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Artigo | Radaelli: o inquieto espírito do humano na arte

Perdemos Gelson Radaelli, pintor, escultor e ilustrador que encantou a tanta gente em seu percurso na arte e na vida

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Radaelli era radical como ser humano. Sua originalidade e naturalidade eram marcantes" - Tulia Radaelli

“Eu pinto a angústia, a decadência e a solidão que são os momentos em que o indivíduo cresce. O protótipo do belo e a alegria desvairada são sintomas do imbecil. Não pinto historietas, quadros com roteiros. Acredito na pintura acima de tudo. Tento investigar a emoção em seu estado mais puro.”

Essa foi a resposta de Gelson Radaelli à pergunta “O que você pinta”, feita em 1990, na sua primeira exposição individual, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul, quando tinha 30 anos.

Morreu na madrugada de sábado (28/11), aos 60 anos, véspera do segundo turno das eleições, após trabalhar no seu restaurante Ateliê das Massas até quase meia-noite. Ataque fulminante do coração foi o diagnóstico da causa da morte do pintor, escultor e ilustrador que encantou a tanta gente em seu percurso na arte e na vida.

É fácil morrer cedo de contundência em tempos tão hostis, pensei sábado cedo, quando soube da sua precoce partida. Seu coração não suportou as evidências desse tempo em preto e branco, que ele tanto sabia e pintava.

A arte é um caminho de reflexão, afirmou ele. Seus personagens das telas, sempre graves, talvez também não tenham suportado esses tempos mesquinhos e convidado seu criador para outra dimensão.

Desde os 8 anos sonhava ser pintor. Pintou a primeira tela aos 11 anos no interior de Nova Bréscia. Persistiu no seu desejo com a teimosia dos decididos.

No seu jeito brincalhão e franco revelava seu generoso ser, permeado das tonalidades da vida, da luz e sombra, sem se esconder ou fugir de todas as suas nuances. Essa era sua grandeza. Olhava a vida nos olhos, sem dar curva nas tragédias e epifanias. Seus tantos amigos e amigas foram testemunhas da densidade desse ser humano de vitalidade gigante e terna.

Expressava seu conhecimento de arte, literatura e culinária com a singeleza do sotaque que trazia da sua origem. Sabia da vida dura dos imigrantes italianos e seus descendentes e fez arte de tudo o que tinha. Nos quadros, nas relações, nos vinhos e nos sabores dos antepastos e massas do seu restaurante Ateliê de Massas que ele insistiu em instalar no centro – próximo aos inferninhos -, num local improvável para um restaurante sofisticado.

Conhecedor de vinhos, não era um enófilo dos que ostentam seu privilegiado saber. Dizia que seu turismo favorito era viajar para conhecer vinícolas e mantinha uma adega substantiva. Anfitrião primoroso, era de coragem seu gesto de acolhimento para sua casa de sabores e beleza.


Os jornais O Continente e Trinta Dias de Cultura eram mantidos pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Cultural (Codec), embrião da Secretaria Estadual da Cultura / Stela Pastore

Conheci o Radaelli no final da década de 1980, na redação dos jornais O Continente e Trinta Dias de Cultura. Eles eram mantidos pelo Conselho Estadual de Desenvolvimento Cultural (Codec), embrião da Secretaria Estadual da Cultura, consequência da persistência e trabalho de muita gente das artes, como o Radaelli. Eu fazia estágio em Jornalismo e ele era editor de arte e ilustrador, com seu parceiro de boas aventuras editoriais, João Carlos Tiburski. Um período de muita efervescência nas artes plásticas, na música, fotografia, literatura.

Lembro que as suas grandes telas, em branco e preto, me perturbaram quando vi pela primeira vez. Espectros, pareciam sentir dor e sofrimento. Não eram para o riso. Eram densas, inquietavam.

Nessa época seu mestre e amigo Iberê Camargo aparecia na redação para um bate-papo. A perplexidade e inconformismo que se constatava na vida e obra de Iberê Camargo, com suas terríveis e assustadoras belezas, como escreveu o crítico José Luiz do Amaral, para mim se encontram na obra plástica do aluno. Outra peculiaridade é que Iberê assinava alguns desenhos com o pseudônimo Maqui; Radaelli publicava ilustrações com o nome de Geppo, uma forma de mostrar outras expressões do seu traço.

