Rio Grande do Sul

Agora ou Nunca

“A riqueza não paga imposto na América Latina”, afirma especialista em tributação

Entrevista com Jorge Coronado, porta-voz da campanha regional para tributar super-ricos, que será lançada hoje (15)

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Os 10% mais ricos da América Latina concentram 63% da riqueza da região e pagam pouco ou nenhum tributo sobre seus ativos financeiros e patrimoniais - Arquivo Pessoal

O especialista em tributação internacional, Jorge Coronado, é o porta-voz da campanha latino-americana para tributar a riqueza que será apresentada nesta terça-feira (15), às 11h, durante entrevista coletiva online. “A pandemia evidenciou que a desigualdade é inaceitável”, enfatiza o sociólogo costa-riquenho.

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) aponta que a região retrocedeu 15 anos na luta contra a pobreza. Cerca de 45 milhões de pessoas que antes da pandemia não eram pobres, agora são. De cada 100 pessoas, 77 estão em situação vulnerável no continente. Estima-se que 2,7 milhões de empresas formais fecharam e a queda do PIB regional será de menos 9,1% no fim de 2020. 

Os 10% mais ricos da América Latina concentram 63% da riqueza da região e pagam pouco ou nenhum tributo sobre seus ativos financeiros e patrimoniais. Argentina, Bolívia, Equador e Peru avançam em legislações para cobrar impostos sobre as fortunas, em muitos casos, sequer conhecidas pelos sistemas tributários de seus países.

Jorge Coronado concedeu entrevista à jornalista Verónica Insausti, dos canais América TV e Telesur detalhando a campanha. 

Telesur: Como nasce essa iniciativa, quem realiza esta campanha e qual a proposta principal? 

Jorge: Coronado: Surge das plataformas Rede de Justiça Fiscal da América Latina e Caribe e Rede Latino-americana por Justiça Econômica e Social (Latindadd). Vamos somando com outros atores do movimento sindical como a Internacional de Serviços Públicos, entidades sociais, organizações de mulheres, entre outras. Atuamos ainda junto a parlamentares e administrações tributárias e identificamos que o tema da riqueza e grandes fortunas é muito sensível, e que a estrutura do nosso sistema tributário não tributa.  

Esse conglomerado, começamos a impulsionar uma campanha que será lançada nesta terça-feira (15), às 11h, quando vamos apresentar seus objetivos. 

Apesar da pandemia nesse segundo semestre, nos fortalecem iniciativas que ocorrem em vários parlamentos, como por último na Argentina, que já tem lei aprovada.  

Telesur: Como viabilizar a campanha? Seria necessário trabalhar incidência política em cada país ou apontam um órgão internacional que determinação uma linha geral a todos os países? 

Coronado: Diferente da União Europeia, que tem o Parlamento Europeu, lamentavelmente na América Latina não temos estrutura regional de peso, vinculante, que estabeleça normativas de aplicação obrigatória em alguns temas a todos os países, como na União Europeia.

Na América Latina, os parlamentos sub-regionais ou o Parlatino não são vinculantes. Isto faz com que a ação tenha que materializar-se país por pais. É importante ter enfoque regional e um olhar nacional. Porque a riqueza nos diferentes países não são iguais como na Argentina, Peru, Guatemala, Costa Rica, Belize, etc. Também não podemos implementar coisas muito genéricas, porque nas pequenas economias não teriam o mesmo efeito como em grandes economias. Buscamos traduzir este debate regional em iniciativas legislativas de caráter nacional, principalmente. 

Telesur: Existem muitos mitos cada vez que se coloca na agenda a possibilidade de tributar grandes fortunas. Inclusive a própria cidadania vê com receio as medidas porque imagina que possa ser afetada, como sempre recai sobre a classe trabalhadora. Como desmistificar esse tema? 

Coronado: Primeiro é preciso desmistificar que a riqueza em geral não paga imposto na América Latina. E é o continente mais atingindo econômica e sanitariamente pela pandemia. Falar de imposto é ainda mais sensível neste momento no marco da pandemia, onde há uma severa crise econômica aprofundada pelo fechamento de economias e pelas medidas sanitárias, que provocaram uma situação econômica que fragilizou ainda mais as pessoas. O povo em geral, os trabalhadores e a sociedade estão passando muito mal. Basta ver os dados sobre pobreza e o desemprego, a situação é muito crítica. 

