esse processo é muito claro, quase todo dia, de forma silenciosa, longe dos holofotes da grande mídia, se tomam medidas para beneficiar os muito ricos", afirma.

Jorge ainda lembra que analisar os Estados Unidos será sempre uma situação paradoxal e contraditória, pois os dois partidos, Democrata e Republicano, na prática, representam duas frações diferentes do mesmo poder orgânico dominante do país, e cita como exemplo o próprio Partido Democrata: "Foi no governo do presidente Lyndon Johnson, do Partido Democrata, que houve total apoio para a ditadura militar do Brasil. Anos após o golpe de 64, no governo do também Democrata Jimmy Carter, houve o reconhecimento das práticas de tortura da ditadura o que ajudou a enfraquecer o governo da época. Da mesma forma que é contraditória a presença da vice Kamala Harris: uma mulher negra, filha de imigrantes, porém conservadora e punitivista".

Lembra que essas movimentações políticas sempre terão reflexos no continente: "A vitória de Fernandez na Argentina, e a recente vitória na Bolívia, após um golpe violento, apontam para a possibilidade de um contra ataque do campo democrático e humanista", avalia o professor.

A professora Celi Pinto afirma ser necessário ter em mente que os governos Trump e Bolsonaro, para se ter como exemplos, figuras que ela denomina como "excrescências", são frutos de processos iniciados décadas antes, com a incapacidade do capitalismo manter a acumulação contínua de riqueza juntamente com os processos democráticos. "Nos anos 80, tivemos rupturas com Reagan (presidente dos EUA) e Tatcher (primeira-Ministra do Reino Unido) que fizeram experiências com o Chile de Pinochet, desde então, presenciamos a contínua incapacidade do capitalismo conviver com processos democráticos e com a democracia liberal", afirma a professora.

"Esses processos não são lineares, nós tivemos na América Latina não só ditaduras violentas, mas reações muito importantes ao neoliberalismo. Nós aqui estamos sofrendo uma reação de extrema direita à movimentações muito importantes. Eu sou muito encantada com o processo Boliviano. É um processo multiétnico que deu um pontapé no neoliberalismo e reestruturou as formas de representação, é um país que tem muito a nos ensinar", comenta Celi sobre os processos de luta e resistência na América Latina nesse momento atual, em conexão com o passado.

Comenta também que essa onda neoliberal, ainda presente, conta com um processo de "despolitização da política", sendo uma das suas principais armas: "Esse processo precisa nos fazer deixar de ser um cidadão coletivo, pois isso nos despolitiza". Para a professora, esses processos precisam ser revertidos com um movimento de politização da sociedade, para que as pessoas possam ser cidadãs e impeçam o contínuo processo de acumulação de riqueza e retirada de direitos.


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Edição: Marcelo Ferreira