Quando concluí o curso de Jornalismo, Radaelli recém havia aberto o restaurante. E foi lá a comemoração da formatura, com vários outros colegas de curso e seguimos nos encontrando no Ateliê sempre que possível.

Encontrar com o Radaelli também sempre foi uma oportunidade de relembrar o dialeto Vêneto e rir de histórias comuns na colônia italiana. Encontrá-lo pelas ruas do Centro, também era oportunidade para uma alegre saudação e uma sintética leitura da conjuntura política.  Arguto observador, expressava sua análise aguda sobre o momento histórico e sempre concluía com um convite amistoso: “aparece lá!”, referindo-se ao restaurante.  

Radaelli era radical como ser humano. Sua originalidade e naturalidade eram marcantes. Nesses 30 anos que tive o privilégio de conviver de alguma forma com ele e com a sua companheira Rogéria, tenho as melhores memórias de um irmão generoso.

Ir ao Ateliê sempre foi uma celebração. Ficava ainda maior se o Gelson estivesse lá, bonachão para uma charla na mesa, rápida que fosse, com sua peculiar atenção e carinho. Tomara que o Ateliê de Massas prossiga oferecendo suas delícias e aconchegos, e que possamos erguer muitos brindes para saudar nosso querido amigo Gelson Radaelli.


Crônica de Radaelli publicada em março de 1990 no jornal O Continente / Stela Pastore

CRÔNICA*

Gelson Radaelli

Aquele verso caminha à procura da aurora. Aquilo não é a aurora, é uma abóbora podre.

Mitos de plástico. Emoções moldadas. Ditadura da imagem. Manipulação da expressão. E pensa-se que a humanidade se livrou do poder opressor. Dize-me qual a culpa do pintor. Ilha. Solitário que tenta reinventar a vida. Sem gritos, sem berros, sem sussurros. Sim. Com perigo, mas é silêncio no atelier.

Me seguro pelas pedras. Tendo a levitar até demais. Mas não sei se é castigo ou prêmio esta inconstância. Sou pintor e egoísta. Pinto pra mim, na tentativa de impedir que a vida me anule ou a morte me enalteça. Pintar abóboras podres ou homens poderes, como eles são.

Pintar é difícil, igual a transplante de cérebro. É certo que existe quem faz operações em bonecos ou cadáveres. Aí não há riscos. Como não há em pintar belas paisagens ou vasos de flores com rigor técnico.

Esqueçamos essa arma inútil e partamos primitivos à procura da essência da pintura, o gesto livre, ao rupestre. A arte não é tecnologia. A ciência se enfurna no complexo. Procuramos nós a pureza, o traço nu, o Eu de cada um. Para mim é mais importante a forma das nuvens do que a raiz quadrada de qualquer número.

Gosto muito quando venta à noite. A minha solidão se acentua. Outras épocas eu tinha a necessidade incurável de epopeias e casas de mulheres, festas, bares. Misturar a noite e o vício aos lábios carnudos de mulheres que acabara de conhecer. Hoje tenho medo do privilégio de me considerar insociável. Tenho planos que me fazem lidar com “coisas mais simples” que parecem brinquedos, ou são brincadeiras, não sei.

A imagem me domina. Sonho imagens puras, sem roteiros. Imagino imagens caóticas. Vejo o meu passado, uma sala de projeção. Pinto quadros, e alguém quer que eu escreva. Me atrapalho na teoria. Faço questão de deixar ser a filosofia cada pincelada que acontece em meu trabalho… Não conheço textos nem palavras adequadas, para explicar o que acontece, como explode e o abismo que constituo.

Uma forca e uma samambaia. Uma mulher de roupas íntimas. Um quarto sem janela.

O início de tudo, nada se confundia. Eu tinha dois ou três anos e gostava do colo do pai. Sua caneta esferográfica criava patos gozados, cachorros que pareciam gatos e casinhas minimalistas com chaminé. Tudo em minhas mãozinhas gorduchas de dois ou três anos de idade. Aurora da civilização. Depois vieram as profecias. A mais estranha – prenuncio do apocalipse – previa a chegada do rio de fogo, como cometa vindo de um buraco do cosmo, trazendo o vírus-do-olho. As pessoas passaram a enxergar tudo em preto e branco, como no cinema mudo. Agora, para aliviar a solidão, um bom programa é cortar as unhas dos pés.

...grandes coisas, faça-se o verso para a abóbora podre.

* Publicada em março de 1990 no jornal O CONTINENTE.

Edição: Katia Marko