Vamos diferenciar o que é riqueza e o que são grandes fortunas. Riqueza está com aqueles donos dos imóveis e ativos financeiros, que pode ser que não sejam grandes fortunas, mas têm grandes ativos e recursos, muito superior que uma trabalhadora ou trabalhador. 

E logo estão as grandes fortunas. Veja os dados: os 10% mais ricos da América Latina concentram 63% da riqueza global latino-americana. Esses 10% com toda essa riqueza não chegam a pagar 5% de impostos sobre seus ativos econômicos, financeiros e patrimoniais. 

Não estamos falando do 1% mais ricos, mas estamos falando desses 10% da população que conta com um sistema tributário que lhe permite não pagar impostos ou pagar essa taxa muito baixa. O Imposto de Renda sobre os salários, a menor taxa é de 10%. Ou seja, pagam muito menos que um trabalhador que paga Imposto de Renda. 

Telesur: Isso acontece em quase todos os países de toda a região. Essa porcentagem de 1% ou 10% que tu falas, estão acostumados a manejar os governos e parlamentares para que defendam seus interesses pessoais e particulares. Como os parlamentos vão implementar essas normas tributárias para que grandes fortunas paguem imposto se justamente atrás desses governos e dessa classe política estão os que nunca pagaram impostos. Como fazer isso nesse sistema? 

Coronado: Por isso lançamos esta campanha, porque requer grande mobilização social. As pessoas se movem diante de temas significativos de mais equidade, maior democracia e mais justiça. 

Se há algo na pandemia que poderíamos dizer que é positivo é a evidência que a desigualdade é inaceitável. As pessoas vão compreendendo que tributar não é apenas pensar que me estão tirando dinheiro do bolso, mas que há uma elite que não paga. E estes precisam ser tributados. 

Então temos dois desafios. Primeiro: mobilização social! Este é o propósito da campanha, sensibilizar e eliminar mitos e colocar temas importantes. Segundo: pressionar nos Legislativos, para que estes operadores políticos que estão no parlamento, convertidos em deputados e deputadas, para que a pressão social os obrigue a mudar. 

E a longo prazo exigir mudanças nos paradigmas políticos para que as pessoas compreendam que precisam votar de determinada maneira e não votar nos mesmos de sempre. Temos desafios gravíssimos sobre esta que é uma discussão global, não apenas na América Latina. 

Vimos esse pronunciamento de centenas de ricos do mundo dizendo: cobre-nos impostos porque necessitamos contribuir! Essa nota mostra que começam a mudar coisas e o que dizemos é que devemos pressionar para que essas mudanças sejam imediatas. 

O primeiro problema que temos é que a riqueza não está medida na América Latina. Porque as estatísticas nacionais têm dados frágeis sobre estes 10% e muito menos sobre esse 1%. Segundo: o patrimônio e a riqueza desses 1% e 10% é opaco. Usam paraíso fiscal, sociedades off shores, sociedades anônimas, o segredo bancário e tributário. Não para que todos vejam, mas que a administração tributária de Peru e Honduras, por exemplo, tenha acesso às contas bancárias das pessoas. Isso não se pode fazer na América Latina porque existe segredo bancário. Temos que ir derrubando isso.
 
Telesur: Há países em que os bilionários nem sequer aparecem no censo, estimados em 1%. Há um informe da Oxfan a partir de pesquisa da Forbes sobre os ganhos extraordinários.  

Coronado: Especialmente nas grandes economias da AL, se evidencia o crescimento do patrimônio em 2020 comparado a 2019, cruzando dados com contas rastreáveis, mostrando que os ricos ficaram mais ricos na pandemia. Nas economias pequenas na América Central, a Forbes não tem nenhum dado. Pergunto: existem ou não milionários nessa região? Claro que existem! Mas não medimos renda de capital, renda do poder associativo. Diante desses dados, mesmo limitados, se evidencia que o setor financeiro seguiu ganhando na pandemia

Primeiro: a campanha requer impostos sobre a riqueza e o patrimônio, porque pagam muito menos que as rendas do trabalho. Seis ou sete países têm taxas maiores que 15%, o restante está muito abaixo. 

