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Artigo | É agora, ou nunca!

Tributar a riqueza e as grandes fortunas, agora, é imperioso se queremos romper com esse ciclo de acumulação excessiva

Porto Alegre | BdF RS |
Já há propostas para tributar os super-ricos, como o Imposto sobre Grandes Fortunas na Argentina, Chile, Peru e Equador - Divulgação

Antes da pandemia da covid-19, a América Latina era um continente em ebulição. Os vários movimentos e protestos ao longo do ano passado, especialmente no Chile, Argentina e Equador, apontavam para um descontentamento inequívoco com a situação de desigualdade e, ainda que não fossem movimentos em todo o continente, davam sinais de que a inconformidade se espalharia.

Um dos efeitos da crise sanitária foi o de frear os protestos e essa mobilização das ruas. Entre vários movimentos para conter a crise sanitária e salvar vidas, os países bloquearam fronteiras, fecharam comércio e serviços, proibiram eventos com público. As mobilizações também foram suspensas.

Instalada a crise econômica, sem precedentes comparáveis, talvez semelhanças ao período de guerras e a quebra de 1929, seria de esperar que as medidas econômicas e fiscais pudessem apontar outros caminhos que não os de sempre: austeridade, corte de gastos, encolhimento do Estado e diminuição da prestação de serviços públicos.

Pequenos comércios e empresas de médio porte fecharam. Milhares perderam empregos e postos de trabalho simplesmente desapareceram. Muitos sobreviveram com o auxílio emergencial, pago graças a uma constante e forte pressão popular.

Mas, um fato contra o qual não há argumentos, é que os bilionários da região latino-americana, segundo Oxfam, aumentaram suas riquezas em mais de 48 bilhões de dólares de março a julho deste ano, em plena pandemia.

Independente do que possa explicar esse acúmulo ainda maior das fortunas em meio à crise sanitária e social, a política tributária sempre privilegiou a estas poucas pessoas, em detrimento de milhares que carecem inclusive de mínimas condições dignas de vida.

O que a pandemia evidenciou, e tornou mais dramático ainda, é a imensa desigualdade a que está submetida a região, quando um número reduzido de pessoas acumula tanto e historicamente é pouco alcançado pela tributação.

A insistência de organizações da sociedade civil para propor alternativas diferentes, tanto em seus países de origem como para a América Latina e Caribe, é plenamente justificada.

Tributar a riqueza e as grandes fortunas, agora, é imperioso se queremos romper com esse ciclo de acumulação excessiva e pouquíssima redistribuição de renda que gera flagelos humanos.

Por isso, a Red por Justicia Ecónomica y Social (Latindadd), juntamente com a Red de Justicia Fiscal de América Latina y el Caribe (RJF-ALC), agregando um conjunto de entidades sindicais como a Internacional de Serviços Públicos, organizações de mulheres, entre outras, lançam a campanha “Agora ou nunca – Impostos a Grandes Fortunas”. Apontam medidas para melhorar o sistema tributário de maneira que contribuam mais os que mais tenham e que os Estados sejam dotados de recursos para enfrentar a crise, as desigualdades históricas e garantir direitos.

O informe de Latindadd, “Ahora o nunca, impuestos a la riqueza ya”, no qual se baseia a campanha, é um estudo exaustivo e sistemático da forma como se tributam renda, patrimônio e heranças na região e comprova que são muito pouco tributados em relação aos trabalhadores e empresas que investem e produzem.

Alguns dados, coletados entre 24 países para os quais foram obtidas informações, indicam que:

- Só se tributa a riqueza ou patrimônio líquido em 4 dos 24 países da região: Argentina, Colômbia, Uruguai e Guiana;

- Apenas 8 dos 24 países tributam heranças: Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Jamaica, Nicarágua e República Dominicana;

- Rendas de capital das pessoas físicas são isentas ou menos tributadas que as do trabalho em 16 dos 24 países da região;

-Rendas de capital das empresas são isentas ou menos tributadas que as de investimento em 10 dos 24 países da região.

Bilionários de pai para filho

Além disso, o referido estudo aponta que 60% dos bilionários latino-americanos herdaram suas fortunas, passam de geração a geração, e estas heranças não são tributados em muitos dos países, aprofundando a desigualdade.

Curiosamente, sabemos tudo sobre os benefícios dados aos mais pobres, mas a riqueza segue sendo apenas estimada, posto que há um véu ao redor dela, em nome da privacidade.