Segundo: tributar bens imóveis, o que em alguns países chamam bens prediais, edifícios, casas terrenos. As elites usam os cadastros em mãos municipais, e os mantém desatualizados e são subtaxados por estarem muito defasados. 

Telesur: Se em todo esse tempo os Estados não puderam implementar esses impostos sobre esses bens, o que se dizer de como vão taxar a economia digital? 

Coronado: É preciso mudar estruturalmente o sistema tributário. A economia digital é gerenciada por grandes multinacionais. Na América Latina, o capital das telecomunicações está concentrado em um multimilionário, Carlos Slim, o mexicano. Temos um nível de concentração tal que não tributa apenas a riqueza pessoal, mas também sua riqueza patrimonial e societária, como ocorre com suas empresas Claro e Telefônica. 

Em nossa campanha queremos incidir sobre o tema patrimonial. Em 70% dos países da América Latina as heranças, sucessões e doações não pagam um centavo. Sabemos que a riqueza se translada dentro das elites, das famílias. As elites conseguiram 0% de tributos nas heranças. É falso o mito que se obtém patrimônio pelo esforço pessoal. Não é verdade. Na América Latina, a maioria alcançou fortunas nas ditaduras, por apropriação indébita, de ativos estatais, juntaram sua riqueza com roubo descarado. Estas elites enriqueceram em meio a um sistema político totalmente arbitrário. Foi criado um sistema tributário que permite evadir isso tudo. E mais: colocam iates, aviões, casas de luxo em praias, em sociedades, colocam em paraíso fiscal e não há forma de tributar.

Como na República Dominicana: artistas de renome internacional têm casas de luxo, não pagam imposto de bens imóveis porque se agarram a incentivos, porque dizem que é para estimular o turismo! 

Telesur: Vemos com agrado que alguns países começam a mudar, nos parlamentos, como Chile, Bolívia e Argentina, com imposto extraordinário único sobre as fortunas. É um bom início?

É um bom início. Um tema tabu que se coloca na mesa com resultados concretos e se pode cobrar. Mas são insuficientes os impostos temporários ou de uma única vez. Isso demonstra que a questão é política. Essas elites não aceitam ser tributadas, a não ser uma única vez, como no caso Argentino. São medidas que precisam ser permanentes e estruturais, porque é a única forma do sistema tributário ser igualitário, para financiar os Estados e políticas públicas. Efetivamente, cobrar impostos da riqueza e grandes fortunas de cunho permanente é a única forma da América Latina superar desigualdades. Podemos falar de cifras concretas do que seria tributar riquezas e grandes fortunas porque não é um discurso, mas propostas concretas. Significa arrecadar milhões de dólares permitindo enfrentar os problemas econômicos, incluindo os sanitários em meio à pandemia. 

Telesur: Que cálculo podemos fazer na região? 

Coronado: Se atualizamos apenas o imposto predial - bens imóveis – de apenas os 10% mais ricos, sem todas as riquezas que estão fora, o cálculo chega a 23 bilhões de dólares anuais. Na Costa Rica isso daria 300 milhões de dólares ao ano; no Brasil, resultaria em mais de 6 bilhões de dólares anuais.

Se começamos a tributar as grandes fortunas, com a metodologia da Oxfan, e fizermos um ajuste, tributando pessoas que tenham patrimônio maior que um milhão de dólares, teríamos mais de 26 bilhões de dólares ao ano. Com isso se poderia dar bônus de emergência, fortalecer o sistema de saúde pública, bônus de desemprego temporal e financiar os Estados para que a vacina seja universal. Que não se cobre de ninguém a vacina da covid na AL, porque isso será uma conta alta. 

Telesur:  Os Estados poderiam fazer muitas coisas apenas tributando grandes fortunas, como já deveria ocorrer desde sempre. Como diz a campanha: É agora ou nunca! É muito importante o apoio e a pressão popular para que a classe política implemente essas normas e promova as mudanças tributárias necessárias.

Tradução: Stela Pastore


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Edição: Marcelo Ferreira