Com a pandemia e seus efeitos econômicos e sociais, ficou mais que evidente que os sistemas tributários precisam ser mais justos e tributar altas rendas, patrimônio e heranças. E já há propostas neste sentido, como o Imposto sobre Grandes Fortunas na Argentina, Chile, Peru e Equador.

De acordo com Latindadd, e em consonância com o que estamos propondo no Brasil com a campanha Tributar os Super-ricos, as propostas passam por tributar as rendas do capital das pessoas mais ricas, que são pouco ou nada tributadas, enquanto as rendas do trabalho assalariado não escapam da tributação.

Para aumentar esta arrecadação será necessário instituir essa tributação onde ela ainda não existe, aumentar alíquotas, dar tratamento isonômico entre as rendas do trabalho e do capital, enfim, as medidas que cada país possa adotar de acordo com suas realidades.

Em relação a impostos sobre heranças e doações, a ideia é a mesma: instituir onde não existe ou aumentar a alíquota onde ele já foi instituído e é muito baixo, como no caso do Brasil.

A média de arrecadação desse tributo na América Latina é baixíssima: 0,01% do PIB.

O imposto sobre a propriedade também é abordado na campanha de Latindadd, cujo peso relativo é baixo na região, menos que 0,7% do PIB, em que pese ser aplicado de forma geral, em todos os países. As causas são basicamente as que temos no Brasil: dificuldade de valoração, com valores abaixo dos de mercado, cadastros desatualizados ou não atualizados regularmente, dificuldades nas administrações tributárias.

Um cálculo realista, face às circunstâncias específicas da região, estima um aumento aproximado da arrecadação do imposto predial de US$ 22 bilhões, equivalente a 0,45% do PIB regional.

Latindadd estimou ainda que de forma bastante conservadora, o potencial de arrecadação de um imposto sobre as grandes fortunas. Segundo o estudo, utilizando dados de Oxfam, com o imposto que existe somente em três países, Argentina, Colômbia e Uruguai, no melhor dos casos se arrecada US$ 281 milhões ao ano. Aplicando em 17 países da ALC um imposto progressivo sobre as grandes fortunas poderíamos arrecadar até US$ 26 bilhões, 94 vezes mais.

A campanha propõe aumentar a arrecadação tributária de forma justa. Ainda que os valores sejam estimados, evidenciam os benefícios que poderiam ser gerados em prol de uma sociedade mais solidária, em que as pessoas possam conviver em harmonia. Os resultados indicam um potencial de arrecadação significativo apenas se forem revisados os impostos à propriedade imobiliária e instituído o imposto sobre grandes fortunas, de elevada capacidade redistributiva frente a outros tributos.

No informe, temos ainda alguns possíveis usos do valor arrecadado, como financiamento de bônus contra a fome destinado a pessoas de extrema pobreza, durante seis meses; investimento em vacinas, garantindo, inclusive, acesso gratuito à vacina contra a Covid-19 para a população da região, destinação de recursos ao gasto público com saúde infantil.

Enfim, utilização mais que justa dos recursos arrecadados, sendo que há muitas outras possibilidades que miram ao bem estar coletivo, em detrimento de uma acumulação que tem levado o continente a um estado de miséria e pobreza extrema.

Contra fatos, não há argumentos. O ditado popular indica que quando a realidade está à nossa frente, os fatos se sucedendo, não há argumentos que possamos contrapor.

Fato é que a inconformidade registrada em 2019 mostrou que América Latina e Caribe estão em ebulição. Novos ventos estão varrendo as políticas neoliberais e derrubando dogmas, políticas de austeridade, corte de gastos, feitos em nome de um suposto equilíbrio fiscal que virou quase um fim em si mesmo.

Está comprovado que a miséria e a pobreza não podem mais ser naturalizadas. São a contraface da concentração de renda, da riqueza e dos altos patrimônios.

Frente ao panorama da região, é preciso encontrar meios para enfrentar este sistema tributário injusto e regressivo. O descontentamento social com a desigualdade, agravada pela pandemia, pode ter consequências muito sérias nesse próximo ano. E se isso for um argumento, os fatos deverão mostrar que as soluções apresentadas até agora não servem, estão defasadas e apontam para novos rumos.

Como dito no informe da campanha de Latindadd, “o tempo para reformar os sistemas tributários em direção a desenhos mais justos e suficientes é agora, é agora ou nunca”.

* Presidenta do Instituto Justiça Fiscal (IJF)


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Edição: Katia Marko